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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

02
Mai24

Os novos tementes a Deus

Sónia Quental

Com o aniversário a aproximar-se, sinto-me tentada a celebrar a data com um batismo no Douro, à semelhança de Russell Brand no Tamisa, imitado por uma onda de celebridades em cenários nem sempre tão exóticos, mas igual publicidade nos tabloides. O único senão é que já fui batizada uma vez, mas, se conta para alguma coisa, não me lembro disso, e tenho quase a certeza de que o cadastro estava praticamente limpo.

É como celebrar as bodas de prata ou de ouro do casamento, representando aqui a Igreja Católica o cônjuge de um matrimónio arranjado antes de me rebentarem os dentes (se fosse depois, é provável que eu já mordesse), cujos votos posso agora renovar mais senhora de mim.

Pondero, enfim, alistar-me no pagode dos novos tementes a Deus, como também gostam de se chamar. Além de ser exonerada dos pecados, Deus passará a ser o único a poder administrar-me justiça, porque de nenhum outro admito julgamento nem a ninguém presto contas. Ainda por cima, não tendo Ele apartado nem e-mail, e sendo pouco dado a aparecer em público, não há quem possa pedir as atas das diligências.

Espero que simpatize com a bajulação e o suborno, dê um jeitinho aqui e ali em troca de 20 padre-nossos e 10 ave-marias, 20 metros de joelhos pelo chão. Se nos desentendermos ou afrouxar o temor que lhe devo e o estragar com AMOR (mesmo que orgânico), os sacerdotes católicos aí estão a servir de conselheiros matrimoniais, reavivando com vigor o medo constante a esse Deus que se esconde na escuridão e gosta de pregar sustos. O susto e o reforço intermitente são, a bem dizer, o modelo de educação dos tementes a Deus, presos, não pelo fio da navalha, mas pela caridade e a esperança, à mistura com o condicionamento operante de Skinner, que já converteu muitos à fé.

 

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Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

27
Abr24

O aceno do elefante

Sónia Quental

O máximo a que pode aspirar alguém que ocupe a posição de professor ou formador é contribuir para formar seres pensantes – encontrar um metro quadrado de terreno fértil onde as migalhas não sejam devoradas pelos pássaros ou levadas pela brisa do esquecimento.

Anos antes de as experiências de Stanley Milgram se tornarem do conhecimento público, os formandos que tinha em sala já as haviam visitado, tal como ao “Efeito Lúcifer” cunhado por Philip Zimbardo e ao questionamento de alguns autores da psicologia social sobre as condições que favorecem a ação do Mal. Analisámos o filme A Onda, baseado em factos verídicos, e perguntámo-nos em conjunto o que podia fazer com que metade de uma população de civis pegasse em catanas de um dia para o outro e dizimasse a outra metade, como aconteceu no Ruanda.

Em vez de falar de raça, etnia e discriminação, aproveitei a relativa autonomia que tinha para atacar o tema puro e duro do Mal, que parecia nada oferecer de prático. Chegado 2020, percebi a razão prática de discutir assuntos filosóficos aparentemente divorciados das matérias de cidadania e esperei que não tivesse sido vão o trabalho de fomentar um espírito crítico pouco encorajado pelos burocratas que ditam os referenciais e pelos responsáveis de formação que não querem senão instalar engrenagens obedientes no mercado de trabalho.

Se é discutível o estímulo da imaginação heroica que Zimbardo sugere como antídoto contra o Mal no final da sua Ted Talk, o que quero hoje fazer é aproveitar a deixa para lembrar o elefante que acena no meio da sala, quatro anos após as medidas bárbaras impostas a pretexto de uma "pandemia", e assinalar a ação heroica de alguns à face delas. Não é sem tumulto interior que vejo as fotografias da população em marcha neste 25 de abril, sabendo que ainda há pouco a maioria dos que seguram cravos na mão se encolhia dentro de casa, espiando à janela quem saía à rua e congeminando ardis para aprisionar e impedir de frequentar espaços públicos quem montou guarda à dignidade humana e escolheu dizer “NÃO”.

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Refiro-me a médicos, cientistas, jornalistas, investigadores, professores e profissionais das mais diversas áreas que foram, em muitos casos, despedidos dos postos de trabalho e, quando não, vilipendiados, atacados, marginalizados e impossibilitados de se expressar pelo crime de divergirem de uma opinião pública habilmente manipulada e fundamentalmente cobarde. Foram inúmeras as contas online suspensas, as pessoas bloqueadas e canceladas por defenderem que os (pretensos) fins não justificam os meios e que a humanidade não se presta ao estupro. Quando os grandes poderes fizeram vergar a ciência, a puseram de quatro e passaram ao ato que está na mente dos que aqui me leem, essas pessoas mostraram que a ciência não tem amo e que não é preciso ser-se cientista para se ser dotado de consciência, que é individual antes - ou em vez - de ser coletiva.

Uma das vozes que se fizeram ouvir foi a do médico Tiago de Abreu, cuja crónica “Os borrados de medo” releio assiduamente, como tributo à coragem de um dos que ousaram dissentir em momento precário, num discurso sem eufemismos nem papas na língua. Esta é a única homenagem que posso fazer a um 25 de abril impostor: lembrar e deixar-me inspirar pelos heróis que não se sentaram no sofá a cantar hinos hipócritas à liberdade e que arregaçaram mangas pela sua defesa, mau grado os sacrifícios pessoais e profissionais que isso lhes custou. A quem quer fazer cair no esquecimento a selvajaria em que participou – e àqueles que ainda nem sequer se deram conta dela -, o elefante acena do meio da sala.

Por trás dos discursos que saem em defesa de um suposto bem coletivo, nacional, ou mesmo do bem-estar geral, constata-se, em muitos casos, um projeto de tomada de poder que costuma valer-se da ingenuidade e do despreparo das massas para justificar a supressão da pessoa enquanto ente inviolável.

Maurício Righi (sobre o pensamento de Theodore Dalrymple)

 

 

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Bob Moran

(um dos despedidos sem causa, autor de ambos os cartoons)

 

09
Jan24

Reforçar defesas

Sónia Quental

             

“Reforce as suas defesas” leio no vidro da farmácia, na mesma manhã em que me dizem que querem instalar câmaras de vigilância no edifício, depois de um segundo assalto à garagem. Se já andava mal-avinda com as que começaram a ornamentar as ruas, anunciando a Era do Grande Irmão, ele só adquire plenos poderes quando nos entrar em casa e se sentar no sofá ao nosso lado.

Enquanto trabalho, ouço os vizinhos darem todas as voltas à chave de cada vez que alguém entra ou sai de casa. As voltas são muitas, o que significa que, ao fim de um dia, o meu cérebro já deu nó e vou ter de pedir ao Grande Irmão, sentado no sofá, para o destrinçar com a paciência de quem me quer bem. Se também fizer massagens, estou disposta a reconsiderar a questão das câmaras, em vez de voltar a ser aquela ovelha de quem todos gostam, nas famílias e noutros lugares, por fazer coisas como bater o pé.

Largar o medo é um trabalho de todos os dias, daqueles a que poucos estão dispostos, depois de o terem como conselheiro de todas as horas. Se não é a IA que nos pode matar, é o açúcar, os hidratos de carbono, o glúten, a falta de vitaminas ou de cálcio, ao ponto de se ter tornado uma aventura levar seja o que for à boca. A inflação anda à solta de catana, de braço dado com a doença, as impertinências do aquecimento global, as “emissões” que fazem notícia, a ameaça planetária do momento, mas o que mete mesmo medo são as pessoas vestidas de astronauta, fato e viseira a rigor. Esta a condição a que chegámos, depois de conquistar terras e mares: andamos de olho na lua.   

Há dias em que não sei se alucino ou se entrei numa saga do realismo mágico, a única corrente artística que retrata com acerto o insólito do mundo, com o bónus de ter um nome de que também gosto. E não é menos que magia o que se espera das medidas externas quando se lhes pede que, eliminando o foco do perigo, o medo também acabe. Trancam-se as portas, mas o medo fica lá dentro. Muda-se de casa e ele vai atrás. O medo fareja e fareja-se. É por isso que, por mais reforços que se faça, as defesas nunca chegarão. Retomando uma frase já aqui citada: “There’s so much more to life than the avoidance of death” (David Weiss). Há quem goste de lhe chamar negacionismo.

 

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In The Marvelous Mrs. Maisel

 

26
Dez23

Apontamento escangalhado

Sónia Quental

 

Um dos exercícios que mais me elevam é conhecer uma palavra que me deslumbre.

Manuel Monteiro 

 

        

O Medo acordou-me no escuro. Não posso dizer que tivesse dentes brancos ou o corpo quente, embora a jugular lhe palpitasse com vontade. Bichanava-me coisas malditas, perturbava-me o sono. Achei que o inseticida que tinha de atalaia não surtiria efeito, por isso fiz-me de morta, petrificada.

Ora me ATAZANAVA com a palavra que eu tinha deixado fora de lugar num texto, ora com os mais veementes motivos existenciais, ameaças de morte sempre veladas – assim, sem meias-medidas, em plena madrugada de Natal, quando as defesas estão relaxadas.

Mas os planos saíram-lhe furados, porque o que fez ao apontar-me a palavra fora de sítio, em vez de comichão, foi que me acudisse a outra que eu queria um pretexto para usar: “ESCANIFOBÉTICO”, que avistei num livro infantil, depois de longos anos de separação. Tal como há pessoas que sacam da carteira (ou do telemóvel) para mostrar a fotografia dos filhos, dos netos, do cão, eu gosto de sacar palavras, dar montra embevecida à sua beleza ou encanto, como se me pertencessem.

“Escanifobético” fez-me logo querer ESCANGALHAR de riso e, mais potente do que o inseticida, escangalhou num instante o Medo, que ficou fulminado ou SIDERADO com semelhante munição (outra palavra secreta que saquei em catadupa).

Foi assim, no embalo do dicionário, que o sono voltou e me encontrou, a mim e ao Medo, ÓSCULOS à parte, num AMPLEXO de trégua que restaurou o Natal.

 

18
Jun23

Bicho-papão

Sónia Quental

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Fear is the frequency of control.

Neil Kramer

 

 There's so much more to life than the avoidance of death.

David Weiss

 

         

Em pequena, faziam-me adormecer com a ameaça do bicho-papão. Foi assim que ganhei medo ao escuro, aos fantasmas e aos monstros escondidos debaixo da cama ou atrás da porta e foi também assim que me cresceu o pavor de estar sozinha em casa. Nas noites de insónia, transpirava com os lençóis por cima da cabeça, com medo de deixar o nariz de fora para respirar (como agora acontece, mas por causa das melgas). A cantiga mandava o papão embora para o sono vir, mas ele levava-o consigo e só ficavam as trevas.

Quando fui para a faculdade e passei a morar no Porto, tentaram pôr-me medo aos assaltos; na faculdade, os "veteranos" faziam-nos temer os professores e o desemprego; no ano de estágio, alguém se apoquentava por eu morar com um grupo em que havia um homem que, por ser homem, podia violar-me; na vida profissional, como trabalhadora independente, o medo de ficar sem sustento está sempre à espreita. E assim por diante, que é para não falar do crédito à habitação e da IA.

O medo não é apenas parasita instalado, que engorda de subsídios diários, mas peçonha com que se tenta contagiar tudo à volta, com o pretexto de boas e pias intenções. O certo é que é omnipresente, decretando destinos individuais e coletivos, sob os disfarces mais convenientes: o disfarce da compaixão, da moralidade, do altruísmo, da sensatez, da consciência social. Um presente envenenado ao serviço da segurança e do bem comum, cuja oferta não só é permitida, como ativamente encorajada. Daqueles brindes que se recebe de graça e que fica mal devolver ao remetente.

Campanhas de propaganda fazem à gente graúda o mesmo que o bicho-papão às crianças: regam-lhes o medo, usam-no para manipular. Não por acaso, ele é semeado na infância e cultivado pelo zelo de adultos que querem espalhar a mesma semente que neles medrou e que desconhecem que trancar as portas de casa não deixa o medo de fora.

O medo é um companheiro fiel aos votos de matrimónio, mas um deus punitivo, que exige sacrifícios humanos, celebrados por sacerdotes que não perdoam. É a única religião primitiva que vingou num mundo evoluído, sem superstições, que se orgulha da Razão que o governa – a mesma a que gosta de chamar Ciência.

 

Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

06
Mai23

A pedra no meio do caminho

Sónia Quental

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(…)  já não se trata de mascarar com eufemismos, trata-se de inverter o próprio sentido das palavras.

 Jorge Soley

 

Jesus and Buddha (...) were just guys who got tired of all the bullshit.

Howdie Mickoski

 

 

A par das notícias sensacionalistas e do terrorismo puro em que os meios de comunicação social se empenham e que tendemos a imitar nos nossos círculos reduzidos, noto o cultivo generalizado e inverso de uma linguagem eufemística que, para mim, culmina na palavra “desafios”. A partir de um ponto que não sei precisar no tempo, deixou de haver problemas, dificuldades, obstáculos, preocupações, crises, desgostos, contrariedades para haver apenas “desafios” a ultrapassar.

Concordando com Manuel Monteiro, quando diz que “a elegância é quase sempre o melhor remédio” (em questões da língua e não só), sinto-me esvair de todos os vestígios de graça se, passando por um mau bocado, ouço referirem-se-lhe como um momento “desafiante” ou atribuírem a causa à mudança de estação. A ligeireza e as frases vazias que, mais do que pontuar, recheiam os discursos são sinais evidentes da superficialidade e do engano deliberado em que se vive, desse horror à negatividade numa cultura que, ironicamente, vive fomentando o medo, com as pessoas competindo entre si pelo título de mais desgraçada – perdão, daquela que se vê a braços com o maior número de desafios.

Ocorrendo-me o poema “No meio do caminho tinha uma pedra”, percebi que Drummond estaria em maus lençóis (ou em lençóis menos convidativos) se quisesse publicá-lo hoje. Fui pesquisá-lo para o relembrar e eis que me deparei com um artigo de psicanálise que, logo depois de explicar o significado da pedra, passa a advertir que os entraves que simboliza são uma oportunidade de aprendizagem (outra expressão da moda), num mundo relativo, em que “pedra” e “caminho” não podem ter significados absolutos. Não sou dada à profanidade, mas confesso que quase que me saía. Se devemos elogiar a pedra ou apegar-nos a ela é o que se discute a seguir, e nesta altura já tenho a cabeça a andar à roda. Não sei qual a resposta certa, mas vou arriscar o elogio, devidamente ensanduichado na conversa assertiva que o sujeito poético teria com a pedra, não sem começar por lhe perguntar o seu pronome. Disse “sujeito poético”, mas queria dizer “autor”, porque a escrevente do artigo diz que afinal a pedra é uma hipértese, representando o filho que Drummond “perdeu”.

Admito que este texto tomou um rumo totalmente imprevisto, em torno de uma pedra em que tropecei por acaso, mas que nem por isso me travou o caminho, pelo que posso confirmar que a pedra sempre é relativa e um desafio superável! Tive de segurar as palavras enquanto ia na rua, para também eu não as perder e ser obrigada à hipértese. Felizmente, tinha ido prevenida com uma folha de papel para me aliviar e este texto chegou ao fim quase sem eu perceber.

“E agora, José?”…

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0