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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

16
Set23

A tirania dos novos infantes

Sónia Quental

 

Existe uma demonologia própria do politicamente correto. Certos rituais midiáticos são do âmbito do exorcismo, para afugentar o diabo da comunidade política – o diabo que assume os traços da intolerância.

Mathieu Bock-Côté*

 

O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento (…). Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos.

Theodore Dalrymple*

 

 

 

Interrompi a custo a leitura da obra O Império do Politicamente Correto, de Mathieu Bock-Côté, e respirei fundo algumas vezes antes de enfiar as luvas para detergentes abrasivos e mergulhar mãos nas “Diretrizes da comunidade” do Pinterest, exemplo cabal da realidade progressista descrita naquela obra.

A primeira vez que notei uma lógica de funcionamento anómala nesta rede social, anos antes da pandemia, foi quando tentei fazer uma pesquisa com a palavra-chave “sapiossexual” e a plataforma recusava apresentar resultados**, por entender que o conteúdo violava as políticas da comunidade, argumento entretanto adotado por outros canais.

Por estes dias, com a pujança orgiástica dos novos mecanismos da censura, dei-me conta de um Centro de denúncias e violações com uma lista de pins removidos ou com distribuição limitada, por se inserirem ora na categoria de conteúdo para adultos, ora na de violência gráfica. Fui espreitar o último que tinha incorrido em tal violação e tratava-se do rosto banhado em lágrimas de uma estátua de Nossa Senhora das Dores, que a declaração associada à denúncia dizia ter transgredido as diretrizes sobre violência gráfica, por conter “imagens perturbadoras, como violência iminente, caça a animais ou ilustrações gráficas com atos de violência explícita ou grave”. Pensei que estivesse a olhar para a imagem errada, mas não – a descrição referia-se mesmo àquela, uma imagem de que eu tinha simplesmente gostado.

Após um exame um pouco mais demorado das acusações relacionadas com a minha atividade, constatei que violência gráfica eram também representações artísticas da crucifixão de Cristo, estátuas simples de outras divindades e a carta 10 de Espadas do Tarot, referindo-se, por sua vez, o “conteúdo para adultos” a obras de arte que expunham a mínima nesga do corpo humano, incluindo cartoons com personagens em biquíni. Já dentro das atividades de incitação ao ódio, havia uma citação que elogiava a natureza itinerante e livre das “almas ciganas”. E mais não quis ver, porque as luvas de nitrilo não chegavam para tanto e a inépcia respingava por todo o lado, ameaçando manchar-me a capa recém-lavada do sofá.

No parágrafo inicial, que descreve a missão da plataforma, o apelo reiterado é à denúncia – muito simplesmente porque “nem todos os conteúdos são inspiradores”. E, se dúvidas restassem de que a redação destas diretrizes foi feita por crianças, basta atentar na secção sobre assédio e críticas, em que a mágoa arbitrária que alguns possam sentir, por atos que entendam como ofensivos, é critério de exclusão ou limitação da visibilidade de conteúdos. A acusação tornou-se sinónimo de culpa, como bem aponta Theodore Dalrymple na obra Podres de Mimados, provindo de um julgamento automático e omnipresente de quem, ironicamente, se posiciona contra os julgamentos e tanto trabalha para combater teorias da conspiração.

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Pretende-se purgar os espaços sociais virtuais de todos os vestígios de negatividade, para que se mantenham “inspiradores” e felizes – acrescentaria que de “bom gosto”, característica que aparentemente não abençoou a estátua de Camilo no Largo do Amor de Perdição, considerada feia pelo presidente da câmara, pornográfica por outros tantos “especialistas” em arte, em tendências que confirmam a ameaça assustadora da purga a pairar sobre o mundo físico.

 

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*Citações extraídas da edição brasileira das obras.

**A esta data, as restrinções aplicam-se apenas ao termo com um "s": "sapiosexual", o que significa que a correção ortográfica iludiu a censura.

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Set23

Insuflável

Sónia Quental

A maioria das pessoas parece adulta, mas na realidade não o é. Emocionalmente, a maioria continua a ser criança. (….) Na maioria das pessoas, vive uma criança que está simplesmente a imitar um adulto. A ‘criança interior’ de que tanto ouvimos falar não tem nada de interior; na realidade, é bastante ‘exterior’.

 David R. Hawkins 

 

A real piece of art is a window into the transcendent. (...) And, unless you can make a connection to the transcendent, you don't have the strength to prevail. 

Jordan Peterson

 

 

A caminho de casa, passava pelas festas do Bonfim quando me chamou a atenção o insuflável ao lado da igreja, um tanto acanhado face às dimensões do edifício, que deve atrair menos fiéis do que o divertimento infantil.

A relíquia religiosa e o destom do kitsch ocupando, em contraste, a mesma paisagem afiguraram-se-me como mais um sintoma do zeitgeist, em que a Humanidade aparenta ter regredido ao estádio locomotor-genital do desenvolvimento psicossocial – ou isso ou perdeu simplesmente o bom gosto. Parece-me provável que aquele seja o real destino das romarias, que já não louvam a Deus, mas procuram as profecias do ChatGPT, pitoniso moderno de altares de plástico, onde se pode andar de meias e as costas não sofrem as dores dos bancos de igreja.

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Assim é o sopro da fé: insuflável, ou wearable, como se diz agora. Aparece com o papa e desaparece com ele. Quando o festival acaba, arrumam-se as tendas e regressa-se à normalidade, com os uivos erráticos das novas Gretas a disputar os holofotes ao papa.

Estou a pensar em enviar um requerimento à junta para no próximo ano fazerem uma rampa para trotinetas, para facilitar ainda mais o acesso e o insuflável poder exibir o rótulo A+++ da inclusão. Desconfio que a popularidade tornará redundante a igreja, que, verdade seja dita, não tem os azulejos da Capela das Almas, que a tornem instagramável ou lhe deem relevância turística, nem pode ser convertida em alojamento local, correndo o risco de passar a imóvel devoluto, sujeita a arrendamento compulsivo.

Pelo menos, há um insuflável ali ao lado, onde Deus pode procurar refúgio, se não se importar de partilhar dormida com o oráculo da IA, com quem poderá ter as conversas filosóficas a que as beatas estariam menos aclimatadas. Pode ser que aceitem competir numa corrida de drones e que, desqualificados os humanos, seja Deus o favorito, quanto mais não seja porque o papa, ainda que amigo de todos, joga na mesma equipa. Aceitam-se apostas. O arraial está montado, faltando apenas confirmar a presença de Lio, o robô dançante do Bolhão, que fontes não oficiais garantem estar a preparar uma performance interativa e um workshop de coreografia. O pão de ló já se vende à porta, presume-se que feito de ovos sem crueldade animal.

 

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