40 anos no deserto
Fotografia de © Richard Barman (@richardbarman), publicada com autorização do autor.
The poem or painting were exorcisms, spells against the desert.
Octavio Paz
Diz-se que, da cabeça até ao umbigo, o corpo de Lilith é o de uma bela mulher; porém, do umbigo para baixo, ela é um fogo abrasador.
Barbara Black Koltuv
Não era a mulher quem arrastava o desconforto pelo aeroporto, mas a criança no pânico de se perder e não encontrar o caminho de volta. A mesma que teve de aprender a ir para a escola sozinha e ficou congelada no trauma.
Os dedos sujos de chocolate, bate a culpa por beber mais uma Coca-cola. Penso nos gurus da alimentação saudável que estarei a ofender, no que comi de mais, se gastei em excesso, se o entusiasmo me faltou, na busca incessante da medida certa, tal o hábito de me achar de um lado ou do outro da balança.
Devo ter estado lá, no momento do pecado original, porque é essa a culpa que me persegue, até nos aeroportos. Tento despistá-la no labirinto de corredores, deixá-la para trás no controlo de segurança. Mas a culpa não é líquida, antes sólida, cheia de grelo, como as cebolas, e com o mesmo cheiro a enxofre.
Hoje estou no meio; não o meio do equilíbrio, mas de um lugar de passagem, 40 anos volvidos do começo. Aceito com relutância os 41 e a contrariedade de me achar mortal. Há quem chame “não lugares” aos aeroportos – não conhece outra coisa quem habita um não lugar persistente e atravessa os dias no rasto de quimeras. Aqui, o deserto é apenas mais óbvio, mas nem só antro de demónios. Quando vejo, são as bênçãos que assaltam. É por isso que evito o jejum: para não ceder à tentação.
Ouvir a língua nativa é o primeiro sinal de casa. Gostava de ter a simpatia imaculada dos hospedeiros e de encontrar no deserto a fonte do amor, mesmo que as águas do destino sejam turvas.
Tenho sede, dispo-me sem que percebam. Pode ser que a chuva venha.