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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

23
Jun25

Unhas

Sónia Quental

      Contemplo com renovado assombro as unhas postiças que as mulheres sacodem no ar. Aprendi com os contos de fadas que, se havia coisa que identificava as bruxas, eram as unhas, embora duvide de que fizessem despesa com manutenção. Nunca descobri porque alguém havia de querer ser bruxa de propósito.

        Sei que o timbre da alma é nas mãos que se vê. Tão distraídas andam todas com os floreados das unhas e os hidratantes na mala que se esquecem do que levam no côncavo – do rasto que os gestos deixam no ar.

03.08.2018 - Mãos (9).jpg

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

16
Mai25

Onde está a Jane?

Sónia Quental

      Quando me desafiam a ser a minha melhor versão, apetece-me perguntar: a minha melhor versão de quê?... Mas ensinaram-me no estágio pedagógico que não se devia terminar perguntas em “quê”, porque confunde as cabeças das criancinhas. A gramática estaria desculpada se o conteúdo equilibrasse os lapsos, só que entre as selfies com os músculos a brilhar e os chavões que se repetem nas páginas de todos os personal trainers e mentores de vida, o plástico é o mesmo (ainda que reciclado).

         Força, empoderamento, superação, transformação pessoal, liderança, dominação: onde está a Jane, agora que todas querem ser o Tarzan?... Quanto maior o foco no corpo, maior a distância do centro. Mais desocupado ele fica. No caminho a que tantas vezes se compara a vida, agora transformado numa eterna prova de obstáculos, não somos apenas encorajadas a ser mais: somos intimidadas. Há um novo bullying do fitness e do autocuidado, que martela frases de motivação em bruto e tenta purgar a língua de todos os traços de negatividade, no pressuposto de que a reforma das palavras se transfira para o pensamento, onde se acredita residir o poder da mudança. Com tanta ênfase no ser mais – que se traduz em sermos a nossa melhor versão – o valor em oferta encolhe cada vez mais. Convence cada vez menos.

       Quem tanto insiste em adotar uma versão 2.0 da própria pessoa costuma falhar o que na dança se chama "passo-base": conhecer a atual. Aceita ainda que a melhor versão de todas tem os mesmos músculos de aço da conquista: física, profissional, social. É uma versão que nasce de uma lapidação tão transpirada quanto alienada – não do conhecimento, da sabedoria, do aprofundamento. Do desenvolvimento de uma luz própria, que nem sempre é toda luz, mas tem matizes de sombra. Ah, o prazer de dizer “não” quando me estendem uma liana e me atiçam a saltar de galho em galho na floresta colorida desta mesmice tonta!

 

 

10
Mai25

O lugar da mulher

Sónia Quental

           

         Ao intitular o seu artigo sobre a igualdade de género e a liderança “O lugar da mulher é onde ela quiser”, Carla Fernandes aponta-nos desde o começo o lugar a que, no seu entender, qualquer mulher aspira: a luta pela ascensão a cargos de liderança e pelo derrubar de preconceitos sociais. O vocabulário gasto daquilo que mais soa a panfleto político e me fez lembrar muito texto didático que tive de engolir na escola deu-me um pequeno choque na precisa semana em que deixei cair uma das minhas armaduras.

        Recebemos uma educação voltada para o intelecto e, pelo menos desde que entrei nela, empenhada em moer estereótipos e em vincar uma ideia deformada de igualdade. Ao crescer, sabia que era mulher pelo corpo, sem conhecer as implicações disso. Não tinha referências femininas – nem, a bem dizer, masculinas. O certo é que nos faltam modelos de virtude e honra. Desligada do corpo, da sua expressão primária, socorri-me daquilo em que era boa para compreender o mundo e para me defender enquanto ele se ia fazendo mais largo e perigoso: a mente. Para tentar exercer controlo cerrado sobre a meia dúzia de metros quadrados à minha volta, antecipar o futuro e, se possível, evitá-lo, por não o imaginar benévolo. A violência da emoção que não se prestava ao sufoco da racionalidade emaranhava-se nela, embora nascida das linhas da frente desta defesa, que julgava profunda quando era reativa, espigando das meadas de medo.

       Com o hábito de analisar tudo, dissequei a vida de forma tão implacável como a literatura. Fiz do funcionamento mental uma identidade e uma barreira, sem me ocorrer que pudesse prescindir dele nem que estaria segura se fosse indefesa. Ironicamente, foram ele e a vontade de saber mais sobre o ser humano que me levaram a investigar também o que era ser mulher e que facetas estariam gravadas em mim, numa aprendizagem que continuava a ser guiada pela sonda rígida do intelecto. O corpo não reagia ao que ele sabia, ainda não o sentia. Até que, talvez por começar a ser escutado, começou a deixar escapar o seu perfume inato. Sem aviso, senti uma chapa cair por dentro e fiquei exposta sem correr a esconder-me. Descobri que não precisava dela para me proteger e posicionar – que a proteção não precisa de se tornar um modo permanente de ser e que isso não implica um regresso à ingenuidade. Nem por isso passei a gostar menos da palavra “não”. Como tal:

         NÃO creio que, com a sua militância e o seu afã de prolongar lutas imaginárias, a mulher tenha algo de qualitativamente diferenciado para oferecer como líder. Conheci pouco da empatia, inclusão e colaboração exaltadas por Carla Fernandes quando as avistava nos picos da liderança, que as deixaram mais destituídas do que coroadas. Choravam, batiam com portas, apunhalavam pelas costas e gritavam.

       Antes de querer ocupar qualquer lugar, a mulher precisa de se conhecer e de resgatar a sua natureza de mulher. Só então poderá escolher onde quer estar.

 

 

A happy woman is a woman relaxed in her body and heart: powerful, unpredictable, deep, potentially wild and destructive, or calm and serene, but always full of life, surrendered to and moved by the great force of her oceanic heart.

 

Women do not become free by analyzing themselves. They become free by surrendering into love. Not your love. Their love. They become free by surrendering to the immense flow of love that is native to their core and allowing their lives to be moved by this force in their heart.

 

David Deida, in The Way of the Superior Man

 

Catwoman (18.10 (10).jpg

(Foto de bastidores)

 

2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

08
Mar25

"Thy name is woman"

Sónia Quental

 

Elegância é a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado subtil de se deixar distinguir.

Paul Valéry

 

 

         O movimento de diluição das diferenças de género que ganhou expressão nos últimos anos foi precedido nalgumas décadas por uma fação a dado ponto paralela, de redescoberta dessas mesmas diferenças, em que se baseiam muitas mentorias de relacionamento. É assim que hoje se vê uma afluência de coaches que vendem os segredos não só dos relacionamentos, mas do que é, em essência, a feminilidade e a masculinidade. A par da estreiteza de certas generalizações, a visão de cada um traduz, como não podia deixar de ser, a própria maturidade, fazendo circular novos estereótipos que refletem diferentes graus de miopia. Foi neste contexto que me deparei com o vídeo abaixo, em que uma coach desfila na rua, descrevendo-se como modelo de feminilidade e elegância. Consigo depreender porque é que os olhares se voltam para ela, mas deixo a interpretação a cada um.

         A pretexto deste vídeo e da efeméride, aproveito para expressar aquilo que não tenho como marca de feminilidade: feminilidade não é usar sapato de salto alto; não é pintar as unhas nem carregar a pele de maquilhagem; não é o menear de ancas que se vê aqui. Esta manhã, depois de ter sido recebida numa loja por uma pessoa que me desejou feliz Dia da Mulher com um sorriso treinado e uma voz estridente (daqueles votos que agradeço e não devolvo), fui atendida logo a seguir por outra que me ofereceu ajuda exalando uma feminilidade natural, apesar do excesso de peso e das calças de ganga que usava.

         Se em textos anteriores propus que a afirmação do feminino não passa pela exibição relaxada de deformidades, em nome da aceitação e protesto contra a ditadura de uma imagem social de beleza, ela também não reside na artificialidade decorativa nem na neurose. Conheci ao longo da vida várias mulheres deslumbrantes cuja insegurança as despia de toda a beleza. Conheço quem viva a contar calorias e só consiga usar leggings pretas, para que não se notem as imperfeições. A perfeição que conheço não é de vidro e não é tirana. Por agradável que tenha sido, a seguir à democracia dos jeans, redescobrir as saias e os vestidos, hoje sei que não é o vestido que faz a mulher, mas a mulher que faz o vestido.

         Depois de crescer num ambiente em que não se reconheciam diferenças entre o modo de ser masculino e o feminino – o que, em vez de aumentar a compreensão entre ambos os sexos, a dificultava – foi extremamente curativo redescobrir-me como mulher, mesmo que não me reveja na forma de estar da maioria das mulheres que me rodeiam. Nesse percurso, aprendi também que a maturidade de homens e mulheres os leva a conhecer e a dominar crescentemente, e de modo consciente, a polaridade oposta. No entanto, antes de aspirarmos à androginia, sugiro que comecemos por ser aquilo que a natureza nos fez.

 

 

Always a paradox. Always tangible, but also, somehow, elusive and just out of reach. Always present, and yet, somehow, removed, the true female seems for ever, strangely, inexplicably, a wonderful and unfathomable mystery!

Théun Mares

 

26
Dez24

Ablução

Sónia Quental

Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques, 

das que jamais verão seu nome impresso e no entanto

sustentam os pilares do mundo (…)

Adélia Prado

 

 

         Perguntam-me o nome e talvez seja tarde. Durante muito tempo quis que o adivinhassem e me chamassem com um saber íntimo que se atravessasse até à alma pelo mero domínio do seu timbre, comandando-lhe que se abrisse. Mas vim a apurar que o nome era para dar às cinzas, a espalhar num ritual minguante, em que me apequeno para dar espaço ao que deslumbra.

 

         Gostava de ir com a minha avó para os campos, onde os morangos eram milagres mínimos que colhia das paredes de terra. Porquê procurar tesouros, quando se pode apanhar morangos?... No tanque, as mulheres eram anónimas, cobertas de preto, levavam carga à cabeça. Confundiam-se com o som da água em queda e, empunhando bacias e barras de sabão, sibilando entre si, esfregavam e esfregavam, protegidas pela geada. Hoje penso que a geada era cinza e que talvez aquelas anciãs extintas soubessem que o nome é para queimar e afundar na terra. Também serve para lavar a roupa.

 

14
Dez24

Heroínas, mas pouco

Sónia Quental

 

         Os heróis perderam o lustro. Principalmente as heroínas. Nas séries televisivas, a protagonista identifica-se pelo cartaz e porque é a ela que a câmara segue. Se procurássemos traços marcantes, menos numa singularidade aleatória de talentos do que no plano das qualidades morais, seria difícil encontrá-los. Não é que tenha sido substituída pela paródia da anti-heroína ou passado para o lado das vilãs: é que foi destituída de atributos que a distinguissem de qualquer outra personagem.

         Se pensarmos nas qualidades que os seres de exceção encarnaram ao longo das épocas, pensaríamos em algo como: coragem, determinação, autodomínio, sabedoria, nobreza, fortitude, prudência, sentido de justiça, capacidade de sacrifício. Isto apesar de o herói, homem ou mulher, se definir como um ser complexo, muitas vezes dilacerado pelo conflito interno e visitado pela tentação. Todas estas qualidades foram, porém, substituídas pelo seu reverso ou por uma desfiguração tola, a ponto de as heroínas terem passado a caracterizar-se pela instabilidade emocional, a impulsividade, a histeria, a imaturidade e a destrutividade, num hino que se arrasta na apoteose da resiliência: o dom que a caixa de Pandora não perdeu.

         Outra pista para a condição heroica da protagonista desprovida de méritos é que, apesar da sua evidente falta de predicados e da tenacidade com que age contra si mesma, contra todas as probabilidades, continua a sobreviver. Nalguns casos, fina-se no último episódio, mas mesmo aí persiste a dúvida: será que morreu mesmo?? Afinal, a imortalidade costuma ser apanágio dos heróis, que ocupam uma dimensão mítica entre o humano e o divino, embora os vilões também descansem à sua sombra, prevalecendo aqueles que ainda conhecem o valor da espera.

         Quando acontece a heroína escapar ilesa e a história ter um desfecho feliz, depois de oito temporadas de conduta errática e alucinada, podemos estar certos do engano: o drama não acabou, o fim foi um artifício precipitado, provavelmente porque o público estava a ficar cansado e a série ia perdendo audiências.

      A heroína transformou-se numa rebelde à força. Uma criança caprichosa, que gosta de irritar todos aqueles com quem se cruza e de levar a sua avante. As peripécias por que passa e os obstáculos que enfrenta são instigados por si, não encerrando valor moral nem levando a uma qualquer transformação, a uma autoconquista que dê significado à vitória, quando existe. Esbatidas as distinções entre superior e inferior, bem e mal, e com a confusão crescente entre heróis e vilãos, já não são os primeiros a inspirar o mediano mortal, mas a vulgaridade que transita para um heroísmo cego, pela mão de um Destino que parece tê-la metido no saco errado. As heroínas do agora são as Gretas a quem os adultos fazem vénias por terem desistido de as educar.

 

24
Out24

Mamilos de luz

Sónia Quental

 

         Dizem que é nos momentos de descompressão, em que desviamos o pensamento do foco, que a inspiração se infiltra. Foi num desses intervalos da seriedade que resolvi investigar algo que me intrigava com uma certa persistência: os mamilos de luz. Em páginas de fotografia do Instagram, tinha-me deparado várias vezes com imagens de nudez explícita em que a única parte do corpo coberta era o mamilo da mulher. Sendo inegável a dificuldade que sinto em descodificar o significado oculto das tendências, só mesmo a repetição do fenómeno em páginas diferentes deu forma à hipótese perplexa: será que deixa de ser nudez se o mamilo estiver coberto??

         Constatei a seguir que alguns, em vez de luz, projetavam sombra; outros mudavam de expressão com as caras dos emojis; outros ainda davam flor. Interroguei-me se a escolha seria preferência da modelo ou do fotógrafo. Nunca me lembrei de perguntar aos meus com que disposição estavam, mas este era apenas o início de uma aventura temerária no mundo dos mamilos, onde entrei com passo hesitante, um olho fechado e o outro aberto, até chegar ao ponto de retrocesso, sob pena de me perder para sempre se continuasse a adentrar-me nos arcanos deste universo paralelo.

         Antes de lá chegar, porém, partilho com os curiosos os resultados lácteos deste empreendimento, que me fez saber que havia um movimento de libertação dos mamilos, uma descoberta que, a rigor, foi dupla: não só soube que havia quem estivesse a lutar pelos mamilos, como captei por inferência que eles estavam presos (a inteligência voltava a ganhar tração). Bastou esse pretexto para se abrir um daqueles instantâneos em que a vida nos passa diante dos olhos, fazendo-me apreender toda a distância – ou, como hoje se diz, “desconexão” – que havia entre mim e os meus mamilos.

         Ainda a pensar em como reatar diálogo, o motor de busca pôs-me diante dos olhos o debate gerado por eles, que jornalistas, vigilantes e burocratas encaravam de um ângulo aparentemente mais óbvio e essencial do que o meu: a polémica em torno da regra de cobrir os mamilos nas redes sociais estava na discriminação em que se baseava. Porque se havia de cobrir os mamilos da mulher quando os dos homens se empinavam livremente e sem qualquer pudor? O debate adensava-se e tornava-se mais feroz quando nele entravam os arautos dos novos géneros e das passagens indeterminadas entre eles, acusando uma visão binária que se refletia em políticas pouco inclusivas, que punham em causa os direitos humanos. Quando é que se devia cobrir o mamilo, e quando é que não se podia, e o mamilo de quem?...

       Foi aqui que notei que já não estava a descomprimir, mas a comprimir. A inspiração sempre espremeu alguma coisa, mas, com tanta informação, fiquei com medo de ir dormir, não por causa do escuro, mas dos faróis que se acendessem por vontade própria.

 

Vestido vermelho.jpg

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

24
Ago24

Também aqui é agosto

Sónia Quental

Todas as minhas fontes vêm de ti

Daniel Faria

 

 

        Mulher sou, retenho líquidos. Nasci com os olhos tortos, voltados para dentro. Nem o médico da vista os endireitou. Nem as lentes de plástico vermelha e verde com que desenhava um risco no labirinto. Chamavam a um preguiçoso. Ele continuou sempre, sem ligar.

       Espremo a pele para não guardar tanto líquido, dividi-lo com o mundo carente de águas.

        Endireito os olhos fixando o horizonte em névoa, endireito o labirinto enquanto caminho. Bico de papagaio no joelho. Endireito o esqueleto.

         Encho baldes de água. Por isso me esqueceram, criança, no tanque de lavar a roupa – para reter a água ainda limpa, fazer a distribuição na minha clínica imperfeição humana. A vida foi para aprender a pô-la a circular, sangue azul cada vez mais puro, olhos cada vez mais fechados para fora, salinas concentradas de claro fervor.

         Pensava que me faltava o mar, mas também aqui é agosto.

 

03
Jun24

Desvéus

Sónia Quental

 

À medida que fui observando o mundo, comecei a sentir um pouco de pena da mulher moderna, que não tem véus para usar.

Clarissa Pinkola Estés

 

           

As mulheres perderam os véus. Na rua, no metro, sobram carnes dos tecidos que as apertam. Mostram-se as pústulas e deformidades que traduzem a igualdade do valor. Uma fêmea já madura masca pastilha elástica de boca aberta. Outra cheira o sovaco do homem a que se encosta. Aqui e ali, corpos esfregam-se pegados. Uma terceira carrega um pacote de 24 rolos de papel higiénico. Na estação onde trocamos de linha, vê um filme no telemóvel enquanto desce na escada rolante.

Está tudo à vista, não porque a essência tenha vencido as aparências, mas porque não há o que ver além da aparência. Sem véus, o mundo despoja-se do mistério, sem verdade que valha a pena conhecer. As máscaras da impessoalidade cobrem com um esgar universal o que era da ordem do translúcido. E os inteligentes, encostados à esquina, ostentam o escárnio da ignorância embutida.

Rasgam-se os véus onde outrora nasciam parábolas, os símbolos da iniciação. Através deles falam os oráculos. Um véu promete, mas não se dá, porque de si se desfia o caminho ao infinito. Não de portas, mas de véus sucessivos, que convidam à revelação, ao mesmo tempo que a regulam para proteger o olhar da cegueira certa, confundir os curiosos, que cedo se perdem pela recusa do sacrifício.

O véu é casulo de silêncio onde o espírito fermenta. Um casulo sem hóspede, agora que os corpos e as emoções se querem libertados, emancipados os costumes. Onde não há véus encontram-se só as cortinas do subterfúgio, que não escondem castidade nem glória. Feitas de segredos fingidos, sintetizados artificialmente em laboratório. Logo a falta de peso os acusa.

Mas não ao véu, toca do sagrado. Quando se cai dentro de um, a queda é demorada – com tendência a não acabar.

 

Olhar (3).jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

08
Mar24

Um minuto de silêncio

Sónia Quental

Pedem-me um minuto de silêncio por uma qualquer causa nobre que desconheço e nada me diz. Se fizéssemos um minuto de silêncio, silêncio só pelo silêncio, sem motivos ulteriores e em homenagem a coisa nenhuma que não o próprio silêncio, saberíamos que ele não é luto nem lamentação, e que o silêncio nunca vem só.

Solto o pensamento e deixo-o comprazer-se nesse minuto cheio de nobreza que se faz tão longo para mim, para quem a vida é silêncio. Silêncio forçado, num parêntese que fecha o mistério e reduz à modéstia o infinito.

           

Este é outro recorte de poema que copiei à socapa de um livro de João Habitualmente, que sabe o que é o silêncio, o que é a beleza e o que é a mulher:

 

E é verdade que beleza é fundamental.

 

Mas não essa beleza beleza

essa que se esgota na beleza

e quer que para fora dela

Nada exista

e não exista nada.

 

Porque o grande mistério é o silêncio

 

E o grande mistério é a mulher

quando nos olha em silêncio

 

as beldades que me perdoem

mas silêncio é fundamental

 

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