A devoção não magoa
We are called by the divine like an eagle is called by the wind.
Neil Kramer
In the heroine’s journey we realise that the dragon lies not in a far-off land, but curled within.
Lucy H. Pearce
Ao primeiro par de sapatos que me magoou, percebi que tinha sido feita para andar descalça. Como com quase todas as verdades que estorvam, fiz-me desentendida para passar vez. Levei os pés para longe da terra, protegidos por sola e desconforto, e continuei em busca de chão, ignorando os arrozeiros que me casavam ao piso.
Se me tivessem dito que a devoção não magoa, talvez tivesse sido mais pronta a largar parafernália, em vez de me sujeitar a apertos escusados, bolhas, joanetes, um sem-fim de mazelas por meter o pé onde não era chamado. Ter-me-ia ajoelhado mais cedo.
Não era dessas crianças com resposta pronta quando lhes perguntam o que querem ser quando forem grandes. A mim, já me chegava ser grande. Os adultos usavam sapatos e seguiam por caminhos batidos, por isso o que tinha era de ir atrás e transformar-me num cisne dócil. Seria inevitável se me esforçasse o bastante.
Mas o esforço nunca bastou enquanto tentava usar sapatos que não eram os meus, seguir por caminhos que eram de todos. O horizonte continuava à distância e as minhas costas, longe de produzirem penas, torciam-se em nós indecifráveis, porque o mundo era pesado e eu não merecia o céu.
Tentei usar calçadeira, ver se os sapatos alargavam com o uso, aplicar-lhes verniz, a eles e a mim, fazer arranques de voo. Acontece que todo o verniz estalava, o batom não pegava nem me assentavam os moldes.
Quando nos pés não havia mais lugar para marcas, o corpo começou a esfarelar-se em terra, dos nós na espinha rebentaram ramos que me embrulhavam os membros, desabrocharam flores nos poros desimpedidos, orbe espacial em convolução orgânica. A força da gravidade trouxe-me ao chão. Árvore alada, prostrada na terra, com pés que se afundam e raízes que sobem, não me doía a devoção.
Fotografias: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados