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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

13
Nov24

Chama violeta

Sónia Quental

 

         O sorriso amanteigado do Toni brilhava como um sinal, segurando os balões para a festa. Estava tudo preparado para a demonstração de tecnologia ióguica que arriscaria a proeza de transformar ratos em abóboras a tempo do Halloween. A expetativa foi aumentando com a aproximação do grande dia, alimentada pelo departamento de marketing da Biblioteca de Cordel, que adjudicara os serviços do Centro de Bem-Estar Integral e convidara a comunicação social para transmitir o evento em direto.

         Mas sobre ele pairava uma sombra de mau augúrio: a Associação de Defesa dos Bichos e Pragas ameaçava intervir com latas de tinta lançadas aos participantes, o que gerava alguma apreensão, uma vez que não se sabia se a cor da tinta ia condizer com os tapetes de ioga que revestiam os jardins da biblioteca, num padrão em que a desordem era apenas aparente.

         A falta de colaboração dos manifestantes, que se fecharam em copas, não demoveu os convocados para o serviço, seres evoluídos decididos a fundir as suas auras cor de violeta para provar que não havia impossíveis. Se tudo corresse bem, a próxima etapa seria empurrar as nuvens com o pensamento, fazer braço de ferro com o vento e quem sabe desacelerar a rotação do planeta, na tentativa de atrasar os efeitos da idade sem o uso de cosméticos.

         A presença do Toni e da sua t-shirt com a mensagem “Crer para ver” era estratégica. Estava ali no papel de agente à paisana, investido da missão de proteger os sentimentos dos participantes das palavras ariscas do público descrente. Para isso, tinha passado a madrugada a treinar o sorriso ao espelho, sem conseguir chegar ao ponto de caramelo, porque a lista de palavras que não podiam ser proferidas durante a atuação dos iogues era extensa e ele tinha de as decorar a todas, para que o frágil equilíbrio do momento presente não fosse perturbado pela blasfémia.

         Com o sorriso em ponto de manteiga, os ouvidos sintonizados e o spray de pimenta no bolso, estava pronto a entrar em ação. Não tão pronto, porém, que não se sobressaltasse com o primeiro exercício de respiração de fogo, em que o sopro violeta de 30 pulmões, com a ajuda dos balões que segurava, o ergueu no ar, qual rolha atordoada desflorando a copa das árvores, primeiro sinal da bênção dos deuses.

 

07
Nov24

Essência Inc.

Sónia Quental

All we are, essentially, is a defense mechanism against the truth.

John Kent

 

 

         Tendo percebido tarde que não havia guardanapos, saíra do brunch com a marca da bebida cafeinada a desenhar-lhe um bigode no beiço. No meio da confusão, alguém lhe tinha enfiado um panfleto no bolso:

 

Essência Inc.

 

Sofre de insónias? Acorda sem ânimo para enfrentar o dia? Tem dificuldades de concentração? Desejos incontroláveis de açúcar? Foi diagnosticado com Infelicidade mórbida? Nada que um toque de Essência não cure.

Desenvolvemos um programa patenteado de recondicionamento mental que sonda o seu potencial latente para o transformar na versão mais avançada de si mesmo. Navegamos consigo pelos desafios da vida moderna, mostrando-lhe como materializar visões de Sucesso e unir-se à corrente de energia da Era de Aquário, em que fundimos intenções para elevar a vibração coletiva e cocriar um mundo sem mácula.

Venha forjar o seu impacto connosco, numa proposta de simbiose íntima que parte do diálogo entre o humano e a máquina: um upgrade essencial para um Ser mais pleno e autêntico.

 

Essência Inc. Felicidade concentrada, à distância de um mantra.

 

 

         O anúncio era de um dos Centros de Bem-Estar Integral financiados pelo Gabinete da Desinformação, com instalações em todas as cidades do plano físico e astral, e sede social na Nuvem. No grupo de Desplataformados a que pertencia, Ludovina tinha começado por ouvir rumores das atividades que promoviam com o incentivo de donativos conscientes, em que a elevação de consciência era proporcional à magnanimidade do patrocínio.

          Falava-se da lista de cirurgias estéticas que tinham lugar nos antigos matadouros para tratar desordens de autoestima, e eram também eles que acomodavam os serviços de lavagem automática com mangueira de pressão e sucção cerebral para eliminar o vácuo mental onde nasciam as ideias perigosas. Os sócios tinham o benefício exclusivo de um Amigo Certificado para garantir que elas não despontassem, prevenindo o perigo de mutação para as Ideias contra o Bem Comum e outras variantes, com diferentes níveis de risco. Outra das funções destes companheiros chegados era conter o ressentimento e impedir a frustração de germinar, trabalhando ao mesmo tempo para erradicar a epidemia de solidão do planeta.

         Havia sessões semanais de 8 minutos de tantra ao som pacífico das focas que fazia vibrar as ruas e que funcionava como cartão de visita destes centros vanguardistas. Uma das últimas novidades eram as salas de tittytainment, uma medida de combate ao individualismo e de reforço dos recreios comunitários em que se fazia a afirmação de identidades imaginárias.

        O conhecimento que Ludovina a princípio obtivera por vias não oficiais fora substituído pelo estudo prático destes laboratórios de positividade, uma vez que a renovação da sua carteira profissional incluíra um módulo obrigatório de formação para a Responsabilidade Social e o Sucesso Sincronizado. Esquecida da marca no bigode e com a música da Barbie a alinhar a nota desarmónica das suas células, Ludovina deu consigo em céu aberto, onde a esperava a forma-pensamento que tinha projetado para o exame do curso.

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Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

16
Ago24

Deus-Ikea

Sónia Quental

           

         A designação não é minha, mas de um artigo de Pedro Saraiva Ferreira sobre as novas espiritualidades que vieram substituir a religião – uma religiosidade de consumo, que o autor classifica como um “Cristianismo sem Cristo”, à imagem do Homem psicológico, que nasceu para ser feliz, indiferente à ideia de salvação. Guia-o uma busca pelo sagrado que segue o modelo “faça você mesmo”, à semelhança dos móveis do Ikea.

         A única coisa que tenho contra os móveis do Ikea são as arestas cortantes, as bicadas que às vezes dão e ter de pedir a outra pessoa para os montar. Não sou essa mulher emancipada que se diverte em noites de insónia agarrada aos hieróglifos de manuais de instruções e a dezenas de parafusos, peças, pecinhas e objetos de natureza incógnita, com uma pequena chave como varinha mágica, capaz de encaixar tudo no sítio.

         No entanto, serve-me a comparação para defender que, no que toca à busca do sagrado, não há como escapar ao DIY: cada um tem de redescobrir a roda, levantar a própria cama. Podemos formar comunidades, reclamar com o bot do atendimento ao cliente, pedir orientação a quem já montou a sua ou vai mais adiantado, mas serão sempre nossos os braços e as mãos, a irritação solene, a paciência ao limite, os momentos de epifania, as misérias, a glória.

         Quem faz questão de montar um móvel sozinho, sem os selos de autoridades externas, embalados em dogmas ossificados, não procura necessariamente os atalhos enganosos da autoajuda nem está preocupado com garantias de bem-estar. Tem como fito o Profundo, que quer conhecer e amar, um palmo de cada vez, na aspereza salgada da pele. Não anda em busca das "opiniões certas" que o colunista do Observador opõe à tentação do relativismo ou à fantasia das preferências pessoais – nem sequer lhe interessam opiniões, que não entram no túnel estreito que se vai abrindo com o peso do corpo no chão, os olhos sondando o céu, o punho esfolado de vontade.

         Não vejo Felicidade que não seja salvação.

 

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Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

14
Ago24

Miss Magnética

Sónia Quental

 

     Olá a todas, eu sou a Miss Magnética, coach intuitiva do amor, como podem ver pela minha farta cabeleira. Atrás de mim, está a minha equipa de anjos 24/7, que me convenceu a fazer este vídeo para celebrar o aniversário dos meus 10 anos de carreira e mais de 50 000 horas de experiência, que me permitiram dar o salto quântico. Só não me qualifiquei para as Olimpíadas porque os anjos estavam de férias nas Plêiades e se esqueceram de dar aquele empurrãozinho que faltava.

         Mas enfim, hoje estou super triste e trago uma mensagem que nem todas vão gostar de ouvir… Tenho de confessar que estou super sensível e preciso de ser super honesta com vocês. Este é um momento super vulnerável, porque como sabem a vulnerabilidade é o ingrediente secreto do amor. Por isso, vou abrir-me e ser super transparente com vocês.

         Tentei criar um espaço seguro, um espaço de empatia e compaixão que vos ajudasse a superar desafios, a saírem da vossa zona de conforto e a criarem resiliência para se empoderarem como deusas que são. Mas a verdade é que fui abusada. Vocês disseram que queriam, mas afinal não queriam. O amor, isto é.

         São más e manipularam-me, quando eu até de madrugada estava disponível para canalizar as mensagens dos anjos e para vos aturar. Os outros coaches cobram balúrdios e nem fazem atendimento personalizado, quando tudo o que eu pedia era um pequeno investimento de 4999 €, que iam acabar por recuperar, mas parece que nem dado. E as que se comprometeram e disseram que queriam afinal não queriam. Mentiram-me. São más e inseguras, e tentaram usar-me para manipular os homens.

         Vou ser ainda mais transparente e atirar-vos à cara que os anjos ficavam com 90% de comissão e cobravam 200% à hora de madrugada e aos fins de semana. No fim, sacrifiquei a minha saúde e ainda saí prejudicada. Claro que isso não seria nada se vocês quisessem MESMO e estivessem dispostas a sair da vossa zona de conforto para vibrarmos em sintonia. Mas são demasiado ingratas e não estão dispostas a trabalhar para atrair a vossa alma gémea.

         Por causa de vocês, experienciei carradas de energia negativa e um ambiente tóxico. Ainda estou a cambalear. Mesmo assim, esforcei-me ao máximo, com toda a minha empatia, por enviar amor e luz para a vossa ruindade, mas ela foi mais forte do que eu. Não tenho vergonha de admitir. Dei tudo de mim apenas para ser traída, como Cristo.

         Mas olhem, para as que quiserem MESMO, estou prestes a lançar o novo curso Descubra a Deusa Irresistível que Há em Si, que vai ajudar a reprogramar as vossas crenças limitantes e ainda oferece uma pulseira magnética que muda de cor e um áudio com afirmações subliminares. Pagamento adiantado e não reembolsável. Para testar a vossa seriedade.

           Namastê!

 

20
Abr24

Metafísica do nada

Sónia Quental

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Steven Pressfield

 

Se uns dizem que somos o que pensamos, já outros gostam de nos reduzir ao que comemos. Seja qual for a preferência, a resposta para os estorvos da existência parece passar invariavelmente por mudar de dieta, abolir o glúten, comer orgânico, aprender a gerir as emoções, a pensar com clareza ou a libertar o poder do pensamento. Definir metas, desmontar crenças limitantes ou irracionais. Limpar o quarto. Sacudir o marasmo. Trabalhar a autoestima, alindar a imagem de si e escrever com o batom no espelho I am enough, que pode muito bem ser a maior invenção depois do batom e do espelho.

Mas as chaves milagreiras compõem uma extensa lista, que vai desde: frequentar workshops, aprender outro idioma, ter aulas de dança, pintar as unhas, tomar banhos de imersão, recitar um mantra, tocar um instrumento musical, fazer psicoterapia, tornar-se fotógrafo amador, adotar uma criança ou um animal, fazer voluntariado, salvar o mundo, refugiar-se num retiro, fazer uma desintoxicação digital, ir morar para outro país. Perdoar. Deixar ir. Abraçar a criança interior. Espremer os limões para fazer limonada. Acabar com a autossabotagem. Ir para o centro do ringue ou da arena. Aprender a dizer “não”, mandar os outros à merda – dizer “sim” à vida. Saber que o universo conspira a nosso favor. Pôr as mãos em concha para o ouvir. Render-se ao tantra, experimentar o ayahuaska. Na dúvida: viajar.

 

Carpe diem

 

O mundo interior é um castelo de cartas: tão leve e frágil que um sopro lhe destrói os andaimes. A vida é feita de sensações e experiências, respostas transitórias para problemas que não se quer enxergar, com medo das consequências de se pensar demais. De encontrar o nada e descobrir que o caroço da vida é oco. Que se calhar não somos mesmo o suficiente, apesar do batom que agora não sai do espelho ou das afirmações repetidas em estado hipnótico, das meditações guiadas e outros rodopios light. Se calhar, tudo o que se fez a pretexto de aproveitar a vida não era mais do que fugir dela e de encontrar respostas próprias, em vez de respostas prontas.

Vale a pena lembrar que é o buraco que faz o dónute. E, se há sabedoria que alguma vez me tenha ficado dos poetas que contemplam a metafísica do nada, em alternativa às mensagens dos pacotes de chá, são os versos, que tantas vezes canto com José Régio, umas vezes rindo, outras chorando: "Não, não vou por aí! Só vou por onde/ me levam meus próprios passos”.

 

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Fotografia: 2022 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

13
Jan24

A "freelancer" que não vendeu o seu Ferrari

Sónia Quental

Longe vão os tempos em que se procurava refúgio num mosteiro para se ser monge: hoje, basta ser-se freelancer. Nada de retiros espirituais, saltar para cima de uma mula para encontrar o Xangrilá e um Baba dedicado, como os gestores de conta, atingir a Realização numa caverna, o corpo mordido por insetos. Pode fazer-se tudo no (des)conforto do lar, rodeado pelas mesmas criaturas invertebradas, e contratar um guru à hora.

Não há necessidade de vender o Ferrari, porque nunca se chegará a ter um. A custo virá um momento culminante, em que se reequacionem valores materiais após uma crise de vida que sangre arrependimento: não há grande coisa a reformar, as carnes são poucas para cortar, e o voto de pobreza e silêncio vem temperado com o jejum da eterna Quaresma.

Tenho um pouco mais de sorte do que o freelancer comum, porque me fizeram saber, pela boca do próprio, que há um Cristo a morar no prédio. Este quer instalar câmaras para apanhar o Judas em flagrante, em vez de dividir a hóstia. Espero que na proximidade do seu manto a conversão seja mais rápida, sem o aperto de disciplinas prolongadas, e eu possa voltar à civilização com a iluminação conquistada por osmose, parábolas a recitar como quem despede histórias de guerra, o corpo com o castigo suficiente para se notar.

Depois das sessenta e duas mil horas de meditação que a precariedade laboral tornou possíveis, estou prestes a atingir o amor incondicional. Com o poder das ondas gama projetadas pelo cérebro, vou concorrer ao título de “Mulher Mais Feliz do Mundo” e posar ao lado de Matthieu Ricard, ajudar as pessoas a despojarem-se para aprenderem a pensar como um monge e a acumular riqueza material, mantendo uma atitude positiva e cultivando a compaixão do Cristo cá do sítio. A ciência moderna confirma que é possível passar da mente de macaco à mente de monge e estou a caminho de o provar, embora ainda não tenha fustigado suficientemente o ego e renunciado por completo à crítica (shame on me).

Atualmente, treino o “namastê” que não me sai e aproveito os saldos para escolher uma t-shirt com o meu mantra favorito, para que não haja dúvida, quando for à garagem onde não tenho um Ferrari, que sou um ser de paz, as câmaras não me confundam com o Judas e não disparem a matar.

 

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Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

26
Jun23

Inocência ou loucura?...

Sónia Quental

Captura de ecrã 2023-06-25 135333.png

 

I don’t have anything to lose. I can afford to be a fool. 

Byron Katie

 

 When I first realized there was only me, I began to laugh, and the laughter ran deep. I preferred reality to denial. And that was the end of sorrow.

Byron Katie

 

 

            

Percebi que um mestre espiritual só é levado a sério se usar tanga. Se tiver tido o azar de nascer no Ocidente e, pior ainda, se for americano, precisa de ter uma elaborada concetualização filosófica e ser pouco dado à ternura ou corre o risco de ser confundido com os desatinos New Age. Há uma certa distância que é preciso manter do comum dos mortais para se ocupar com dignidade o pedestal destinado aos gurus.

Cheguei a essa conclusão quando pensava em escolher um livro de Byron Katie* para oferecer, mas não sabia se seria indicado para a pessoa em causa e resolvi procurar avaliações de outros leitores e pesquisar críticas na internet para perceber como tinha sido recebido (sendo que eu própria já conhecia essa e outras obras da autora).

Apesar da morbidez que espiga nestes meios, os comentários sórdidos do Goodreads e de sites em que analisavam o seu trabalho recorrendo a conceitos psicológicos e filosóficos vazios deixaram-me atónita. Leitores que se socorriam do seu “pensamento crítico”, de uma bagagem intelectual e académica e da sua experiência horizontal de vida para proferir um veredicto de legitimidade sobre alguém que não se encontra no mesmo nível de consciência, chegando ao ponto de ridicularizar que o “despertar” de Katie tenha acontecido quando estava deitada no chão e se apercebeu de uma barata no pé – algo que estes críticos de algibeira não consideram provável. O caso é agravado por se tratar de uma mulher que pouco tempo antes fora alcoólatra, vivera deprimida e com pensamentos suicidas, o que os defensores da tolerância e do não julgamento acham mais uma vez difícil de conciliar com a sua moral vanguardista e a sua mente iluminada.

O que Byron Katie faz no seu “Trabalho” não é a desconstrução de crenças irracionais do cognitivismo. O seu questionamento não é uma técnica de psicoterapia, tendo, sim, como propósito último levar o sujeito que a ele responde para além da mente e do ego. Katie faz publicamente e sem aparato teórico o mesmo que outros professores têm maior relutância levar às últimas consequências: mais do que silenciar a mente por momentos, trata-se de questionar o vício de pensar e de acreditar nos próprios pensamentos, que tem a sua génese na perceção da dualidade. Embora se empenhe em desmistificar as narrativas que causam sofrimento, a sua abordagem faz derrocar a estrutura dos nossos processos mentais. Extrapola-se que não só o “Penso, logo existo” é uma crença equivocada, como o pensamento em si é um logro, sugestão que gera reações de incompreensão, confusão e recusa violenta ao invalidar o que o Homem moderno tem como núcleo da sua identidade.

Essas são secundadas pela incompreensão de alguns que parecem acompanhar o “Trabalho” e empenhar-se nele. Em todos os círculos de vocação espiritual há seguidores que tendem a levar uma prática ou ensinamento ao extremo, perdendo o equilíbrio, o discernimento e transformando-os numa caricatura da proposta original, porque não souberam captar a sua essência. Hoje em dia, com a influência sombria de certos escândalos mediáticos, é tentador colar o rótulo de “culto” em qualquer aglomerado de pessoas que se reúnam em torno de um líder espiritual, embora Byron Katie seja a antítese da soberba – talvez por isso seja tão tentador chamá-la louca. Cai-se na distorção de em tudo ver cultos, depravação ou tudo confundir com o New Age, descartando-se levianamente como fake o que não tenha filiação com uma escola religiosa ou espiritual consagrada.

O hábito e a necessidade de dar nomes desconcertam os devotos da tradição, que gostam de saber situar-se para proferir as suas sentenças. Em muitos dos comentários que encontrei no Goodreads, a opinião autorizada era: “não recomendo”. Se ainda não conhecesse os livros, seria motivo bastante para ir a correr comprar a obra completa.

            

My job is to delete myself. If there were a bumper sticker representing my life, it would say: CTRL-ALT-DELETE: WWW.THEWORK.COM.

Byron Katie

 

*Refiro-me concretamente ao título A Mind at Home with Itself, que prefiro ao Loving What Is. Este último, porém, foi traduzido e publicado em português há um ano pela Albatroz. Desconheço a qualidade do trabalho de edição, mas desconfio dela, por tratar o leitor por “tu” logo no título da obra (Ama a Vida como Ela É).

29
Abr23

Luminárias

Sónia Quental

Escadaria do Mercado do Bolhão (4).jpg

It is so dificult to find a teacher these days. There are mostly preachers. A real teacher has no teaching.

H. W. L. Poonja

 

Most teachers are false teachers, and most seekers and false seekers.

H. W. L. Poonja

  

Percebo que Alexandre Mota quisesse perguntar a Jordan Peterson que compatibilidade haveria entre o Deus Cristão e aquele a que de modo incauto chama o “Deus Panteísta”, à guisa de matchmaker desavindo, em busca de uma luminária que lhe dê razão.

Andamos, muitos, em busca de luminárias, entre tantos falsos brilhos e a falta de referências que alumiem um ignoto deo. Percebo o que diz, apesar da falta de rigor, quando fala das “experiências esotéricas ao estilo panteísta” que vieram substituir o fascínio do existencialismo. Penso, sim, que é preferível “agir como se Ele existisse” do que sucumbir à convicção fácil do ateísmo (embora me pareça que a diferença não seja tanta assim).

Também a mim me indignam muitas das tendências que nomeia no seu artigo, que dão má fama ao que é da ordem do Invisível e a quem se empenha com seriedade em conhecê-lo. O sincretismo New Age é o red light district da Espiritualidade. Estou bem familiarizada com a confusão entre desenvolvimento pessoal e espiritual e com quem se considera espiritual porque queima incenso, faz visualizações criativas, aplica a lei da atração, lança o pêndulo e as cartas, comunica com os anjos e os mestres ascensos, pratica Reiki, Access Consciousness ou ThetaHealing, fala como entendido das crianças índigo e da era de Aquário, faz regressões a vidas passadas, leituras da aura, anda com cristais pendurados ao pescoço, recita afirmações positivas, participa em cerimónias ayahuasca e atira namastês à discrição. Enjoei das frases feitas de grupos que viram verdadeiras seitas, empenhados na eterna procura, mas não no Encontro. É disso que também se priva quem age “como se Ele existisse”: da oportunidade da descoberta.

É à boca cheia que se ouve falar de “luz”, “energia”, "cocriação" e do malfadado “ego”, nos locais mais desusados, por seres que trajam de branco, cobertos de medalhinhas de Nossa Senhora e de Cristo Jesus, que são “tu cá, tu lá” com o Arcanjo Miguel e têm contactos privilegiados na 9.ª dimensão. É o auge da pornografia. A espiritualidade tornou-se um acessório barato, que ora se põe ora se tira, consoante a ocasião e o dress code, deixando atrás de si um rasto carnavalesco de inquestionável mau gosto.

Por isso, caro Alexandre, entendo perfeitamente o que diz. No entanto, por muito respeito e admiração que sinta por Jordan Peterson, sei que não será ele a dar-lhe a resposta que procura – desde logo, porque ele próprio não a tem. Deus não se revela pela via do intelecto. Nas expressivas palavras de H. W. L. Poonja, “If you are looking for diamonds, do you go to a potato shop?”

Se quer começar por algum lado, sugiro-lhe, caro Alexandre, que comece por se livrar da suposição de que Ele existe, teve batismo cristão e é um “alvo exterior” (a abater ou não). Atreva-se a admitir que nada sabe e que só daí poderá partir: sem saber o que vai encontrar. Livre-se dos conceitos que formou antes de querer saber se o Deus cristão pode dar o nó com o “panteísta” e quem irá presidir ao casório. Remova os modificadores do nome. E, se quiser falar em esoterismo e budismo, estude-os primeiro. Não os confunda com as versões aciganadas que por aí circulam nem os irmane à erva daninha do relativismo. Desenvolva a faculdade da discriminação. Se precisar de ajuda, escolha luminárias que realmente saibam, não sem antes começar a acender a própria luz – porque só as luminárias se reconhecem entre si.

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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