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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

25
Jan25

O Pinga-Amor

Sónia Quental

 

Cavaleiro de Copas.png

O Pinga-Amor gostava delas tenrinhas, inocentinhas, praticamente sem trinca. Era para elas que guardava teias de aranha no bolso, material extensível, que lançava, aracnídeo macho, sobre as florzinhas viçosas que se passeavam sem saber que o eram. Pigarreando para expurgar a voz de intenções segundas, o Pinga-Amor chegava-se e colava-se-lhes todo, calculando de cabeça que alminhas pediam uma abordagem mais vagarosa. E era todo vagares. Mas o seu repertório, que cabia num caderninho de bolso, repetia-o sem variação, prometendo-lhes a capa da Vogue entre a meada de elogios, despistando-as com lições solenes sobre a importância do relaxamento ou discursando sobre o correr da vida, qual Epicuro com a auréola mais cândida do desapego. Sobre ânimos exaltados, vertia com o mesmo vagar cerimonial a fleuma adquirida após uma existência dedicada aos prazeres do estômago e da camaradagem.

         De bigode aperaltado, despido de preconceitos e pudores, insinuava ideia semelhante nos cerebrozinhos encantados com os seus galanteios, que se iam fechando na teia, não por falta de entendimento, mas por se acharem no dever de retribuir mesuras. A valentia com que o Pinga-Amor se atirava para a frente de batalha na caça de talentos era confirmada pelas substâncias estranhas que injetava no organismo, que não o impediam de contrair as moléstias contra as quais se inoculava, cujo sintoma persistente eram as evacuações intestinais. Às jovenzinhas deslumbradas, gostava de exibir as marcas das agulhas nos bíceps descaídos, enquanto lhes espremia os pecados mais íntimos, prometendo-lhes o sigilo do túmulo com a mesma convicção com que outros vendiam a continuidade no Além.

         No labirinto do Império, era figura de certa dignidade, chefiando o Gabinete das Manobras de Diversão, onde, além das teias que fazia para uso pessoal, tecia cortinas de fumo com a mesma habilidade de dedos com que as moiras enrolavam os destinos universais. Fosse pela presença constante de cortinas e cantigas, fosse por qualquer predisposição impossível de contrariar, gostava de adormecer a ouvir a história da Carochinha, sem saber que ele era a mosca na teia, o ratão apanhado nas tramas que urdia para pescar anjinhos doces nas suas redes pinceladas de mel.

 

Imagem: Tarot Cigano

 

11
Jan25

"Nox, noctis"

Sónia Quental

‘Do you consider people to be basically sophisticated animals?’

With a straight face, Rose answered: ‘No, they’re not that sophisticated’. 

John Kent

 

 

 

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       As noites não eram de veludo para todos. Para alguns, tinham a rugosidade da serapilheira; para outros, eram quebradiças e ruidosas como o celofane dos rebuçados, sem o rebuçado dentro. Certo era que poucos dormiam durante o período noturno e que a insónia era a regra que o Império calava quando acendia a iluminação de rua.

       Duas da manhã. Do lado minguante da meia-lua do prédio de apartamentos onde morava, o Emílio experimentava um par de collants cor de beringela, com efeito escama, enquanto tentava enfiar os dois pés no mesmo sapato de salto alto. Havia duas coisas que sempre sonhara ser: sereia e super-herói e, num rasgo de génio, percebeu que podia ser ambas. O único equipamento que lhe faltava para trazer à tona a sereia que havia em si era o fato de super-herói. Já tinha um aquário de tamanho humano, hermético e espelhado, que construíra com as próprias mãos com materiais que recolhera dos contentores de lixo. Às duas da manhã de segunda-feira, o Emílio praticava o equilíbrio e a delicadeza diante da superfície espelhada. Declamava de improviso um poema a que dera o nome de “Crateras da lua”, expressando o romantismo atormentado que precisava de espremer todas as noites do coração flagelado pelo Cupido, com a mesma sofreguidão com que as mães de recém-nascidos bombeavam o leite orgânico para não encaroçar.

          Do lado crescente da meia-lua, o Toni era dos poucos que dormiam um sono inquieto. Fazia o seu treino de cárdio num pesadelo onde fugia de um instrutor de ioga. Satisfeito com o volume de transpiração e o número de passadas, só não contava com a casca de banana que o fez estatelar-se no chão quando já levava uma boa margem de vantagem. Ao levantar-se para matar a sede e apagar qualquer vestígio traumatizante da respiração de fogo, pensou na Ramona, a única mulher que o amava com amor de mãe. Com grande pena sua, as mãos trepadeiras com que fora abençoado tinham sido prontamente repelidas pela Ludovina durante a massagem da tarde. Não se podia esquecer de ligar à Ramona para marcar a sessão de sadomasoquismo e reparar os danos à autoestima, antes que se tornassem irreversíveis.

          No T0 da ponte invisível que unia as duas metades desavindas da lua, o Leitor Ufano aproveitava as horas da madrugada para tricotar uma camisola vintage com os seus novelos de cordel. A rotina continuava com os remates à baliza na varanda, um ensaio intensivo para o próximo confronto com os Aferradinhos. Nas três horas de sono que dormia, sonhava com notas de rodapé e letras miudinhas.

         À mesma hora funesta, a Miss Magnética fazia um lançamento de tarô para a Ramona, que tinha marcado uma consulta urgente depois de ter sido atingida com um novelo de cordel caído do céu, que lhe ficara preso ao cabelo. A combinação da Lua, do Diabo e da Torre fez a intuitiva arregalar os olhos para além da conta. Talvez tivesse sido o movimento súbito das pestanas em caracol a apagar a chama das velas, uma explicação perfeitamente natural para um fenómeno que a superstição poderia atribuir ao paranormal. A sua tenda inteligente, porém, não perdeu tempo a interpretar os sinais de fumo e a ativar o alarme sonoro: um grito de loba agudíssimo que a Maria das Dores tinha gravado num biscate para a empresa de alarmes Tique e Toque, que provocou um pequeno abalo sísmico na rua, onde uma Ramona espavorida corria com o empeno mal-azado do fato de cabedal.

         No pequeno anexo ao lado da Piscina dos Saltos Quânticos e ainda com os tampões nos ouvidos, a Maria das Dores tinha terminado a lição de canto lírico e enfiava a touca para saltear os grilos do rolinho primavera que ia levar para o trabalho no dia seguinte. Pelo sim, pelo não, achou melhor juntar-lhe uma farofa de formigas pretas, para aproveitar a matéria-prima do quintal – gostava de carregar na proteína.

        Ludovina era a única que dormia indiferente ao alarme que fazia balançar a rua, o corpo flutuando com uma leveza que não se importava de sustento nem dos três centímetros que a cama se moveu durante o sono. O toque da noite era de algodão.

 

Imagem: baralho Morgan-Greer

29
Dez24

Equilíbrio

Sónia Quental

 

          Emílio reprimira a memória de que fora imortal numa vida passada. Amante das lendas de monstros marinhos, partira a galope da curiosidade para o lago de Loch Ness, onde escorregara nas margens e caíra, acabando por perder a consciência. Acordara sobre o longo corredor de um dorso estranho ao seu corpo versado de garimpeiro, que lhe deixara na face esquerda a roseta áspera dos predestinados: a Falange Secreta de Loch Ness.

         Emergindo das águas do lago passados três dias, Emílio achou-se estranhamente propenso a acidentes, a que sobrevivia por milagre, o rosto corado pela metade, como se pedisse desculpa por ter a sorte do seu lado, e ainda por cima do lado esquerdo, que não havia cicatriz que marcasse. O dom carismático dividiu-lhe os flancos, que logo lutavam pela supremacia: um que puxava à violência, o outro à beatitude, este no prato errado da balança, inspirando-lhe atos de heroísmo com uma magnitude desproporcionada, como quando tentou salvar uma libelinha de se afogar e a esmagou com o peso do corpo. A busca constante de equilíbrio era a causa do seu passo manco, que quem via atribuía ao excesso de hidromel ou a defeito congénito.

         O calcanhar de Aquiles de Emílio era o coração, que lhe custou a imortalidade num dia em que Cupido praticava tiro ao alvo e uma das suas setas se perdeu, tocando-o de um amor que não teve tempo de escolher destino antes de se fazer tragédia. Era esse amor que lhe apagava o sopro vida após vida, em que errava atrás de olhares fatais, um prazer secreto no levedar de uma ferida que só baixava as pálpebras, sem adormecer nunca.

         A Falange Secreta de Loch Ness é a linhagem ancestral dos Emílios que sem se conhecerem continuam a habitar o globo, partilhando mais do que o nome e a extravagância de dormirem em piscinas e aquários, a roseta de serpente despontando em diferentes partes do corpo, disfarçada pelas tatuagens. O coração é o único músculo que continua sem enrijecer, contrastando com o exterior rude destes gladiadores, um flanco mais pesado do que o outro, na eterna demanda de equilíbrio que os atira para o calor de batalhas impossíveis.

       Depois de mergulharem em vulcões e enfrentarem bestas mitológicas, correm agora um perigo inimaginável: a ameaça de extinção. As setas de Cupido, que os encontram nos buracos mais sórdidos que procuram para hibernar, passaram a ser feitas de um material reciclado a que são alérgicos e que infetou a sua ferida invisível, perturbando todo um ciclo de encarnaçõess malogradas e nada menos que o equilíbrio planetário.

 

19
Dez24

A dança da chuva

Sónia Quental

Why would the sky look for itself in a mass of passing clouds? 

John Wheeler

 

 

         Nas praças das cidades, nas arenas de touros, nos palcos, nos campos de futebol, nos cemitérios e adros das igrejas abandonas, fazia-se a dança da chuva. Não havia anúncio, convocatória, data marcada, nada além de uma clepsidra que do lado invisível do tempo fazia soar a insónia e os levava em marcha desordenada para onde se pudessem juntar.

     Por mais que a felicidade vivesse na mente vazia, no coração desacordado, era preciso sacudir-se as partes de baixo, abrir o tampão ao subsolo da consciência, num ambiente de descontrolo simulado onde humanos, animais, ciborgues e as todas variantes híbridas de seres sencientes restauravam os antigos cultos a Baco, num presépio invertido que se desenrolava de improviso um pouco por toda a cidade.

         O ritual cumpria várias finalidades: descongestionamento e descarga de energia, libertação de impulsos reprimidos, quebra do tédio e fortalecimento da união tribal em torno de um inimigo comum: o céu, que se obstinava na secura, sem se se chorar por nada. O descontentamento era estrategicamente dirigido para os tronos cimeiros, absolvendo os da terra, que impediam a chuva de desabar por imperativos só seus, promovendo a difamação dançante da sua contraparte hostil.

    A medida tinha uma eficácia razoável, com um grau de imprevisibilidade que empolava o interesse geral: a dança da chuva fazia chuva, mas nem sempre de água. Já tinha acontecido choverem nozes, castanhas, pepitas de chocolate, soluços. Não se sabia se a dificuldade de comunicação residia no canal, se era questão de afinar os ritos, oferecer sacrifícios ou se o céu era simplesmente mouco, por isso continuavam as tentativas de sinalizar uma chuva de água líquida, no grau certo de alcalinidade e pureza.

         O Jardim das Delícias Terrenas sonhado por Bosch fora uma visão de retorno a este ato de comunhão telúrica em que o mais nobre desejo era ser-se engolido pelo chão, com a rega possante do céu. Ser-se adubo de um mundo novo, em que o instinto do orgânico comeria os degraus já gastos da civilização. Nessa esperança os coros se desentoavam, rachando com decisão o firmamento, dando livre curso aos apetites carnais, até à dissolução final, que celebraria o sublime no Nada.

         Sem arca preparada para o que viesse, a resposta foi maciça do céu: do alto caíam limões, pesados de sumo catártico, certeiros na pontaria.

 

No chafariz (7).jpg

Fotografia (recorte): 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

05
Dez24

Os Amuadinhos

Sónia Quental

 

         A fulminação desceu sobre ambos com a mesma força. A silhueta dela em contraluz era o negativo da visitação do Anjo; ele, uma poça de sangue aguado a feder a peixe, lembrou-lhe as práticas ritualísticas dos maometanos. Pensando estar a obstruir o sinal para Meca, deu ela um passo ao lado, fazendo com que o arremesso súbito de luz o pregasse a uma bem-aventurança que durou cinco segundos eternos – uma eternidade extática, consumada lado a lado, numa simetria que não podia vir do acaso.

        Ignorando o latejar da marca que tinha entre as sobrancelhas, Ludovina escorregou para fora da Piscina de Saltos Quânticos para ser recebida por uma manifestação de representantes da segunda religião oficial do Império, que ultrapassava a primeira em número de associados e grau de fanatismo: a denominação atávica dos Ateus. Reunindo pessoas de duas ou três grandes proveniências, o grupo interno de maior expressão era o dos Amuadinhos, que sofriam alguns embaraços naquele género de intervenções públicas, graças à protuberância bucal alongada que os caracterizava. Todas as manifestações eram vigiadas por agentes munidos de Pulsómetros, que garantiam o nível mínimo de Felicidade obrigatório por lei, com o semblante dos amuados representando um perigo iminente de queda.

         O bizarro do espetáculo, apreciava Ludovina, era que os Ateus, quer por inclinação natural quer por pirraça, para espicaçarem os Aferrados a Deus, se passeavam em bicos de pés e nariz ao alto. Alguns caminhavam em cima de andas, que tinham acabado por integrar na sua vida diária, exigindo que as portas se alongassem à sua passagem. Os jogos de futebol amigáveis que disputavam tinham o seu quê de caricato, com os Ateus a chutarem a bola com as andas, os Aferrados arrastando-se de joelhos no relvado, com um posicionamento estratégico que não favorecia nenhuma das partes. A casta dos Humildes, que desfilava de branco em ambos os plantões, deixava-se espalmar com gritos de júbilo, sendo o árbitro a única figura que se mantinha de pé.

         Desde que a política fora abolida que os grandes palcos ideológicos de debate eram a religião e, um pouco mais atrás, a alimentação, que inflamava menos os ânimos e não tinha equipas de futebol amador. De resto, os campeonatos profissionais tinham sido extintos: as emoções não podiam andar à solta, devendo ser canalizadas para fins superiores, ao serviço da coesão do tecido social.

 

28
Nov24

O Grande Peixe

Sónia Quental

           

         Foram muitos os que nesse dia deram com o nariz na porta do confessionário, entre os quais o Emílio, que tinha uma entrevista marcada com Jesus e se viu obrigado a adiar o episódio do podcast. A alteração de planos acalmou o receio de que o peixe fresco que comprara no supermercado se estragasse, embora a integridade da refeição não fosse essencial: Emílio era um misantropo, que gostava de manter a distância, e o saco de plástico com as duas cavalas gordas ajudava-o a afugentar companhia.

         O estrondo dos mergulhos e o cheiro a cloro desviaram-no da saída, tocando-lhe o coração líquido, a pele escamosa que não resistia à sedução da água, na demanda da placenta primordial que deflagrara com o parto precoce. Seguindo discretamente a pequena comitiva liderada por Maria das Dores, foi a tempo de ouvir a sua elocução pitoresca, tirando notas mentais para a tetralogia de que jamais se abstraía, antes de se eclipsar para a exploração a solo.

         Sacudido por um lampejo súbito, não conseguiu conter uma breve recriminação por aquela ser a primeira vez, e inteiramente por acaso, que unia os pontos do seu próprio rasgo pioneiro. O elástico de borracha que trazia no pulso lembrou-o terapeuticamente de se recriminar pelo hábito da censura, após o que voltou ao quadro que se formara na sua mente: depois de milhares de horas a observar o comportamento humano em terra, no ar e a braços com as chamas, percebeu que a água era o elemento que lhe faltava. Afinal, mesmo que o holograma de Jesus não estivesse disponível, o seu espírito coordenava as atividades quânticas de um lugar que não perdera a vocação para o sagrado, obrando na clandestinidade.

         O sopro da inspiração divina rompia agora sem peias pela mente escancarada de Emílio, ditando-lhe que aquela era nada menos que a manjedoura da Segunda Vinda e desacreditando o acaso da sua presença naquele antro providencial. Mesmo sem prever que a hora da Epifania o apanhasse com um saco de plástico a pingar sangue para a santidade dos azulejos, não podia negar que o cheiro a peixe nas mãos convidava a chegada do Grande Peixe. Emílio rendeu os joelhos ao chão, as lágrimas humedecendo-lhe o corpo convulso antes de se lançar à piscina, o útero profundo em que desceria, não de salto, mas agarrado a uma corda. Nunca aprendera a nadar.

Presunção, sim, é essa a palavra; há no fundo do humanismo ateu um orgulho, uma arrogância inacreditáveis.

Michel Houellebecq

 

25
Nov24

"Quantum"

Sónia Quental

 

Verdadeiramente assustador era o Ministério do Amor. Não tinha nenhuma janela.

George Orwell

 

 

        Sem saber onde estava e nauseada com os Jingle Bells que embalavam as ruas, escapuliu pela primeira porta que encontrou, num edifício alto e estreito, descaracterizado, com cheiro intenso a cloro. A chapa que coroava o busto bicudo da rececionista dizia “Maria das Dores”, a qual cantarolou em voz de soprano “Piscina de Saltos Quânticos”, novo nome dado à antiga igreja local, recuperada pelo Império. Estendendo à recém-chegada uma taça fit de pernas de gafanhoto caramelizadas em amêndoas e tâmaras, ofereceu-se para a acompanhar numa visita guiada, desculpando-se pela inexperiência de estreante: com a chegada da Simpatia Ecuménica, que exalava de todos os poros, tinha sido dispensada do posto habitual na Feira da Vandoma, uma vez declarada a obsolescência dos julgamentos. Era o seu segundo dia ali.

       O serviço era mais parado e, como a menina Ludovina podia constatar, os visitantes eram bastante ecléticos, sendo de notar que uma boa parte ocultava os seus verdadeiros desígnios: havia desde fãs do Elvis, que tentavam provar que ele estava vivo, até extremistas que queriam voltar ao jardim do Paraíso e neutralizar a serpente, mudando o curso de toda a História. Na maioria dos casos, porém, os saltos quânticos não eram usados para qualquer reviravolta pessoal ou projeto de conquista planetária, mas para fins turísticos: viagens no tempo ou escapadinhas interdimensionais, com consequências inócuas, daí que a administração continuasse a encorajá-los.

          Talvez ela já tivesse ouvido falar da nova aquisição, dedicada aos saudosistas da religiosidade, muito publicitada nos meios de comunicação social: Deus sed Machina, uma instalação de Jesus alimentada por IA, a quem os visitantes ventilavam as suas agruras e pediam conselhos, respeitando a advertência de anonimizarem os dados pessoais. O realismo da engenhoca holográfica fizera grande sucesso, mas infelizmente encontrava-se interdita para manutenção: os programadores tentavam corrigir o bug que levara Jesus a acusar as pessoas de serem um desperdício de recursos para o planeta, dando-lhes um comando de morte explícito que as fizera precipitar-se para os saltos quânticos, com objetivos menos construtivos. Mas não era caso para preocupação, acrescentou com confiança – o conceito ainda estava na sua fase beta, esse tipo de deslizes já era previsto e seria integrado na resolução de problemas do manual. Em geral, era tudo muito seguro, amigo do utilizador e tinham até nadadores-salvadores na prancha de saltos, prontos a acudir aos desconsolados.

         Ao observar as figuras de Speedos que faziam aquecimento junto à piscina, Ludovina não pôde evitar pensar nas NPC: personagens não jogáveis, vazias de recheio e falhas de autonomia, que preenchiam o mundo para o tornar verosímil, limitadas à função que lhes era concedida. Tudo na brancura interior daquelas divisões, de uma verticalidade desviada, parecia um cenário de fazer de conta, ocupado por simulacros de criaturas que a qualquer momento podiam ficar congeladas nos saltos, bastando para isso que alguém premisse “Pause”.

 

13
Nov24

Chama violeta

Sónia Quental

 

         O sorriso amanteigado do Toni brilhava como um sinal, segurando os balões para a festa. Estava tudo preparado para a demonstração de tecnologia ióguica que arriscaria a proeza de transformar ratos em abóboras a tempo do Halloween. A expetativa foi aumentando com a aproximação do grande dia, alimentada pelo departamento de marketing da Biblioteca de Cordel, que adjudicara os serviços do Centro de Bem-Estar Integral e convidara a comunicação social para transmitir o evento em direto.

         Mas sobre ele pairava uma sombra de mau augúrio: a Associação de Defesa dos Bichos e Pragas ameaçava intervir com latas de tinta lançadas aos participantes, o que gerava alguma apreensão, uma vez que não se sabia se a cor da tinta ia condizer com os tapetes de ioga que revestiam os jardins da biblioteca, num padrão em que a desordem era apenas aparente.

         A falta de colaboração dos manifestantes, que se fecharam em copas, não demoveu os convocados para o serviço, seres evoluídos decididos a fundir as suas auras cor de violeta para provar que não havia impossíveis. Se tudo corresse bem, a próxima etapa seria empurrar as nuvens com o pensamento, fazer braço de ferro com o vento e quem sabe desacelerar a rotação do planeta, na tentativa de atrasar os efeitos da idade sem o uso de cosméticos.

         A presença do Toni e da sua t-shirt com a mensagem “Crer para ver” era estratégica. Estava ali no papel de agente à paisana, investido da missão de proteger os sentimentos dos participantes das palavras ariscas do público descrente. Para isso, tinha passado a madrugada a treinar o sorriso ao espelho, sem conseguir chegar ao ponto de caramelo, porque a lista de palavras que não podiam ser proferidas durante a atuação dos iogues era extensa e ele tinha de as decorar a todas, para que o frágil equilíbrio do momento presente não fosse perturbado pela blasfémia.

         Com o sorriso em ponto de manteiga, os ouvidos sintonizados e o spray de pimenta no bolso, estava pronto a entrar em ação. Não tão pronto, porém, que não se sobressaltasse com o primeiro exercício de respiração de fogo, em que o sopro violeta de 30 pulmões, com a ajuda dos balões que segurava, o ergueu no ar, qual rolha atordoada desflorando a copa das árvores, primeiro sinal da bênção dos deuses.

 

10
Nov24

A Biblioteca de Cordel

Sónia Quental

We tend to anthropomorphize people.

John Kent

 

 

         A Biblioteca de Cordel nascera do desejo subterrâneo de laçar o céu com os cabos do conhecimento. Era frequentada por grupos que não se confundiam entre si, entre os quais várias estirpes de Emílios e Espertalhaços, Ideologias Com Pernas, Professores Diversitários, Cidadãos Preocupados e Leitores Ufanos. Não satisfeitos com o crachá de Leitor, estes últimos usavam um fraque com uma longa cauda feita de capas de livros, que abriam em leque, exibindo espontaneamente as suas plumas garridas – o destino dado ao papel dos guardanapos desviados dos estabelecimentos de restauração.

        A Biblioteca de Cordel dinamizava eventos e concursos mensais, para não perder a relevância e continuar a atiçar o interesse do público. Os Leitores Ufanos competiam pelo troféu de Quem Leu Mais Livros E Ficou Na Mesma, apenas superado em nível de dificuldade e prestígio pelo de Quem Leu Mais Livros E Regrediu, o que causava choques embaraçosos nos corredores da biblioteca, onde os Leitores se exercitavam todos os dias caminhando para trás e tropeçando nos apêndices uns dos outros.

         Ao contrário do que acontecia nas bibliotecas tradicionais, o silêncio tinha caído em desuso. Todos os fraques entravam com um par de óculos de lentes coloridas: amarelas, cor-de-rosa, verdes, dando uma tonalidade inebriante à leitura e gerando altercações entre quem se convencia de ter sido agraciado com a cor mais soberana do arco-íris. Apegados às lunetas e à visão monocromática das estantes, infligiam golpes deliberados nas próprias retinas, para que nenhum livro aberto ao acaso esfacelasse a miopia laboriosamente cultivada.

       Quando as portas se abriam pela manhã, o ritual era sempre o mesmo: cada qual pegava num bloco de Opiniões que a biblioteca generosamente distribuía para marcarem os livros quando interrompiam a leitura para ir ao WC, aproveitando para comer uma barrita de cereais pelo caminho. As Opiniões ganhavam então vida própria e não davam sossego aos poucos Indivíduos que estavam de passagem pelo local, deparando-se com as escaramuças dos Intelectuais envergando traje de cerimónia, aves de rapina de bico ensanguentado e insatisfeito.

     O Simpósio Anual dos Gurus da Escrita Levezinha já tinha data marcada para esse ano, concentrando a esperança de que a Biblioteca de Cordel subisse mais um palmo na conquista enciclopédica das Alturas, um fator de união imprevisto entre os clãs que disputavam entre si as sobras avaras das Leituras Proveitosas.

 

21
Out24

O cabide

Sónia Quental

 

         Amigo do amigo era como lhe chamavam, quando se esqueciam que o primeiro nome era Toni. As bochechas do Toni tremiam sempre que as feromonas detetavam uma fêmea compatível.

    - Prazer. Amigo do amigo – apresentava-se, o peito inchado amortecendo o abalo das bochechas.

       Mascote de hordas de mulheres, chegou a biscateiro e confidente. Desentupia-lhes o ralo, levava-as ao shopping, segurava-lhes a mala de ombro.

         Andava de mota à segunda-feira.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0