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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

08
Mar25

"Thy name is woman"

Sónia Quental

 

Elegância é a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado subtil de se deixar distinguir.

Paul Valéry

 

 

         O movimento de diluição das diferenças de género que ganhou expressão nos últimos anos foi precedido nalgumas décadas por uma fação a dado ponto paralela, de redescoberta dessas mesmas diferenças, em que se baseiam muitas mentorias de relacionamento. É assim que hoje se vê uma afluência de coaches que vendem os segredos não só dos relacionamentos, mas do que é, em essência, a feminilidade e a masculinidade. A par da estreiteza de certas generalizações, a visão de cada um traduz, como não podia deixar de ser, a própria maturidade, fazendo circular novos estereótipos que refletem diferentes graus de miopia. Foi neste contexto que me deparei com o vídeo abaixo, em que uma coach desfila na rua, descrevendo-se como modelo de feminilidade e elegância. Consigo depreender porque é que os olhares se voltam para ela, mas deixo a interpretação a cada um.

         A pretexto deste vídeo e da efeméride, aproveito para expressar aquilo que não tenho como marca de feminilidade: feminilidade não é usar sapato de salto alto; não é pintar as unhas nem carregar a pele de maquilhagem; não é o menear de ancas que se vê aqui. Esta manhã, depois de ter sido recebida numa loja por uma pessoa que me desejou feliz Dia da Mulher com um sorriso treinado e uma voz estridente (daqueles votos que agradeço e não devolvo), fui atendida logo a seguir por outra que me ofereceu ajuda exalando uma feminilidade natural, apesar do excesso de peso e das calças de ganga que usava.

         Se em textos anteriores propus que a afirmação do feminino não passa pela exibição relaxada de deformidades, em nome da aceitação e protesto contra a ditadura de uma imagem social de beleza, ela também não reside na artificialidade decorativa nem na neurose. Conheci ao longo da vida várias mulheres deslumbrantes cuja insegurança as despia de toda a beleza. Conheço quem viva a contar calorias e só consiga usar leggings pretas, para que não se notem as imperfeições. A perfeição que conheço não é de vidro e não é tirana. Por agradável que tenha sido, a seguir à democracia dos jeans, redescobrir as saias e os vestidos, hoje sei que não é o vestido que faz a mulher, mas a mulher que faz o vestido.

         Depois de crescer num ambiente em que não se reconheciam diferenças entre o modo de ser masculino e o feminino – o que, em vez de aumentar a compreensão entre ambos os sexos, a dificultava – foi extremamente curativo redescobrir-me como mulher, mesmo que não me reveja na forma de estar da maioria das mulheres que me rodeiam. Nesse percurso, aprendi também que a maturidade de homens e mulheres os leva a conhecer e a dominar crescentemente, e de modo consciente, a polaridade oposta. No entanto, antes de aspirarmos à androginia, sugiro que comecemos por ser aquilo que a natureza nos fez.

 

 

Always a paradox. Always tangible, but also, somehow, elusive and just out of reach. Always present, and yet, somehow, removed, the true female seems for ever, strangely, inexplicably, a wonderful and unfathomable mystery!

Théun Mares

 

05
Mar25

A era das distrações

Sónia Quental

 

        Já não faz falta o entretenimento para nos entreter. Depois de durante muito tempo ter tentado arrumar as coisas práticas da vida num frasco hermético, com etiqueta e prateleira própria, elas teimam em sobejar e em pedir-me cuidados. Prefiro chamar-lhes “males necessários”. Sem que tenha o tempo absorvido por crianças ou família, sem que tenha de pôr combustível no carro ou de perder horas no trânsito, por mais que tente criar espaços dedicados ao significado, ele dispersa-se, ante o assédio contínuo das distrações.

         Numa era em que a vida devia ter-se tornado mais fácil, sendo essa a promessa da miríade de bens de consumo, tudo parece conspirar para nos desviar de qualquer centro. Pondo de parte o trabalho, ele é inspeções, manutenções, reparações, reabilitações, intervenções de todo o tipo, seguros, impostos, faturas, reuniões de condomínio, processos legais, compras, tarefas domésticas e agora todos os ferrolhos a que as ameaças de cibersegurança obrigam, fechando já os olhos ao mundo sinistro que nos cresce à volta. Não é preciso sequer ver TV. É um sem-fim de assaltos, obrigações e ninharias cujo fito único, quando não é o de roubar ou espoliar, parece ser o de cansar e distrair, não deixar espaço para nada que ainda tenha substância – não deixar, aliás, espaço algum que nos pertença. E, se de dia nos tentam atordoar e pôr a dormir, de noite a estratégia parece ser a privação do sono, quando não pelas preocupações com que insistem em bombardear-nos, pela magra tentativa que alguém possa fazer de abrir um hiato e olhar para dentro.

         Manter um mundo fictício dá trabalho e, quanto mais fictício ele se torna, maior o esforço e o sentimento de alienação. O tempo que sobra das distrações é empregado a tentar separar o que é fake do que não é, uma tarefa tão vã quanto a de arrumar os males necessários no jarro de vidro e esperar que eles se conformem com o downgrade de uma subscrição compulsiva, que acusa os efeitos da inflação de ano para ano. De consumidores, passámos a consumidos, a matéria-prima que engorda a máquina, estações de serviço abertas 24 horas por dia, porque permanentemente contactáveis ou localizáveis. O fim das fronteiras é oficial: fronteiras de espaço, tempo, privacidade, contribuindo tudo para a confusão da identidade. Primeiro distraídos, depois invadidos e por fim diluídos. Chegaremos então ao nada existencial.

 

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Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

19
Jan25

Vícios

Sónia Quental

         Por motivos que pouca importa esmiuçar, tenho-me dedicado à leitura de manuais de instruções de frigoríficos, que fizeram mais por mim do que dizer-me que devia descongelar o meu antes que sejamos ambos tragados pelo gelo.

            O pasmo não foi pequeno ao ler as advertências para não se utilizar um secador de cabelo para secar o interior do frigorífico nem pôr lá dentro velas acesas para remover maus odores – o que sugere que ambas as proezas já foram tentadas. A ênfase que a repetição dá ao pedido de não deixar crianças entrar para o frigorífico ou para dentro das gavetas semeou o seu tanto de desassossego: sabendo embora que muitos pais gostariam de fazer freeze à prole destravada, não supus que recorressem a meios tão extremos e literais para o conseguir.

        Empolgada que estava com todas estas aprendizagens e com o português escorreito do texto, eis que tropeço numa daquelas pedras que são a razão de ser de poemas como “No meio do caminho”, de Drummond de Andrade: o emprego infatigável do pronome demonstrativo “o mesmo”:

 

“Não limpe o aparelho pulverizando água diretamente sobre o mesmo”.

“Mantenha todos os materiais da embalagem fora do alcance das crianças, porque os mesmos podem ser perigosos para elas”.

 

         Contrariamente ao que defendem alguns, a formulação não é erro, mas uma deselegância exacerbada pela falta de comedimento no uso, a que aderem até os que mais insistem na simplificação do discurso. Mais universal do que o verniz das unhas que une mulheres de todos os estratos sociais, “o mesmo” ouve-se e lê-se em toda a parte, em substituição de formas mais simples e naturais como “ele/ela”, “este/esta”, “dele/dela”, “seu/sua” ou da simples omissão, como se aconselharia no segundo exemplo acima e era prática comum até um passado recente.

        Senha não reconhecida de igualdade social e nivelamento cultural, infelizmente para baixo, este verdadeiro trambolho tanto se ouve em conversas de café como se lê em traduções literárias, de profissionais que mostram não ser imunes aos modismos da língua. É um dos exemplos infelizes do contágio psíquico que ocorre não só no campo das ideias, mas da linguagem, mostrando como pouco filtramos e refletimos sobre o que recebemos e propagamos. Pior do que isso, só mesmo rematar com “LOL”.

 

07
Jan25

Reler

Sónia Quental

- ou dos malefícios da leitura

 

When a person picks up a book to read, it is usually for some purpose: to while away an empty hour, for pleasure, for information, to find the answer to some problem, to fill an emptiness within, or to seek to understand the meaning of life. What is your purpose in reading this book?

 

         É com estas palavras que Lorraine Sinkler abre o prefácio da obra The Alchemy of Awareness, biografia de Joel S. Goldsmith, curador e místico do século passado – outro dos grandes autores largamente divulgados no Brasil, a que as nossas fronteiras editoriais ainda não deram passagem.

         As reflexões que tenho esboçado intimamente sobre o real valor da leitura, que encontraram um primeiro incentivo nas palavras de Sinkler e um eco de longa data nas de diferentes vultos do mundo espiritual, foram, uma vez mais, corroboradas por Theodore Dalrymple num dos últimos títulos dados à estampa: On the Ivory Stages. Neste compêndio de pensamentos inspirados pela leitura, o ensaísta britânico evoca três escritores que relevaram os prejuízos do excesso dela: Somerset Maugham, Aldous Huxley e Schopenhauer, o último dos quais achava que a leitura podia ser tanto um entrave quanto um estímulo ao ato de pensar. Do ensaio de Huxley, datado de 1936, transcrevo o trecho citado:

To a considerable extent, reading has become for almost all of us an addiction, like cigarette-smoking. We read, most of the time, not because we wish to instruct ourselves, but because reading is one of our bad habits… deprived of their newspaper or a novel, reading-addicts will fall back on… those instructions for keeping the contents crisp which are printed on boxes of breakfast cereal.

 

         A compulsão pela leitura, por inofensiva ou até vantajosa que possa parecer, como a compulsão por comer cenouras (mais saudáveis do que as bolachas, por exemplo), não deixa de ser uma compulsão: um impulso desregulado, uma fuga de si que é facilmente racionalizada e encorajada como vício benigno. Mesmo sabendo-se que nem todas as obras entram na gaveta das cenouras e que ficariam melhor no saco da farinha, a leitura adquiriu o estatuto de panaceia universal. A guerra no mundo é seguramente caso de subnutrição literária.

         Foi ao perceber que o intelecto não me bastava que a vontade de ler literatura definhou de um modo súbito e irrevogável – diria que dramático até, uma vez que, passados 15 anos, ainda me dói a bagagem que deitei fora. Descobri, porém, que o alimento intelectual é como o açúcar: não faz mais do que produzir picos no sangue, aportando pouco valor nutricional e logo se chorando da próxima dose. Não é dele que vem o conhecimento nem dele que a alma extrai os seus sucos. A minha começou a pedi-los com urgência, ainda que na busca intensiva a que me lancei poucos autores achasse que pudesse espremer ou que soubessem mais do que fazer malabarismos com palavras ou enredos. Mesmo que não os deixassem cair ao chão e que a tenda do circo fosse alta, estava longe de chegar. No máximo, dava para um recorde no Guiness.

         No início desta peregrinação desolada, que cedo recuou para a leitura não literária, tive a boa fortuna de encontrar o nome de Mirra Alfassa, artista plástica, musical e mística que sistematizou os princípios da Educação Integral, baseados nos ensinamentos do Ioga Integral de Sri Aurobindo. Na sua definição de arte, aquela que a posteridade ficaria a conhecer como “A Mãe” acentua distintamente: “A habilidade não é arte; o talento não é arte. A arte é uma harmonia e beleza vivas que devem ser expressas em todos os movimentos da existência”.

         Estabelecendo um paralelo entre os princípios fundamentais da arte e os do ioga, via em ambas as disciplinas a ligação a uma dimensão transcendente, ao serviço da autotransformação e da elevação da consciência. No nosso mundo evoluído, prostrado aos bezerros da ciência, da tecnologia e de um intelectualismo desvitalizado, esta noção são só se perdeu por completo, como não geraria mais do que um escárnio condescendente. Posso afiançar que não é o que se ensina nas universidades, que a única coisa que fazem é confundir e embotar as faculdades da alma.

         Respondendo à pergunta inicial de Lorraine Sinkler, leio acima de tudo para descobrir o significado da existência. Não há muitos que o tenham encontrado e que o saibam transmitir por palavras ou em forma literária, apesar de ser esta a linguagem que mais se presta ao que é da ordem do inefável. É por isso que, mais do ler em quantidade, me importa ler em qualidade e acima de tudo reler. Porque a leitura não é um fim em si, mas um caminho para mim mesma.

         Os mundos interiores não são presas dóceis, que se entreguem ao primeiro assalto. É preciso fazer muitas vezes a mesma viagem de ida sem regresso. No início, a maioria dos que se atiram à aventura vai de arrasto e, mesmo depois de ganhar lanço, avança com a lentidão de certos moluscos. Poucos são os saltos expressivos para a frente e para o alto, e apesar disso não há nada que se lhes compare. As obras de qualidade – as obras com profundidade – desdobram-se em camadas para nos acomodar em todos esses momentos, esperando com as suas janelas e quartos fechados para nos presentear com clarões inesperados, de paisagens que ninguém conhece.

         As obras dos verdadeiros escritores nunca acabam; os verdadeiros leitores nunca param de as reler. Não há tempo para mais.

 

 

 

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O erro dos artistas é acreditarem que a produção artística é um fim em si e para si mesma, independente do resto do mundo. A arte, tal como entendida por esses artistas, é como um cogumelo no vasto terreno da vida, como uma coisa fortuita e externa, não algo intimamente ligado à vida. Ela não alcança nem toca as realidades profundas e duradouras, não se torna parte intrínseca e inseparável da existência. A verdadeira arte tem a missão de expressar o belo em íntima proximidade com o movimento universal. As maiores nações e as raças mais cultas sempre consideraram a arte como uma parte da vida e a fizeram subserviente à vida. (…) Mas a maior parte dos artistas são como parasitas que crescem à margem da vida; não parecem saber que a arte deveria ser a expressão do Divino na vida e através da vida. Em tudo, em todo o lugar, em todos os relacionamentos, a verdade deve ser manifestada no seu ritmo omniabarcante, e cada movimento da vida deve ser uma expressão de beleza e harmonia. A habilidade não é arte, o talento não é arte. A arte é uma harmonia e beleza vivas que devem ser expressas em todos os movimentos da existência. Esta manifestação da beleza e harmonia é parte da realização Divina na terra, talvez mesmo a sua parte mais importante.

 

Mirra Alfassa

(Fotografia extraída daqui.)

14
Dez24

Heroínas, mas pouco

Sónia Quental

 

         Os heróis perderam o lustro. Principalmente as heroínas. Nas séries televisivas, a protagonista identifica-se pelo cartaz e porque é a ela que a câmara segue. Se procurássemos traços marcantes, menos numa singularidade aleatória de talentos do que no plano das qualidades morais, seria difícil encontrá-los. Não é que tenha sido substituída pela paródia da anti-heroína ou passado para o lado das vilãs: é que foi destituída de atributos que a distinguissem de qualquer outra personagem.

         Se pensarmos nas qualidades que os seres de exceção encarnaram ao longo das épocas, pensaríamos em algo como: coragem, determinação, autodomínio, sabedoria, nobreza, fortitude, prudência, sentido de justiça, capacidade de sacrifício. Isto apesar de o herói, homem ou mulher, se definir como um ser complexo, muitas vezes dilacerado pelo conflito interno e visitado pela tentação. Todas estas qualidades foram, porém, substituídas pelo seu reverso ou por uma desfiguração tola, a ponto de as heroínas terem passado a caracterizar-se pela instabilidade emocional, a impulsividade, a histeria, a imaturidade e a destrutividade, num hino que se arrasta na apoteose da resiliência: o dom que a caixa de Pandora não perdeu.

         Outra pista para a condição heroica da protagonista desprovida de méritos é que, apesar da sua evidente falta de predicados e da tenacidade com que age contra si mesma, contra todas as probabilidades, continua a sobreviver. Nalguns casos, fina-se no último episódio, mas mesmo aí persiste a dúvida: será que morreu mesmo?? Afinal, a imortalidade costuma ser apanágio dos heróis, que ocupam uma dimensão mítica entre o humano e o divino, embora os vilões também descansem à sua sombra, prevalecendo aqueles que ainda conhecem o valor da espera.

         Quando acontece a heroína escapar ilesa e a história ter um desfecho feliz, depois de oito temporadas de conduta errática e alucinada, podemos estar certos do engano: o drama não acabou, o fim foi um artifício precipitado, provavelmente porque o público estava a ficar cansado e a série ia perdendo audiências.

      A heroína transformou-se numa rebelde à força. Uma criança caprichosa, que gosta de irritar todos aqueles com quem se cruza e de levar a sua avante. As peripécias por que passa e os obstáculos que enfrenta são instigados por si, não encerrando valor moral nem levando a uma qualquer transformação, a uma autoconquista que dê significado à vitória, quando existe. Esbatidas as distinções entre superior e inferior, bem e mal, e com a confusão crescente entre heróis e vilãos, já não são os primeiros a inspirar o mediano mortal, mas a vulgaridade que transita para um heroísmo cego, pela mão de um Destino que parece tê-la metido no saco errado. As heroínas do agora são as Gretas a quem os adultos fazem vénias por terem desistido de as educar.

 

02
Dez24

Polarizar

Sónia Quental

 

Todo o dever do autor é agradar a si próprio e deixar-se satisfeito, e o verdadeiro escritor toca sempre para uma plateia de um. Deixe-o começar a farejar o ar ou a olhar para a Máquina de Tendências e mais valia estar morto, embora até possa ter uma boa vida. 

William Strunk Jr.

 

 

         Costumava pensar que era para mim que me vestia, até que veio a pandemia, essa torrente fascinante de revelações sobre a natureza humana, e descobri a relutância de vestir roupa de ir à rua para sair de casa. Para quê vestir-me se ninguém ia ver? Não devo ter sido só eu a achar que a recompensa de continuar a aderir aos cânones da civilização – aparentemente suspensos em todas as frentes – não compensava o esforço, porque cheguei a ver gente de pijama no supermercado, façanha que ainda hoje invejo com renovado vigor. No fim de contas, o peso triunfante da inércia mostrou-me que não me vestia para mim, mas para me dar a ver.

         Com a escrita, passa-se o mesmo: pensamos que escrevemos para nós, mas é algo que poucas vezes acontece, sobretudo quando os textos se destinam a ser publicados. A partir do momento em que se começa a ter um público assíduo, começa também a tentação de escrever para ele, de retribuir simpatias, forjar alianças. E o instinto de pertença pulsa forte mesmo em quem já se habituou a circular na faixa estreita das minorias.

     A ânsia, a princípio benigna, de querer agradar, mostrar reconhecimento ou pelo menos não hostilizar e evitar o conflito, começa a deslizar para um hula hoop social, com mesuras carregadas e concessões forçadas. O próprio já não escreve para si, mas para uma falange de seguidores a quem custa ofender, mesmo os que dizem apreciar a franqueza – o que não custa dizer enquanto não se leva com ela ou ela não ultrapassa certos limites.

         A escolha mais fácil para quem é persistentemente castigado por dizer a verdade, ou por um inconveniente excesso de honestidade, seria deixar de o fazer e manter-se ao largo de assuntos polémicos. A vida fica mais plana no nível da concórdia, o descanso é maior quando se roda pelas vias tonificantes da aprovação, além de que não se pode estar sempre em peleja com o mundo, condenando-nos a um autoexílio que só aumenta em distância e duração.

         Por isso, escrever para afastar leitores ou para gerar incompreensão não é, no que me toca, uma escolha amena, mas um dissabor que considero parte do ofício, se o levo a sério – se me levo a sério. Mesmo com a reconhecida dificuldade de escrever só para um, esse um deve ser o primeiro e é à sua verdade que há que agradar, até porque a escrita, mais do que meio de expressão, é um caminho de descoberta dessa verdade. Quem se importa com ela não pode fazê-lo para entrar em clubes da amizade, que pagará postumamente na troca de favores, mesmo que amizades sinceras e espontâneas possam brotar nas afinidades que se vão confirmando com o tempo.

         A verdade divide. Não frequenta as arenas da popularidade, mas é uma recompensa em si mesma. Endireita-nos a espinha, torna-nos mais livres e sãos, desimpede o andar. Conhecendo os seus efeitos, escolho cada vez mais o estreme que por vezes raia o extremo, dividindo e polarizando conscientemente, deixando de me moderar e de rodear certos assuntos, ainda que aqueles que verdadeiramente me importam tenham um lugar modesto nesta plataforma. Tal como escolhemos os autores que lemos, é natural que no ato de escrita filtremos os leitores que nos procuram, o que acontece tanto de modo automático como por golpes deliberados.

         Não somos para todos. Não sou para todos, nem sequer para muitos. Se pelo menos conseguir começar a vestir-me para me ver, será o suficiente.

 

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Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

26
Out24

Dalrymple

Sónia Quental

            

    Considerado por alguns o melhor ensaísta de língua inglesa da contemporaneidade e convidado várias vezes para o Brasil, onde a sua obra se encontra extensamente publicada e é já objeto de estudo, Theodore Dalrymple parece ainda não ter dado à costa do panorama editorial português, apesar da proximidade geográfica. É essa negligência flagrante que me faz dedicar-lhe uma entrada no blogue, aproveitando a reedição próxima do título Nothing but Wickedness: The Decline of Our Culture.

      Pseudónimo literário do psiquiatra Anthony Daniels, que trabalhou como médico em continentes estrangeiros antes de se fixar no país natal, a Inglaterra, aí atendeu durante grande parte da sua carreira a população das prisões e da classe baixa, cuja pobreza cultural, moral e social diz superar a pobreza material de países classificados como de terceiro mundo, assolados pela miséria, por conflitos civis e pela opressão política.

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        Na esteira dos grandes autores e psicólogos da literatura mundial, de entre os quais se destaca o nome de Shakespeare, Dalrymple é dos poucos ensaístas em que encontro uma profundidade de análise psicológica que, aliada a uma rara isenção e honestidade intelectual, tem um efeito simultaneamente refrescante e persuasivo. Resistindo a deixar-se ofuscar por ideações pessoais, tingidas por um emocionalismo impostor, ou a tentar ajustar a realidade a teorias preliminares, Dalrymple faz da observação minuciosa dos sintomas do universo humano com que contacta instrumento de diagnóstico da cultura e da sociedade. A lucidez da sua exposição argumentativa abre-nos clareiras no pensamento; a fina ironia e o humor que marcam a sua escrita tornam a leitura destes ensaios uma delícia que não cansa.

      Como adiantei em referências anteriores, é o autor laico mais espiritual que conheço e dos poucos que continuo a ler: assumindo-se como não religioso, reconhece o valor que a transcendência tem para a busca do significado da existência, não hesitando em utilizar a palavra “alma” quando se pronuncia sobre a condição humana, como autor eternamente fascinado pelo problema do Mal – um dos nós górdios que nos unem.

        Maurício Righi escreveu sobre ele Theodore Dalrymple: A Ruína Mental dos Novos Bárbaros, uma introdução rigorosa à obra de um pensador virtualmente desconhecido por cá, que ainda precisa de atravessar o oceano se quisermos lê-la em papel.

 

It often seems to me that the main purpose of the intellectual elite is to find theoretical reasons for ignoring what is in front of their face.

Theodore Dalrymple

 

22
Out24

Como impactar com um texto popularucho

Sónia Quental

Instruções passo a passo:

 

1. Pegue em qualquer destes termos ou num punhado deles, pincele-os com uma camada de verniz e retire-lhes o miolo (no caso de escolher apenas um, é repeti-lo à saciedade): igualdade, liberdade, democracia, diálogo, empatia, harmonia, união, inclusão, diversidade, pacifismo, ambiente, enriquecer, “multi-” qualquer coisa.

 

2. Utilize todas as derivações possíveis de “impacto”, como verbo, substantivo, adjetivo. Não importa o impacto, desde que se impacte.

 

3. Condene abertamente o julgamento. Cruze os dedos, esperando que, no embalo da toada popularucha, ninguém encontre a falácia. Diga que não há certo nem errado escrito em lado nenhum, mas que é errado julgar.

 

4. Aplique o mesmo idealismo sentimental que tinha aos 15 anos, mesmo que conte com umas quantas décadas em cima. À custa de tanto verniz, já é possível terminar-se a vida com a mesma tabula rasa com que se começou, sem qualquer desenvolvimento psicológico que tenha ocorrido com as famosas “aprendizagens de vida” e tão mergulhado na fantasia como quando se lia as aventuras d’ Os Cinco. Ignore que os manuais de ensino, perpetuados pelos órgãos de comunicação social, são cartilhas ideológicas que disfarçam o caminho do totalitarismo com as cores brandas da utopia e do humanitarismo.

 

5. Use e abuse do materialismo intelectual que só vê guerra, fome e pobreza das janelas do próprio conforto, sem conhecer significado algum para o que acontece – nem no mundo nem dentro da própria casa – mas que continua a agir como se soubesse. Quando se sentir inspirado, culpe Deus; caso contrário, ignore-o e aponte o capitalismo como a causa de todos os males. E nunca se esqueça de que os fins justificam os meios, sobretudo quando o fim é a sobrevivência, física ou psicológica.

 

6. Pregue o seu desprendimento e os desertos ideológicos que atravessa, quando está desde sempre parado no mesmo lugar: um lugar com uma ideologia bem demarcada e altamente frequentada, onde se pode ser para sempre ingénuo. É aí que se aprende o que é da ordem do popularucho. Ensaie esta canção com os outros meninos, à roda da mesa simpática onde batucam o Kumbaya.

 

7. Deixe-se enganar pelas aparências e negue-lhes o valor, em vez de aprender a interpretá-las. Persista na superficialidade, mas cite Einstein ou Tolkien de vez em quando. Pendure um poster do D. Quixote ou do Che Guevara no quarto.

 

8. Acredite que a cultura é toda a iluminação de que precisa. A cultura e a geografia, com um empurrãozinho da “ciência” e da diplomacia.

 

9. Não se esqueça da máscara quando sair de casa nem quando invadir blogues alheios para insultar os autores assinando simplesmente: “Anónimo”.

 

30
Ago24

Poliamor

Sónia Quental

(…) ele foi capaz de transmitir o horror de um mundo no qual ‘todos pertencem a todos’, um mundo no qual ninguém poderia construir qualquer ligação profunda com ninguém. O alvo principal da distopia de Huxley era a ideia de boa vida como gratificação instantânea dos desejos sensoriais.

 

Theodore Dalrymple

 

 

          Chamou-me a atenção uma capa de revista na montra da papelaria, sugerindo, de forma interrogada, que o amor romântico terá acabado e que a monogamia se tornou obsoleta. Se está impresso na capa de uma revista, deve ser verdade e não há perigo de desinformação, por isso acreditei no diagnóstico.

          Sabia-se já que a desconstrução da identidade sexual preparava a desconstrução da monogamia, um conceito reduzido ao seu caráter histórico e social, num momento em que até a biologia perdeu o estado de graça. A culpa, já se sabe, é do patriarcado, e os modos de viver o amor não passam de correntes do obscurantismo que percorreu as sucessivas épocas, até chegarmos ao presente esclarecido em que temos a felicidade de viver, preparados para acabar com as repressões, derrubar estereótipos e proclamar a liberdade de vida, que gravita em torno da liberdade sexual.

         Da definição de limites rígidos passamos à fluidez gelatinosa da identidade de género e de relação, em que se vive fundamentalmente para coçar comichões. Como propõe Regina Navarro Lins, autora de Novas Formas de Amar, em que se baseia em parte o artigo de revista a que aludo à entrada, chegou a altura de arejar as nossas ideias a respeito de amor e sexo – ou de levar a cama para a varanda, imagem que dá o título a outra das suas obras e que ilustra bem as correntes de ar que ventila.

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          Se o amor romântico é mito ou ilusão, é ilusão que encontra finalidade no crescimento pessoal, que dificilmente acontece numa existência isolada. Uma ilusão que pode levar-nos ao encontro da verdade do amor ou à sua sublimação como verbo. Trocar essa ilusão a dois pelo regresso à selva amorosa é preferir uma miragem serpentina, que não só não vem resolver os dilemas com que as pessoas se confrontam dentro da monogamia, sintoma de um vazio íntimo que se propaga, como vem exacerbá-los, iniciando uma espiral que só tem um sentido: descendente.

          A normalização das relações "abertas" consagra-as ao capricho do momento. “Infelizmente, os caprichos de duas pessoas raras vezes coincidem”, sinaliza Theodore Dalrymple, em A Vida na Sarjeta, um título que nos atira da varanda para a valeta, mas que introduz, desde esse nível rasteiro, uma reflexão bem mais profunda sobre o abismo existencial, o tédio e a degradação moral que marcam o grito do Ipiranga sexual: o grito do bárbaro moderno.

          Evocando o significado simbólico de um dos meus contos de fadas preferidos, enquadrado no ciclo do animal-noivo (“A Bela e o Monstro”), Bela perdeu nesta revolução sexual o poder de revelar o príncipe no monstro, sendo agora o monstro que a absorve e transforma num ser à sua semelhança: bem-vinda ao bacanal fluido do poliamor.

 

Contudo, é evidente que se deve preferir sempre o difícil: tudo o que vive lá cabe. (…). Amar também é bom porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas preparações. É por isso que os seres muito novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, concentradas no coração que bate ansioso e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda imprecisos, inacabados, dependentes?) O amor é a ocasião única de amadurecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigência, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalharem a si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos darmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro, é preciso amealhar muito tempo, acumular um tesoiro.

R. M. Rilke

 

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

21
Ago24

Confessionário

Sónia Quental

 

         A alternativa à glamorização da imagem nas redes sociais, que faz parecer que todos vivem de férias, a viajar, se alimentam de pratos exóticos e passam o tempo em aventuras radicais, é o momento do confessionário. É o nome que dou a quando alguém ouve falar nos atrativos da vulnerabilidade e decide experimentar, com a mesma tónica na transparência em que se empenhava até aí – com a diferença de que o que antes era a “transparência” enfeitada do hall de entrada é agora a transparência hiperbólica da cave de horrores.

         Afinal, nem tudo eram rosas. A pessoa não estava a ser autêntica, mas decidiu assumir aquilo que era, com todos os defeitos e descalabros que tentava esconder dos outros. Percebeu intimamente o charme de se afirmar derrotada, o brilho indesmentível da humildade que não quer parecer que é, mas prepara as conclusões para os outros. Agora, a postura é de contrição, sai tudo cá para fora, com baba, ranho e o voto de absolvição fervorosa do público de followers, cujo coração torce pelo ídolo e por este seu lado tão humano, que toca o lado humano de cada um. No fundo, não são tão diferentes assim.

        E no entanto… Esta prática emocionada e indiscriminada da “vulnerabilidade”, ao estilo reality show, deixa a mesma sugestão de fake do que as anteriores máscaras do poder - a mesma sugestão que sempre senti quando alguém tentava aplicar o esquema da comunicação assertiva, expressando sentimentos e necessidades com a intenção sub-reptícia da chantagem emocional.

         Desabafo agora eu, neste momento de vulnerabilidade mimética, a repugnância instintiva que senti quando encontrei uma publicação do professor espiritual Jeff Foster, que passava na altura por uma fase crónica da doença de Lyme, exteriorizando um pânico que várias vezes o tentou ao suicídio. O título da publicação era “Will you remind me of my own teachings?”, a única parte que senti honesta em toda uma ode à vulnerabilidade, à abertura, à autenticidade e à transparência – termos que se acompanham muito, mas que têm uma essência mal compreendida. Entre o elogio das virtudes de dar a conhecer sem vergonha o inferno por que passava, revelava que não queria morrer, embora às vezes também sentisse o desejo conflitante de morte. Desde o “There’s no shame in crying out to your God when you’re on the fucking cross” até à derradeira confissão (“The ‘Fuck it’ becomes stronger than the ‘Namaste’”), os palavrões vão pontuando a poesia deste que se desespera na perspetiva de dar de caras com a morte (introduzo já aqui o spoiler de que o autor em questão recuperou, se encontra bem e foi recentemente pai).

         Dois dos grandes avatares da espiritualidade do século XX e de todos os séculos, Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj, morreram de cancro. Len-ta-men-te. O autodomínio que manifestaram é em tudo avesso à atitude que a publicação anterior deixa transparecer. Tiveram não só a dignidade de sofrer em silêncio, mas a capacidade de transcender a dor e o corpo. Quando procuro um professor, uma figura exemplar e conhecedora que me ensine a limpar a minha cave de horrores e a mudar-me para o andar de cima, não espero que essa pessoa seja como eu: espero que seja melhor. Mesmo que na condição humana não haja absolutos, há comparativos de superioridade. Por isso, espero-os um pouco mais invulneráveis do que eu. Espero que me mostrem aquilo que posso ser e não que tenha de ser eu a lembrá-los daquilo que ensinaram.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0