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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

19
Set24

Elogio da escuta

Sónia Quental

            Mas numa era em que a escuta é vista como um fardo, as pessoas sentem-se envergonhadas, embaraçadas ou culpadas quando alguém as escuta, e ainda mais quando reflete sobre o que disseram. 

Kate Murphy

 

 

         Há muito quem ouça, poucos que escutem. Aprendi a falar mais por imitação do que por correção, mas, ao contrário dos que escrevem como falam, acabei a falar como escrevo. A escuta, por sua vez, vai ainda nos primeiros passos, por tentativa e erro, pedindo-me a concentração intensa dos começos no exercício de ser um espelho mais limpo, com várias séries de repetições, dia sim, dia sim.

     Como ato intencional, consome-se uma grande energia só na preparação para não se estar preparado, isto é, para ouvir sem antepor ou apressar desfechos, sem ter a resposta na calha, mesmo que isso abra rotundas lentas de silêncio. Parte da aprendizagem é saber a quem dar atenção, quando pedir esclarecimentos, em que momento interromper a escuta e dizer “Já chega”. Como sugere Kate Murphy em O que Perde quando não Está a Ouvir, “Ainda que a escuta seja a epítome da graciosidade, não é uma cortesia que devamos a todos”.

         Por isso, como as prendas que escolhemos de modo premeditado, a qualidade importa. E, para aprender a ouvir bem, vem-se a descobrir que é preciso fazê-lo com o corpo todo, aprender o vocabulário do que não é dito, tarefa onde entram também as mãos, num treino full-body que desmente a passividade aparente.

         Perante a ostensiva falta de ouvidos pacientes, é a busca da escuta, de se ser recebido, que faz as filas para o psicólogo e o cabeleireiro, de onde não se sai de pés, mas de cabeça lavada, que é a mesma coisa - com direito a massagem, no último caso. Quando era pequena, gostava de brincar às cabeleireiras: pelo toque que me acalmava o pensamento, como carícia que se movia por vagares e redemoinhos, sem pedir nada em troca (só que pedia). É assim, à vez, que nos escutamos, desejavelmente sem acumular calotes.

         Mesmo que a escuta não se distribua a rodos, andar de ouvido atento e antena sintonizada é a melhor meditação que conheço. Começar por nos ouvirmos a nós mesmos é condição necessária para que possamos escutar o outro. E, quando há ruído na comunicação, quando nos distraímos ou tropeçamos na atenção, o bom da escuta é que podemos sempre começar de novo.

 

21
Jul24

Flechas na escuridão

Sónia Quental

 

Escutar é o oposto das abordagens algorítmicas.

Kate Murphy

 

         Decidi parar e ficar só a ouvir. Não o ouvir costumeiro, que aproveita os momentos em que as mãos se ocupam da lida da casa e das refeições ou me desloco na rua para introduzir os cursos e palestras e exercícios e podcasts, mas um ouvir de total disponibilidade, que me ocupasse inteira, sem olhar ao tempo. Que não me inquietasse com o desperdício de não fazer nada além de ouvir.

         Pensei então pela primeira vez nas vozes que me ajudaram a crescer em consciência, sem imagem a contornar o som que ecoava no escuro: vozes sem câmara, gravadas ao microfone, para um público invisível e desconhecido, vindas de uma solidão que tacteia outras na distância, algumas sem noção da influência que exerciam, quem sabe com os seus momentos de dúvida de que houvesse alguém a ouvir. Foi também para esse balanço que parei, para prestar tributo aos locutores que me fermentaram a maturação e que até aqui tenho deixado para trás nas reflexões, que contemplam mais os rastos da leitura do que da audição.

         As primeiras a encantar-me foram as vozes dos professores apaixonados pela sua área de saber, que transportavam em si a franja de segredo dessa paixão, com vestígios de um prazer excessivo e proibido, e o poder de despertar o interesse por disciplinas que pouco entusiasmavam por si - o poder de mudar destinos. Eram vozes que traziam o corpo agarrado, mas que ocupavam como som o primeiro plano, capazes de fascinar pelo contacto que deixavam adivinhar com uma dimensão não domesticada do saber, de que nem todos são porta-vozes autorizados.

         Depois dessas, na vida de casulo em sociedade ou num peregrinar interior que começou por necessidade e continuou pelo seu vórtice gravitacional, vieram as vozes explicitamente iniciadas no Mistério alimentar-me a alma esfaimada, que se prendeu a elas como ao único leme no horizonte. Durante anos, adormeci e movi-me em vigília ao som das centenas de palestras de Trigueirinho, que pareciam inesgotáveis, mas que um dia se extinguiram mesmo. Depois, vieram outros: Joel S. Goldsmith, Neil Kramer, Vernon Howard, Howdie Mickoski – cada um com o seu timbre, a sua modulação e tónica inconfundíveis. Não eram vozes que interrompessem o silêncio, mas que me levaram ao seu encontro e ensinaram a escutá-lo, a definir a minha própria voz, encontrar as próprias pernas.

         Flechas iluminadas é como as vejo, pontos singulares de sanidade quando o mundo em peso mostrou padecer do contrário e era perigoso o contrabalanço. Acima de tudo, mostraram-me que havia outros como eu, peregrinos do espírito, mesmo que à minha volta fosse só deserto e as raras miragens não convencessem. Às vezes, escrevia o que lhes ouvia, como estas palavras cruas de Neil Kramer, sobre aqueles com quem podemos falar de coisas significativas:

How few people we can turn to in life to share the deepest things within a meaningful way, in person, in our life, in a day by day or week by week basis. I tell you: most people have nobody, absolutely nobody.

 

         Reconhecendo também aqui a comunidade dispersa de peregrinos unida pelo fio de uma voz, deixo nesta pasta, a quem interessar, uma faixa da compilação Audio Cleaver, de Neil Kramer, com o título “The Wider Tribe” (em inglês). Ouve-se no escuro.

 

Num estudo realizado em 2018 e em que foram inquiridos vinte mil americanos, quase metade respondeu que não tinha interações sociais em pessoa com significado, como ter uma conversa extensa com um amigo, diariamente. Uma proporção semelhante afirmou que se sentia só e colocada de parte mesmo quando havia outros por perto. (…) As taxas de suicídio atuais atingiram o valor mais alto dos últimos trinta anos nos Estados Unidos, tendo subido 30% desde 1999. A esperança média de vida americana está agora em declínio devido ao suicídio, ao vício de opioides, ao alcoolismo e a outras doenças apelidadas de doenças de ansiedade e associadas à solidão.

            E isto não ocorre apenas nos Estados Unidos. A solidão é um fenómeno mundial. A Organização Mundial da Saúde relata que durante os últimos quarenta e cinco anos, as taxas de suicídio subiram 60% em termos globais.

Kate Murphy, in O que Perde quando não Está a Ouvir

 

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Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0