Feitiços
Contar histórias é trazer à baila, trazer à tona.
Clarissa Pinkola Estés
As histórias adormecem-nos e acordam-nos. Levam-nos aos territórios inexplorados da psique profunda, protegidos por uma simbologia dinâmica, mas branda, que impede o contacto direto e excessivo com o conteúdo psíquico que precisa de ser enfrentado, levado à sublimação. Como instrumentos de poder, pela sua capacidade de penetração na vida latente, podem ser manejadas para o bem e para o mal, ser bálsamos medicinais, conjuros, pragas.
Adolescente ainda, participei em formações de cosmética promovidas por marcas que os meus pais representavam, contexto em que me sentia como peixe fora de água, e nem as garrafinhas de vidro a marcar os lugares lhe davam um conforto mais líquido.
A experiência não foi desprovida de utilidade, porém – sobretudo a última, em que um formador capaz saiu do registo habitual para nos falar do poder das histórias. Confessou que, numa ida ao hipermercado, tinha tido a curiosidade de ler o rótulo das marcas mais baratas de cremes, surpreendendo-se por terem os mesmos ingredientes que aquela para a qual trabalhava, que praticava outra tabela de preços. Como convencer alguém, então, a gastar mais pelo mesmo? A resposta que nos propunha estava no poder das histórias.
Mostrou-nos a imagem de uma pedra e explicou como o seu valor percebido mudava em função da história que tinha a contar. Que produzia um efeito muito diferente dizer-se que era uma pedra de rua, uma pedra da Grande Muralha da China ou do muro de Berlim, ou uma pedra com origem na superfície lunar, o que a tornava a mais cobiçada de todas as pedras, mesmo que a aparência fosse a mesma. O que cabia ao vendedor era saber escolher as histórias que dessem glamour ao produto e criassem o desejo de compra.
Se bem que nunca tenha tido talento nem interesse pelas vendas, sei que é na sedução do glamour que vivemos, fascinados por histórias que viram feitiços, não raro cristalizados em fetiches (um bom momento para lembrar que o termo “fetiche” vem do português “feitiço”). No entanto, o glamour é apenas um simulacro da beleza, um artifício que satisfaz o apetite, não a fome.
É nessa esteira que vivemos consumindo histórias; tecendo-as, deslindando-as, sacudindo-as, enredados nelas, transportando-as vivas no corpo, exorcizando-as, tentando resolver o enigma da nossa, separar os fios da malha que nos toca. Somos alvos voluntários dos cantos de sereias, deixando-nos atrair e envolver, cativos felizes de contos do vigário urdidos por nós. Não é fácil deixar o transe coletivo, assumir a autoria das narrativas que nos vitimam e escolher reapropriar-nos de um olhar que não esteja enamorado pela ficção, fazendo ouvidos moucos ao embalo dos flautistas que espreitam a cada esquina.
Sem o glamour, a vida não está fadada ao desencanto. As histórias têm igual poder de remediar e inocentar. Há histórias que, em vez de lançar feitiços, os desfazem, num gesto de mágica meiguice (outro parentesco etimológico oportuno). As teias da ilusão cedem lugar ao numinoso. Uma pedra é uma pedra, venha de onde vier. Há mistério que chegue nisso, sem que tenhamos de mistificar.
Apesar de algumas pessoas usarem as histórias apenas para diversão, no seu sentido mais antigo as histórias são uma arte medicinal. (...) Ao lidarmos com as histórias, estamos a trabalhar com a energia arquetípica, que é muito parecida com a eletricidade. Ela pode animar e iluminar, mas no local errado, na hora errada e na quantidade errada, como qualquer medicamento pode produzir efeitos nem um pouco desejados. (…) Temos de nos certificar de que as pessoas estejam preparadas para as histórias que contam.
Clarissa Pinkola Estés
Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados