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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

09
Dez23

Feitiços

Sónia Quental

 

Contar histórias é trazer à baila, trazer à tona.

Clarissa Pinkola Estés

 

 

As histórias adormecem-nos e acordam-nos. Levam-nos aos territórios inexplorados da psique profunda, protegidos por uma simbologia dinâmica, mas branda, que impede o contacto direto e excessivo com o conteúdo psíquico que precisa de ser enfrentado, levado à sublimação. Como instrumentos de poder, pela sua capacidade de penetração na vida latente, podem ser manejadas para o bem e para o mal, ser bálsamos medicinais, conjuros, pragas.

 

Adolescente ainda, participei em formações de cosmética promovidas por marcas que os meus pais representavam, contexto em que me sentia como peixe fora de água, e nem as garrafinhas de vidro a marcar os lugares lhe davam um conforto mais líquido.

A experiência não foi desprovida de utilidade, porém – sobretudo a última, em que um formador capaz saiu do registo habitual para nos falar do poder das histórias. Confessou que, numa ida ao hipermercado, tinha tido a curiosidade de ler o rótulo das marcas mais baratas de cremes, surpreendendo-se por terem os mesmos ingredientes que aquela para a qual trabalhava, que praticava outra tabela de preços. Como convencer alguém, então, a gastar mais pelo mesmo? A resposta que nos propunha estava no poder das histórias.

Mostrou-nos a imagem de uma pedra e explicou como o seu valor percebido mudava em função da história que tinha a contar. Que produzia um efeito muito diferente dizer-se que era uma pedra de rua, uma pedra da Grande Muralha da China ou do muro de Berlim, ou uma pedra com origem na superfície lunar, o que a tornava a mais cobiçada de todas as pedras, mesmo que a aparência fosse a mesma. O que cabia ao vendedor era saber escolher as histórias que dessem glamour ao produto e criassem o desejo de compra.

Arcadas (12).jpg

Se bem que nunca tenha tido talento nem interesse pelas vendas, sei que é na sedução do glamour que vivemos, fascinados por histórias que viram feitiços, não raro cristalizados em fetiches (um bom momento para lembrar que o termo “fetiche” vem do português “feitiço”). No entanto, o glamour é apenas um simulacro da beleza, um artifício que satisfaz o apetite, não a fome.

É nessa esteira que vivemos consumindo histórias; tecendo-as, deslindando-as, sacudindo-as, enredados nelas, transportando-as vivas no corpo, exorcizando-as, tentando resolver o enigma da nossa, separar os fios da malha que nos toca. Somos alvos voluntários dos cantos de sereias, deixando-nos atrair e envolver, cativos felizes de contos do vigário urdidos por nós. Não é fácil deixar o transe coletivo, assumir a autoria das narrativas que nos vitimam e escolher reapropriar-nos de um olhar que não esteja enamorado pela ficção, fazendo ouvidos moucos ao embalo dos flautistas que espreitam a cada esquina.

Sem o glamour, a vida não está fadada ao desencanto. As histórias têm igual poder de remediar e inocentar. Há histórias que, em vez de lançar feitiços, os desfazem, num gesto de mágica meiguice (outro parentesco etimológico oportuno). As teias da ilusão cedem lugar ao numinoso. Uma pedra é uma pedra, venha de onde vier. Há mistério que chegue nisso, sem que tenhamos de mistificar.

 

Apesar de algumas pessoas usarem as histórias apenas para diversão, no seu sentido mais antigo as histórias são uma arte medicinal. (...) Ao lidarmos com as histórias, estamos a trabalhar com a energia arquetípica, que é muito parecida com a eletricidade. Ela pode animar e iluminar, mas no local errado, na hora errada e na quantidade errada, como qualquer medicamento pode produzir efeitos nem um pouco desejados. (…) Temos de nos certificar de que as pessoas estejam preparadas para as histórias que contam.

 

Clarissa Pinkola Estés

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

20
Jun23

"Twilight Zone"

Sónia Quental

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Live in Mordor too long and you come out looking like Gollum.

Neil Kramer

  

Some people have the idea that, if something is legal, it’s moral. (...) That's what government does: it tries to make the immoral moral by giving it the blessing of legality.

Thrive II

  

           

Não tendo atividade comercial nem envolvimento direto na utilização de espaços públicos para outros fins que não a locomoção, há realidades deste mundo que me passam ao lado. Talvez por isso ainda me escandalizem os atos de bizarria que se revestem de normalidade.

O dia em que perdi a inocência foi quando soube que aos meus pais, que tinham um estabelecimento comercial, era pedido o pagamento de uma taxa anual à Câmara por terem o reclame luminoso a fazer publicidade para a rua (!). A segunda vez deu-se no início deste ano, em que me proibiram de ser fotografada no mercado do Bolhão, explicando que era preciso enviar requerimento à Câmara, que o fundamenta no Código Regulamentar do Município pela “(…) pressão exercida na gestão da coisa pública local”. A terceira foi quando me disse uma esteticista que era obrigada a pagar licença para ter a rádio ligada e que o mesmo acontecia com as televisões nos cafés.

Neste rescaldo, e ainda atordoada pelos tentáculos do absurdo, apesar dos anticorpos mentais desenvolvidos desde 2020, chega-me um regulamento em que o Condomínio, maiusculado e tudo, como se pessoa fosse, quer ser meu pai. Pouco falta para ter de lhe pedir permissão para entrar em casa, perguntar como devo decorá-la ou em que posição devo dormir. Por falar nisso, tenho de me lembrar de questionar se vai oficializar a adoção e partilhar apelido comigo, embora duvide que me venha esfregar as costas ao banho, limpar a casa ou preparar as refeições.

Absorvida nestas cogitações, ocorreu-me o jogo infantil “Mamã, dá licença?”, com que nos condicionam desde a infância a acatar ordens arbitrárias, só porque a mamã diz que sim. Estranhamente, quando um qualquer ditame se transforma em lei, inspira nas pessoas o mesmo temor supersticioso que o sobrenatural, como se as ditas leis estivessem gravadas em pedra ou tivessem sido lapidadas nas tábuas de Moisés. Conheci gente que parecia ter uma relação erótica com os regulamentos e que aposto que os usa para se masturbar.

Nas cidades, as normas municipais conferem mais direitos aos edifícios do que às pessoas, aparecendo a proteção destas apenas como pretexto para a instalação de câmaras de rua e o assédio invisível de uma vigilância cada vez mais apertada, em que se vai perdendo o direito à privacidade e tudo se permite em nome da segurança. Prestamo-nos a esta relação paternal(ista) e perversa com os órgãos governativos: em troca de proteção, dispomo-nos a saltar quando nos mandam e a andar ao pé-coxinho ou dar passos à caranguejo quando assim determinam.

Nunca chegamos a atingir a maioridade de consciência, oferecendo a carne às molas da máquina burocrática, que nada busca além da autopreservação. Assumimos que a complexidade das leis e regulamentos esconde uma inteligência e finalidade que não se consegue enxergar entre os termos rebuscados que empregam, mas que insistimos estará por ali algures para nos protegermos do choque psicológico de um mundo em que o Mal manda só porque pode.

 

Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0