Os mornos são muito tolerantes.
Fabiano Goes
E, ao contrário da beleza, da excelência, da destreza – valorizadas na Antiguidade greco-romana —, a bondade, ao aparecer, deixa de o ser.
Sofia de Sousa Silva, in “Dos malefícios da bondade”
Passo a ferro numa tarde improvável de agosto, em que a temperatura – a do ar e a do ferro – me faz refletir noutros (res)caldos.
Reza um daqueles quase-poemas de Adília Lopes, não por acaso muito partilhado nas redes sociais:
Só gosto das pessoas boas
quero lá saber que sejam inteligentes artistas sexy
sei lá o quê
se não são boas pessoas
não prestam
É que, ironicamente, alguns dos grandes males que sofri e vi sofrer na vida foram praticados por pessoas boas. Algumas, por coincidência, eram sexy – artistas outras. Às vezes, inteligentes. Boas, boas é que não eram, embora tivessem o perfil e gozassem da fama.
Ouvi há dias alguém dizer com grande agudeza que uma das moléstias que mais assolavam a Humanidade era a ingenuidade. Correndo o risco de repetir o eco que fere o ouvido na prosa, direi que é essa ingenuidade que se confunde muitas vezes com bondade. É também ela que nos faz cair em armadilhas incautas quando andamos atrás do que é são e bom.
Foi animada desse desejo que procurei a companhia de pessoas que me pareciam boas e junto de quem me sentia muitas vezes diminuída, porque o meu branco era um branco muito sujo, comparado com o seu branco imaculado. Não queria apenas as que tivessem “bom fundo” – dispensava ter de pegar nos binóculos para encontrar a bondade, preferindo vê-la acenar, convidativa, desde a porta de entrada.
Mas a bondade que se pendura à porta raras vezes é o que apregoa. Chega-se dentro e a casa está às moscas, putrefacta – ou com um amontoado de bugigangas que não deixa respiro, porque o desejo de inclusão da pretensa bondade aceita tudo, sem critério. A frequente ânsia de fugir ao conflito e de não tomar posições que a comprometam com uma qualquer fação que não a neutralidade deixa-a num “não é carne nem peixe”, nem sim nem sopas, coadjuvante de uma paz podre bem mais danosa do que o conflito aberto. Aprendi cedo que quem é amigo de todos não é amigo de ninguém e cedo conheci a perversidade das boas intenções que motivam os “bonzinhos”, profissionais de um desporto a que deram o nome medonho de “tolerância”. Para meu espanto e horror, descobri também as serpentes enroladas que se escondem por baixo das mais bem-cheirosas flores.
A verdadeira bondade não é uma qualidade estática, previsível ou programável. Não tem doutrina e, por não ser dotada de traços fixos, nem sempre é reconhecível a olho nu. Já a integridade, que prefiro à bondade e que está menos na moda, emite à distância o vigor que falta à última. A integridade não oferece descontos vitalícios e indiscriminados, como a bondade, em que a época de saldos dura o ano todo. Inerentes à integridade são a honestidade, a exigência e a verdade – consequentemente, o Amor. A integridade é fiel à consciência, que procura ativamente desenvolver, não ao que passa por bondade aos olhos de todos. A integridade é expressão do ser inteiro, como lembra a sua etimologia, não de um coração toldado, que acha que à bondade não faz falta inteligência nem arte.
São poucas as pessoas que praticam o oposto da bondade; da mesma forma, poucas são as genuinamente boas. A grande fatia do meio, a dos que julgam pender para o lado do bem, é a dos que facilitam o mal por aquiescência ou omissão. Basta para isso estar-se neste mundo sem um questionamento permanente de si, do próprio mundo, do que se pensa saber. Basta o espetáculo lastimável de se limitar a esgrimir opiniões sobre a política e a sociedade, sem nunca ousar ir além do mainstream.
Nas palavras de Neil Kramer, “Se, como adultos, não nos importamos com a Verdade, não nos importamos com a vida. Não dignificamos a vida”. O posicionamento que corresponde à maioria é o de não se importar com nada que não lhe diga diretamente respeito ou que ameace a sua segurança psicológica. As pessoas fogem de encontrar a verdade e de olhar para o seu abismo interior. Escolhem, deliberadamente, não ver, não saber, para não terem de agir nem de sentir a culpa por não agir. Para poderem continuar a levar a vida que sempre levaram, uma vida em que a bondade é um dos consolos que usam para se convencerem de que fazem o que podem.
Quais as verdadeiras características de um adulto? Pensar, encarnar a Verdade, expressar e transmutar a dor. (...) a maior parte do género humano não quer pensar, não quer conhecer a Verdade e não quer ter nada que ver com a dor. Essas são coisas a evitar.
Neil Kramer
Mas não pode haver bondade onde a complacência e a mentira sejam escolhidas como modo de vida, sendo a mentira o que marca distintamente a maldade, como propõe M. Scott Peck na obra Gente da Mentira, em que ensaia uma análise científica da maldade, à luz da psicologia e da espiritualidade: “Nestes últimos anos, tenho aprendido que a maldade – seja humana ou demoníaca – é surpreendentemente obediente em relação à autoridade”.
Não preciso de verbalizar, creio, o muito que se pode extrapolar daqui. Arrisco apenas dizer que a maldade também ataca pelas boas intenções e pela moral instituída. A medida que Scott Peck, secundado por Neil Kramer, sugere para a grandeza de uma pessoa – a capacidade para o sofrimento – é precisamente o que falta aos bonzinhos, que recusam ver e sofrer com aquilo que veem para se tornarem verdadeiramente bons. Estes são sempre sexy.
In Azur: Welcome to Your Dark Side
Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados