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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

24
Mar24

Louvor noturno

Sónia Quental

me dá a mão, me cura de ser grande

Adélia Prado

  

 

Quis celebrar o Dia Mundial da Poesia com um livro que me falasse à alma e aos sentidos, e que acontece enquadrar-se também na Páscoa, um bom número de pretextos para celebrar a minha adoração poética pela brasileira AdéliaCaptura de ecrã 2024-03-22 213150.png Prado. A segunda antologia que lhe conheço, Tudo que Existe Louvaráé um volume que, ao contrário do recomendável na poesia, se lê a galope acelerado, em travos profundos e extáticos. Se os excessos do arrebatamento obrigam a pousá-lo sucessivas vezes, o mesmo enlevo impele a pegar-lhe de novo, num movimento irresistível de inspiração e expiração que a alegria percorre sem remorso.

Uma alegria visual, sensorial, como a do “Azul sobre amarelo, maravilha e roxo”, que se eleva pela beleza e devoção, desprendendo-se de uma experiência a um tempo poética e religiosa, que aqui arde no fogo tantas vezes abandonado dos lugares comuns. Por isso insistem os prefaciadores da obra em que “Adélia provoca escândalo”, um escândalo bem-vindo, ao mostrar “(…) que a ortodoxia é uma forma radical de heterodoxia e a mais ínfima reverência deve ser mais temida do que a maior blasfémia” (J. Tolentino Mendonça e M. Cabedo e Vasconcelos).

Os títulos dos poemas são parte deste banquete comemorativo, inaugurado com pompas de trombeta pelo estrepitoso “Com licença poética”, o manifesto em que Adélia Prado contrapõe desafiadoramente o seu “anjo esbelto” ao “anjo torto” de Drummond de Andrade no subtexto, apresentando todo um programa de Alegria que casa com o seu sexo de Mulher.

Já não sei que poemas leio pela primeira vez – soam-me todos novos, fulgurantes, brilhando na treva da poesia que hoje se publica, com uma porção igual de arrebatamento e ternura. Do extático ao estático, dou comigo a sorrir até doer numa noite de sexta-feira em que não quero estar senão aqui: levitando.

 

      Harry Potter

Quando era criança

escondia-me no galinheiro

hipnotizando galinhas.

Alguma força se esvaía de mim,

pois ficávamos tontas, eu e elas.

Ninguém percebia minha ausência,

o esforço de levantar-me pelas próprias orelhas,

tentando o maravilhoso.

Até hoje fico de tocaia

para óvnis, luzes misteriosas,

orar em línguas, ter o dom da cura.

Meu treinamento é ordenar palavras:

Sejam um poema, digo-lhes,

não se comportem, como, no galinheiro,

eu com as galinhas tontas.

 

        Adélia Prado

 

18
Mar24

Homenagem atrapalhada

Sónia Quental

               

Tendo amanhecido hoje com a notícia da morte de Nuno Júdice, achei por bem dedicar-lhe um in memoriam atabalhoado, deixando as homenagens condignas a quem de maior talento e conhecimento.

Tive o privilégio de me cruzar com Nuno Júdice no papel de arguente quando apresentei à FLUP a minha dissertação de mestrado, nascia o ano pouco grato de 2010. Verdade seja dita, foi um privilégio que teria dispensado, porque tudo o que tinha a dizer, passados 3 anos e 150 páginas a espreitar para debaixo da saia dos anjos, foi que não lhes lobrigava o sexo. Não havia forma mais extensa ou elaborada de o transmitir por palavras, por isso creio ter tido nessa tarde uma das poucas experiências extracorpóreas por que passei na vida, em que deixei o corpo transpirar aflição e me dissociei daquele embaraço pantanoso de que não tinha como sumir.

Enquanto poeta, não posso dizer que a poesia discursiva de Nuno Júdice me cantasse ao ouvido, que prefere os poemas como os óleos essenciais: simples e concentrados, com um poder maior nas poucas palavras que convocam. Ainda assim, e porque o tema da inspiração foi o pretexto para o nosso breve encontro, deixo abaixo o poema que reproduzi num dos pórticos do meu Todas as Manhãs da Arte. A moral da história foi ter percebido que era feio andar a olhar para as partes privadas dos anjos, com régua e esquadro na mão. Dedico-me desde então a aprender-lhes a língua. Eles chegam-se mais.

 

Não sei o que é a inspiração. Tenho falado dela,

e sei que os gregos a tomaram como ponto de referência quando,

nas suas poéticas, distinguiram entre a obra humana e o desígnio

divino. Mas esses deuses, que cicatrizavam nas feridas abertas pela

inquietação do homem quanto ao destino, foram desaparecendo, enterrados

sob os escombros das cidades antigas, ou esculpidos no mármore

que serviu de entulho para novas cidades. E a inspiração ficou

reduzida a um alento vago, que nasce da zona obscura do espírito

em que se formam as imagens. Depois, ninguém mais acreditou

na hipótese de um sopro metafísico, como se o poema se fizesse

apenas a partir de palavras ou de ideias, e não houvesse na sua

substância mais profunda uma cintilação que envolve o verso e o

impede de ganhar a ferrugem do tempo.

 

Nuno Júdice 

 

08
Fev24

De quatro folhas

Sónia Quental

           

Acredito nos amores à primeira leitura como nos amores e desamores à primeira vista. Infalíveis, uns e outros, ao olhar aguçado da experiência, à intuição que nas mulheres apura o passar do tempo, quando chegam a descobrir que não é cego o amor, mas vê bem ao longe.

Como a poesia de Adélia Prado, amei à primeira leitura o talhe dos versos de Amalia Bautista, que me persuadiram a comprar-lhe o Trevo. Não sendo feminista, há um sentir do feminino ao mesmo tempo selvagem e delicado que esparsamente me chama ao seu resgate. Estes vultos na poesia, outros na pintura e nas coisas do espírito, cativam-me pela violência simples e crua da emoção a caminho da transfiguração, de um corpo devocional do feminino com uma fisiologia distinta em cada uma delas, oscilando entre a adoração e o esconjuro.

Num mundo dominado por pretensões de racionalismo, lembram-nos que é no escuro que caminha a mulher, que por lá a leva uma fome primordial que resiste a planos, estratégias, à mais residual tentativa de controlo. Para apaziguar essa fome, há o ato de um canibalismo amoroso que não procura desculpas, o instinto acirrado de uma presa antiga, mantida a pão e água, como Amalia Bautista no seu “Em dieta”:

Deitei-me sem jantar e nessa noite

sonhei que te comia o coração.

Deveria ser por causa da fome.

Enquanto eu devorava aquela fruta,

que era doce e amarga ao mesmo tempo,

tu beijavas-me com os lábios frios,

mais frios e mais pálidos do que nunca.

Deveria ser por causa da morte.

 

           Acudiu-me por estas linhas a lembrança de um colega que, quando foi promovido a diretor, se propôs o desafio de ver quantas mulheres conseguia fazer chorar no gabinete. Eu também chorei uma vez, tenho as lágrimas como preciosas e atirei-lhas quais pérolas de Virgem contrariada, que ele não saberia apreçar, apesar da cobiça que tinha por elas. Lágrimas que uns querem ganhar, erguer como troféus, e a outros espantam.

Há-os como ele, que não sabem que é com as lágrimas que a mulher se regenera e segura o mal à distância: “(…) há algo na pureza das lágrimas verdadeiras que anula o poder do demónio”, diz Clarissa Pinkola Estés no seu formidável Mulheres que Correm com os Lobos.

Depois da minha oferta, fiz o que outras não fizeram: juntei o resto das lágrimas e vim embora. Ainda são elas que me salvam quando fico sem jantar e me apetecem os corações que um dia me deixaram à míngua.

 

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25
Jan24

Futebol e poesia

Sónia Quental

Corria o malfadado ano de 2021 quando o acaso me levou ao encontro de um livro de poesia que me encantou, e o encanto desdobrou-se em espanto quando descobri que o autor era um futebolista português, contando então apenas 26 anos e a fama de longa data de ler nos balneários.

Gosto de quando os meus preconceitos se estilhaçam com um garbo como o daquela poesia. Gosto de descobrir pessoas que não são uma coisa só, mas amálgamas brilhantes de facetas aparentemente irreconciliáveis. O improvável é uma fonte imorredoura de fascínio, embora nem sempre daqueles que elevam, como, por exemplo, o fascínio profundo que senti recentemente quando um profissional formado em Comunicação tentava ensinar-me que na tradução e na escrita não há certo nem errado, mas apenas formas diferentes de se dizer a mesma coisa. Se acabei convencida de alguma coisa, foi de que os cursos de Comunicação têm a mesma substância que os mestrados em Gestão de Campos de Golfe que uma professora universitária em tempos me disse existirem no Algarve (deixo a ilação ao leitor benévolo).

Deste nosso futebolista, Francisco Geraldes, não cheguei a comprar o livro, mas copiei à mão o poema que sei que escreveu para mim (embora ele não o saiba), de seu título “Divino Adormecido”:

 

Rezo a qualquer instância superior

que me ressuscite

e me devolva a alegria

de voltar a ouvir o silêncio contigo.

 

Foi aqui que chegou a terceira dose de assombro: um futebolista poeta que reza e sabe ouvir o silêncio. Já não podia mais. Depois disto, fiquei quase com vontade de ir ver futebol, conhecer a valsa deste bardo no relvado, num jogo sem som, como todos os encontros felizes.

 

Cordas - 2.jpg

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

20
Jan24

Conjunção adversativa

Sónia Quental

Enquanto esperava, vi-a trocar o calçado de rua por sapatos de salto alto, ligar o som de discoteca e exteriorizar uma versão turbinada da figura à civil que tinha entrado, qual Clark Kent em posse da sua capa milagrosa: uma ex-cozinheira metamorfoseada em coach.

Se cheguei de pé atrás, saí à caranguejo, arrepiada pela criptonite do coaching, mas houve um momento alto, fora a música, que salvou a ocasião, quando a nossa heroína distribuiu folhas coloridas pelos presentes, pedindo que desenhássemos um sonho. À minha volta, via braços de gula a riscar casas, famílias, profissões, viagens, e eu, mesmo que soubesse desenhar, não saberia o quê. A mesma coisa que em criança, quando a minha mãe me dizia para pensar em coisas boas nas noites em branco, e eu desconhecia o conceito.

A única coisa que me ocorreu na sessão, talvez pelo amarelo da folha, foi o sol, que fui obrigada a mostrar e a dizer o que era em voz alta, como se não se percebesse, erguendo-o de novo no final para a fotografia de grupo, que devo ter enterrado depois de receber. A descoberta ficou, nem por isso fácil de instrumentalizar: queria ser sol, achado que se atou a um dos dois poemas que trago no imo, ambos de três versos, além do título, e de autores de língua portuguesa. Este chama-se “Solar” e é da brasileira Adélia Prado, um nome que pouco se ouve por cá:

Minha mãe cozinhava exatamente:
arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.
Mas cantava.

Cheguei a dá-lo nas aulas como exemplo do poder da palavra certa no sítio certo – neste caso, da conjunção adversativa do último verso, que alça a banalidade da declaração à condição lírica. Fosse um “e”, em vez de um “mas”, e o efeito era outro.

Ficaram-me o “mas” e o “não” pendurados na boca quando me deram a fala, sinetes na fronte, no sobrolho franzido, porteiros de toda uma sina. Precoce, tornei-me adversativa antes de saber classificar a palavra, aprender a deslindar o trigo e o joio, meu trabalho de Hércules. Só que não bastava dizer “não”, obstinar os “mas” – havia que depurar a matéria plúmbea para que harmonias brotassem. Não basta ser-se soalheiro: é preciso ser-se solar.

Pensando no poema, na folha amarela, se me atrevo a um sonho, é volver copulativa, mesmo que  perca poesia e contraste. Arredondar cantos, desenhar um destino onda, em que não precise de salto alto para me fazer maior. Quando deixar de ser vértice, serei matéria solar.

 

10
Ago23

Os bons e os bonzinhos

Sónia Quental

Os mornos são muito tolerantes. 

Fabiano Goes

 

 

E, ao contrário da beleza, da excelência, da destreza – valorizadas na Antiguidade greco-romana —, a bondade, ao aparecer, deixa de o ser. 

Sofia de Sousa Silva, in “Dos malefícios da bondade”

 

 

 

Passo a ferro numa tarde improvável de agosto, em que a temperatura – a do ar e a do ferro – me faz refletir noutros (res)caldos.

Reza um daqueles quase-poemas de Adília Lopes, não por acaso muito partilhado nas redes sociais:

 

Só gosto das pessoas boas

quero lá saber que sejam inteligentes artistas sexy

sei lá o quê

se não são boas pessoas

não prestam

 

É que, ironicamente, alguns dos grandes males que sofri e vi sofrer na vida foram praticados por pessoas boas. Algumas, por coincidência, eram sexy – artistas outras. Às vezes, inteligentes. Boas, boas é que não eram, embora tivessem o perfil e gozassem da fama.

Ouvi há dias alguém dizer com grande agudeza que uma das moléstias que mais assolavam a Humanidade era a ingenuidade. Correndo o risco de repetir o eco que fere o ouvido na prosa, direi que é essa ingenuidade que se confunde muitas vezes com bondade. É também ela que nos faz cair em armadilhas incautas quando andamos atrás do que é são e bom.

Foi animada desse desejo que procurei a companhia de pessoas que me pareciam boas e junto de quem me sentia muitas vezes diminuída, porque o meu branco era um branco muito sujo, comparado com o seu branco imaculado. Não queria apenas as que tivessem “bom fundo” – dispensava ter de pegar nos binóculos para encontrar a bondade, preferindo vê-la acenar, convidativa, desde a porta de entrada.

Mas a bondade que se pendura à porta raras vezes é o que apregoa. Chega-se dentro e a casa está às moscas, putrefacta – ou com um amontoado de bugigangas que não deixa respiro, porque o desejo de inclusão da pretensa bondade aceita tudo, sem critério. A frequente ânsia de fugir ao conflito e de não tomar posições que a comprometam com uma qualquer fação que não a neutralidade deixa-a num “não é carne nem peixe”, nem sim nem sopas, coadjuvante de uma paz podre bem mais danosa do que o conflito aberto. Aprendi cedo que quem é amigo de todos não é amigo de ninguém e cedo conheci a perversidade das boas intenções que motivam os “bonzinhos”, profissionais de um desporto a que deram o nome medonho de “tolerância”. Para meu espanto e horror, descobri também as serpentes enroladas que se escondem por baixo das mais bem-cheirosas flores.

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A verdadeira bondade não é uma qualidade estática, previsível ou programável. Não tem doutrina e, por não ser dotada de traços fixos, nem sempre é reconhecível a olho nu. Já a integridade, que prefiro à bondade e que está menos na moda, emite à distância o vigor que falta à última. A integridade não oferece descontos vitalícios e indiscriminados, como a bondade, em que a época de saldos dura o ano todo. Inerentes à integridade são a honestidade, a exigência e a verdade – consequentemente, o Amor. A integridade é fiel à consciência, que procura ativamente desenvolver, não ao que passa por bondade aos olhos de todos. A integridade é expressão do ser inteiro, como lembra a sua etimologia, não de um coração toldado, que acha que à bondade não faz falta inteligência nem arte.

São poucas as pessoas que praticam o oposto da bondade; da mesma forma, poucas são as genuinamente boas. A grande fatia do meio, a dos que julgam pender para o lado do bem, é a dos que facilitam o mal por aquiescência ou omissão. Basta para isso estar-se neste mundo sem um questionamento permanente de si, do próprio mundo, do que se pensa saber. Basta o espetáculo lastimável de se limitar a esgrimir opiniões sobre a política e a sociedade, sem nunca ousar ir além do mainstream.

Nas palavras de Neil Kramer, “Se, como adultos, não nos importamos com a Verdade, não nos importamos com a vida. Não dignificamos a vida”. O posicionamento que corresponde à maioria é o de não se importar com nada que não lhe diga diretamente respeito ou que ameace a sua segurança psicológica. As pessoas fogem de encontrar a verdade e de olhar para o seu abismo interior. Escolhem, deliberadamente, não ver, não saber, para não terem de agir nem de sentir a culpa por não agir. Para poderem continuar a levar a vida que sempre levaram, uma vida em que a bondade é um dos consolos que usam para se convencerem de que fazem o que podem.

Quais as verdadeiras características de um adulto? Pensar, encarnar a Verdade, expressar e transmutar a dor. (...) a maior parte do género humano não quer pensar, não quer conhecer a Verdade e não quer ter nada que ver com a dor. Essas são coisas a evitar.

Neil Kramer

 

Mas não pode haver bondade onde a complacência e a mentira sejam escolhidas como modo de vida, sendo a mentira o que marca distintamente a maldade, como propõe M. Scott Peck na obra Gente da Mentira, em que ensaia uma análise científica da maldade, à luz da psicologia e da espiritualidade: “Nestes últimos anos, tenho aprendido que a maldade – seja humana ou demoníaca – é surpreendentemente obediente em relação à autoridade”.

Não preciso de verbalizar, creio, o muito que se pode extrapolar daqui. Arrisco apenas dizer que a maldade também ataca pelas boas intenções e pela moral instituída. A medida que Scott Peck, secundado por Neil Kramer, sugere para a grandeza de uma pessoa – a capacidade para o sofrimento – é precisamente o que falta aos bonzinhos, que recusam ver e sofrer com aquilo que veem para se tornarem verdadeiramente bons. Estes são sempre sexy.

 

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In Azur: Welcome to Your Dark Side

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

06
Mai23

A pedra no meio do caminho

Sónia Quental

Anfiteatro a dançar (4).jpg

(…)  já não se trata de mascarar com eufemismos, trata-se de inverter o próprio sentido das palavras.

 Jorge Soley

 

Jesus and Buddha (...) were just guys who got tired of all the bullshit.

Howdie Mickoski

 

 

A par das notícias sensacionalistas e do terrorismo puro em que os meios de comunicação social se empenham e que tendemos a imitar nos nossos círculos reduzidos, noto o cultivo generalizado e inverso de uma linguagem eufemística que, para mim, culmina na palavra “desafios”. A partir de um ponto que não sei precisar no tempo, deixou de haver problemas, dificuldades, obstáculos, preocupações, crises, desgostos, contrariedades para haver apenas “desafios” a ultrapassar.

Concordando com Manuel Monteiro, quando diz que “a elegância é quase sempre o melhor remédio” (em questões da língua e não só), sinto-me esvair de todos os vestígios de graça se, passando por um mau bocado, ouço referirem-se-lhe como um momento “desafiante” ou atribuírem a causa à mudança de estação. A ligeireza e as frases vazias que, mais do que pontuar, recheiam os discursos são sinais evidentes da superficialidade e do engano deliberado em que se vive, desse horror à negatividade numa cultura que, ironicamente, vive fomentando o medo, com as pessoas competindo entre si pelo título de mais desgraçada – perdão, daquela que se vê a braços com o maior número de desafios.

Ocorrendo-me o poema “No meio do caminho tinha uma pedra”, percebi que Drummond estaria em maus lençóis (ou em lençóis menos convidativos) se quisesse publicá-lo hoje. Fui pesquisá-lo para o relembrar e eis que me deparei com um artigo de psicanálise que, logo depois de explicar o significado da pedra, passa a advertir que os entraves que simboliza são uma oportunidade de aprendizagem (outra expressão da moda), num mundo relativo, em que “pedra” e “caminho” não podem ter significados absolutos. Não sou dada à profanidade, mas confesso que quase que me saía. Se devemos elogiar a pedra ou apegar-nos a ela é o que se discute a seguir, e nesta altura já tenho a cabeça a andar à roda. Não sei qual a resposta certa, mas vou arriscar o elogio, devidamente ensanduichado na conversa assertiva que o sujeito poético teria com a pedra, não sem começar por lhe perguntar o seu pronome. Disse “sujeito poético”, mas queria dizer “autor”, porque a escrevente do artigo diz que afinal a pedra é uma hipértese, representando o filho que Drummond “perdeu”.

Admito que este texto tomou um rumo totalmente imprevisto, em torno de uma pedra em que tropecei por acaso, mas que nem por isso me travou o caminho, pelo que posso confirmar que a pedra sempre é relativa e um desafio superável! Tive de segurar as palavras enquanto ia na rua, para também eu não as perder e ser obrigada à hipértese. Felizmente, tinha ido prevenida com uma folha de papel para me aliviar e este texto chegou ao fim quase sem eu perceber.

“E agora, José?”…

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0