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Há 5 anos, era o papel higiénico; hoje, eram os garrafões de água - não duvido de que os mesmos.
Os impávidos borram-se mais, mas cansam-se menos.
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Há 5 anos, era o papel higiénico; hoje, eram os garrafões de água - não duvido de que os mesmos.
Os impávidos borram-se mais, mas cansam-se menos.
Maria Benedita sempre quisera viver em tempos diluvianos. No dia da desinfestação geral, acordou tarde de um sonho em que inspecionava a Arca de Noé para garantir condições mínimas de salubridade.
Quando assinara a escritura do apartamento, mal podia prever que em breve veria concretizada a fantasia de pragas, inundações e assaltos numa zona até então pacata do Porto. À data funesta do controlo de pragas, já contava com dois pedidos de casamento de forasteiros que a tinham seguido da estação de metro, sinal de que o patriarcado continuava a ganhar terreno.
Coincidência ou não, os supramencionados tinham afluído em magote para o prédio que habitava, onde se espremiam num T1 sem varanda, deixando no elevador o cheiro entranhado de quem não vai a banhos, revezado pelo perfume a caril que penetrava nos apartamentos às quatro da tarde em ponto.
No assalto à garagem, felizmente, só tinha ficado sem o volante do automóvel, os óculos de sol de 500 € que tinha comprado em saldos e as moedas pretas que tinha posto de parte para dar aos pobres. Mas depois vieram os percevejos e as baratas.
Admitia que a princípio ficara contrariada com o verão passado em sobressalto. Chamou-se a Proteção Civil, que imitou o exemplo de Pilatos: encolheu os ombros e foi-se embora. O foco da infestação já fora intervencionado e baratas nem vê-las. Dos 18 apartamentos do edifício, só 17 estavam infestados. Os relatórios dos especialistas neste caso de nada serviram, nem os vídeos com a malandragem da bicharada. Sem baratas no Foco, nada a fazer. A higiene não podia ser mandada.
Como mulher do Norte, Maria Benedita sabia apertar limões para fazer limonada, que o mesmo é dizer: aproveitar os insetos para fazer batidos proteicos. Todos os desafios são uma oportunidade disfarçada, e a próxima experiência culinária era Barata à Gomes de Sá. Elas já se tinham afeiçoado aos tachos e ao frigorífico, e a veia empreendedora de Benedita tinha-lhe dado a ideia de lançar uma nova marca de insetos comestíveis. Foi então que marcaram a desinfestação geral, com fatura em nome dos condóminos.
É nesse dia que a encontramos, despenteada e a cambalear depois de perceber que o despertador já tinha tocado três vezes. Na mesinha de cabeceira estava a “Lista de Palavras a jamais Pronunciar” que o personal trainer lhe tinha dado. Quando cometia o pecado de pensar que já não podia mais, a penitência estava marcada: recitar 108 Om em posição de meia-lua. Era preciso pensar positivo e nunca aceitar derrota. Furado o plano A, havia sempre outra letra no alfabeto: lembrou-se de que tinha ouvido o presidente da Câmara anunciar na televisão que o Obélix doara à cidade o seu espólio de menires, construções jeitosas para habitação: T0 com kitchenette e varanda. Se tivessem tomada e internet, valia a pena investir, a menos que a obrigassem a pagar taxa turística. Tomou uma nota mental. De resto, já estava acostumada às aragens.
NOTA: Crónica baseada em factos reais, com efeitos de dramatização verídicos. Só o nome da vítima foi alterado, para evitar novas propostas de casamento.
Não é preciso ser-se entendido em culinária para se saber que nem todas as batatas casam com todos os nabos. Tendo padecido do afã que muitos sentem em reunir a maior diversidade de vegetais para tornar a sopa mais nutritiva, a dado passo fizeram-me notar que ficava descaracterizada. Falava-se literalmente de sopa, mas, sabendo agora como a culinária se presta às mais ricas metáforas, não deixo que se percam por desatenção.
E quem diz “sopa” podia dizer “salada”. Há alimentos que não convém misturar, porque fermentam e são nocivos para o organismo. Não obstante, não só tentam acenar-nos com a ideia de que, quanto mais variados os ingredientes adicionados à salada, melhor, como insistem em que não há fruta podre – se houver, a culpa é do caixote em que não foi devidamente aclimatada. Com jeitinho, a culpa se calhar até é minha. Sou assim animada a contrariar as evidências dos sentidos, incluindo o mau cheiro do pomo, o bolor que o devora, a minhoquinha embutida, dedicada às lides da mineração. Apontar semelhantes indícios é agir de má-fé, motivada por preconceito xenófobo ou racista, e incorrer em discurso de ódio contra a manga que vem de avião.
É assim que, ensinados a ignorar o óbvio e a atribuí-lo aos delírios da imaginação, quando não à perfídia dos instintos, acolhemos de braços abertos o exotismo vegetal, num caos que não é estranho ao nosso mosaico humano crescentemente eclético, zeloso do mito do bom selvagem. Catequizados que somos a não fazer julgamentos, temos como pobres vítimas os assaltantes e agressores que montam operações aqui na zona, mais sujeitos, nós, a receber uma qualquer acusação de crime de ódio – ofensa capital –, que logo nos encosta à extrema-direita, remédio santo para calar as mentes teimosamente fechadas à diversidade.
A quem não gosta de julgar pelas aparências, aconselho a que se guie pelo cheiro: esse, como o algodão, não engana. Foi pelo cheiro que um grupo de indivíduos de determinada nacionalidade montou arraial aqui no prédio: primeiro, era o odor corporal dos próprios, que tornava a partilha do elevador experiência penosa. Depois, o cheiro intenso da comida que cozinham às 4h e 5h da tarde e que se foi alastrando do último andar para baixo, invadindo o interior dos outros apartamentos. As visitantes mais recentes foram as baratas, que, quando fui pesquisar à internet, descobri serem um inseto cosmopolita, o que me causou uma certa inveja.
São dez pessoas ao monte, ou quase, num T1 transformado em chiqueiro, no meio das baratas que devem ter domesticado e que agora marcham sem cerimónia pelos restantes andares, no seu garbo conquistador, mais velozes ainda do que o cheiro. Não há rainha, santa ou não, que venha e se atreva a dizer: “São rosas, senhor, são rosas!”. Não, nem rosas nem flor que se cheire: são mesmo baratas. Eu cá já sonho com elas, enquanto me fustigo pelo anseio retrógrado de habitar em ambientes salubres, à cata da semente de ódio que há em mim, real fonte de infestação.
Um consolo me resta quando for sitiada: a sofisticação de viver num prédio multicultural.
One professor of race relations, Bikhu Parekh, has even suggested that Britain should change its name, which has so many negative historical connotations for millions around the world. Now that Britain has become so ineradicably multicultural, he says, there is no justification for it to be ‘British’ any more.
Saio nas manhãs de domingo à hora a que apenas os turistas japoneses cobrem de flashes a Capela das Almas. Nesse momento de transição, em que a luz e a sombra dão de ombros uma com a outra, a coexistência de fenómenos contrários está em evidência.
Ao lado da loja de manutenção de bicicletas, onde um grupo de ciclistas dispostos marca encontro todas as semanas, emerge de uma cave um bando de vampiros, sofrendo as dores do alvorecer com um montinho de erva na mão, que deduzo não será incenso nem mirra, contemplando-o como que esperando que a luz do dia também o ponha a fumegar. Não fico para ver, embora note que a indumentária daquelas que já não posso jurar serem do sexo feminino deixa pouco à imaginação.
O Facebook avisa-me que é dia de eleições. No Twitter (X), alguém brada que as mulheres não são nada sem a vocação da maternidade. Quase me engasgo com a torrada, mas consigo reunir forças para lhe enviar à distância a minha tísica compaixão maternal. Atravessa-me o pensamento a experiência do horrendo e do sublime no baile de domingo passado, sem saber o que esperar deste. Ao passo que o sublime é fugaz, o horrendo tem o hábito de se pegar, por mais que o sacuda.
Pelo caminho, a memória da semana traz-me ecos sumidos: encaixa a bacia, aperta os glúteos. Pessoas com a chave na mão pedem duas vezes ajuda para lhes abrir a porta de casa, apontando-me a vocação a que sacrifiquei a maternidade: facilitar entradas.
Quisera seguir os passos de Sophia neste meu caminho da manhã, mas não é época de figos pretos no mercado, que tem hoje o seu dia de descanso. Aqui não há cigarras que cantem o silêncio de bronze – apenas homens que sacodem os tapetes do carro. Onde quer que a manhã pouse, o sublime chega-se com a sua lágrima de mel numa paisagem de azulejos, harmonias e contrastes. E o amor do Invisível pelas coisas visíveis afigura-se ralo só a quem precisa de altar para deitar os joelhos ao chão.
Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados
Many of the trees along the way were hung with plastic bags or the remnants of sheets of polythene that flapped in the wind like Buddhist flags on a high Himalayan plain.
Theodore Dalrymple
Fiquei a burilar durante meses numa crónica que Tiago de Oliveira Cavaco publicou no Observador a propósito das mulheres que se maquilham nos transportes públicos, gesto que se dizia tentado a atribuir à humildade. Tendo eu este atributo na mesma categoria que o Big Foot e as famílias felizes (ouvem-se relatos, mas os avistamentos são raros), a explicação ficou-me atravessada, sem que alguma vez a aceitasse por completo, pela sua ingenuidade um tanto ou quanto perra.
Tão distinta é a origem que encontro para o fenómeno que não hesito em relacioná-lo com o lixo. Na breve passagem que fiz por Londres, no último ano, a impressão que a cidade me deixou foi de tremenda deceção, em parte devido à evidente falta de planeamento urbano, ao lixo e sujidade que vi nas ruas, que me levaram a pensar que o Porto, um concorrente de peso ao novo troféu de Cidade Imunda, teria de se esforçar um pouco mais para lhe chegar aos calcanhares.
Prova de que não me equivoquei é a análise que Theodore Dalrymple – descobri-o mais tarde – tem vindo a dedicar ao tema do lixo em Inglaterra, em artigos avulsos e na obra Litter, que lhe é inteiramente votada. A cultura em que Dalrymple enquadra a prática generalizada de deitar lixo para o chão corresponde à de uma nova geração em que os hábitos crescentes de consumo de fast food e o desprezo pelas tradições familiares se aliam à apoteose de uma autenticidade e espontaneidade desregradas. O retrato pintado é de uma população bárbara que, divorciada de valores históricos e religiosos, não pode senão prestar culto a si mesma (cabe aqui a vénia ao autor, que é ateu, mas reconhece o lastro da religiosidade).
Britons now drop litter as cows defecate in fields, or snails leave a trail of slime.
Theodore Dalrymple
Não me parece difícil encadear esta síntese com a reflexão sobre as mulheres que se maquilham nos transportes e que trazem espelhinhos consigo, como Obélix trazia o seu escudo, nesse belo paralelismo que Tiago Cavaco faz na sua crónica. Embora o nosso país viva outra realidade, aventuro que o seu desfasamento face à sociedade inglesa contemporânea já não será tanto quanto poderia imaginar-se, e o amontoado de lixo aí está para sugerir que seguimos no mesmo trilho e que não são apenas migalhas que deixamos para trás. A diluição entre as esferas do público e do privado, a apropriação abusiva dos espaços partilhados e o exibicionismo vulgar, que acompanha a perda da introspeção e da profundidade em que já aqui tenho insistido, explicam quer a desenvoltura com que certos atos, antes considerados íntimos, se desempenham agora em público quanto a forma descomplexada como o lixo e o barulho atravessam paredes, infestam condomínios e degradam cidades.
Os espelhos que as pessoas carregam, esses, não são apenas acanhados em dimensão, mas afoitamente distorcidos. Tenho para mim que seremos sempre chamados a prestar contas de como os polimos, se os empregamos para efeitos cosméticos de ocasião, para uma contemplação narcísica ou para um real caminho de aperfeiçoamento que devolva à beleza a sua virtude.
Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados
Embora não seja fã de Bruno Nogueira, a crónica sobre o Porto que publicou há dias na revista Sábado fez-me pender uma das asas uns milímetros na sua direção e desafiar-me de novo a ligar os pontos.
Fez-me lembrar uma interpretação intrigante que encontrei, era ainda estudante, na obra Psicanálise dos Contos de Fadas, em que o autor (outro Bruno, por sinal), a propósito d’ “A Bela Adormecida”, sugeria que o despertar da heroína do sono de 100 anos não se devera tanto ao príncipe eleito, que conseguira finalmente atravessar a sebe de espinhos, mas ao terminar da maldição. Trocando por miúdos: fosse quem fosse o desgraçado a acercar-se do castelo, as sebes abrir-se-iam para lhe dar passagem, simplesmente porque tinha chegado a altura (uma interpretação nada romântica, bem sei).
Diz o Bruno de cá, que vê no Porto um país dentro do país maior que é Portugal, que “Uma cidade não é o que se vê no mapa” e que – aqui em paráfrase –, sejam quais forem os movimentos que a sacudam, continuará a ser aquilo que sempre foi. Tem um espírito próprio, que lhe sobrevive e que contagia quem nela se adentra, ditando desde logo se são compatíveis ou não (isto sou eu que digo). Não é preciso fazer match.
É aqui que entra a história da Bela Adormecida, não porque ao Porto falte viço ou porque tenha sido amaldiçoado por alguma fada desavinda, mas porque o espírito do lugar não é só do lugar: é dos tempos também. Quero com isto dizer que, mesmo quando não é um conjunto de fatores a imprimir a mudança ao espírito da cidade, os espíritos transitam quando chega a hora disso, porque a cidade não deixa de fazer parte de um sistema maior, também ele governado por ritmos, ciclos e qualidades a expressar. Não vive envidraçada num caixão com um isolamento impenetrável, como a Branca de Neve (outra ilustre adormecida), que ainda assim se sujeitava a que o cristal partisse.
Ao contrário da impressão do nosso cronista, parece-me que o espírito do Porto começa, sim, a dar sinais de mudança. Não sei se é por isso que as pessoas se agarram, mais tenazmente do que nunca, ao Natal e às tradições que lhes transmitem a segurança da continuidade, quando os ventos do desconhecido são cada vez mais céleres e desestabilizadores. São tradições que nos fazem recuar ao conforto da infância, ao tempo em que o “E viveram felizes para sempre” dos contos de fadas ainda era possível e as lareiras crepitavam ao som de uma sabedoria mágica e subterrânea, que nos preparava para a vida, resguardando-nos em simultâneo da crueza das suas tragédias, como bem aponta Nuno Lebreiro noutro artigo recente.
Embora não tenha nascido no Porto, sou mais de cá do que de Portugal. Gostava que a sua genuinidade perseverasse, porque também a mim me aproxima mais de quem quero ser, efeito que não cabe num texto nem num postal. Enquanto escrevo este, chegam-me os gritos dos adeptos no Estádio do Dragão e, por mais que comece a agitar-me quando penso que em breve vou querer dormir, já fazem parte da paisagem, como as gaivotas rapaces e as obstinadas pombas. Que passava melhor sem eles, passava - mas não era a mesma coisa.
Fotografias: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados
A maioria das pessoas parece adulta, mas na realidade não o é. Emocionalmente, a maioria continua a ser criança. (….) Na maioria das pessoas, vive uma criança que está simplesmente a imitar um adulto. A ‘criança interior’ de que tanto ouvimos falar não tem nada de interior; na realidade, é bastante ‘exterior’.
David R. Hawkins
A real piece of art is a window into the transcendent. (...) And, unless you can make a connection to the transcendent, you don't have the strength to prevail.
Jordan Peterson
A caminho de casa, passava há dias pelas festas do Bonfim quando me chamou a atenção o insuflável ao lado da igreja. Achei-o talvez acanhado face às dimensões do edifício, que deve atrair menos fiéis do que o divertimento infantil.
A relíquia religiosa e o destom do kitsch ocupando, em contraste, a mesma paisagem afiguraram-se-me como mais um sintoma do zeitgeist, em que a Humanidade aparenta ter regredido ao estádio locomotor-genital do desenvolvimento psicossocial – ou isso ou perdeu simplesmente o bom gosto. Parece-me provável que aquele seja o real destino das romarias, que já não louvam a Deus, mas procuram as profecias do ChatGPT, pitoniso moderno de altares de plástico, onde é permitido andar de meias e as costas não sofrem como nos bancos de igreja.
Assim é o sopro da fé: insuflável, ou wearable, como se diz agora. Aparece com o papa e desaparece com ele. Incha, desincha e passa. Quando o festival acaba, arrumam-se as tendas e regressa-se à normalidade, com os uivos erráticos das novas Gretas a disputar os holofotes ao papa.
Estou a pensar em enviar um requerimento à junta para no próximo ano fazerem uma rampa para trotinetas, para facilitar ainda mais o acesso e o insuflável poder exibir o rótulo A+++ da inclusão. Desconfio de que a popularidade tornará redundante a igreja, que, verdade seja dita, não tem os azulejos da Capela das Almas, que a tornem instagramável ou lhe deem relevância turística, nem pode ser convertida em alojamento local, correndo o risco de passar a imóvel devoluto, sujeita a arrendamento compulsivo.
Pelo menos, há um insuflável ali ao lado, onde Deus pode procurar refúgio, se não se importar de partilhar dormida com o oráculo da IA, com quem poderá ter as conversas filosóficas a que as beatas estariam menos aclimatadas. Pode ser que aceitem competir numa corrida de drones e que, desqualificados os humanos, seja Deus o favorito, quanto mais não seja porque o papa, ainda que amigo de todos, joga na mesma equipa. Aceitam-se apostas. O arraial está montado, faltando apenas confirmar a presença de Lio, o robô dançante do Bolhão, que fontes não oficiais garantem estar a preparar uma performance interativa e um workshop de coreografia. O pão de ló já se vende à porta, presume-se que feito de ovos sem crueldade animal.
What is beauty? What is missing? What causes the profanity and the ugliness to pervade our culture? I would say that it is the loss of the ability to see the invisible within the visible. (...) we don't see that light shining within one another that is our invisible beauty.
Shunyamurti
Live in Mordor too long and you come out looking like Gollum.
Neil Kramer
Some people have the idea that, if something is legal, it’s moral. (...) That's what government does: it tries to make the immoral moral by giving it the blessing of legality.
Thrive II
Não tendo atividade comercial nem envolvimento direto na utilização de espaços públicos para outros fins que não a locomoção, há realidades deste mundo que me passam ao lado. Talvez por isso ainda me escandalizem os atos de bizarria que se revestem de normalidade.
O dia em que perdi a inocência foi quando soube que aos meus pais, que tinham um estabelecimento comercial, era pedido o pagamento de uma taxa anual à Câmara por terem o reclame luminoso a fazer publicidade para a rua (!). A segunda vez deu-se no início deste ano, em que me proibiram de ser fotografada no mercado do Bolhão, explicando que era preciso enviar requerimento à Câmara, que o fundamenta no Código Regulamentar do Município pela “(…) pressão exercida na gestão da coisa pública local”. A terceira foi quando me disse uma esteticista que era obrigada a pagar licença para ter a rádio ligada e que o mesmo acontecia com as televisões nos cafés.
Neste rescaldo, e ainda atordoada pelos tentáculos do absurdo, apesar dos anticorpos mentais desenvolvidos desde 2020, chega-me um regulamento em que o Condomínio, maiusculado e tudo, como se pessoa fosse, quer ser meu pai. Pouco falta para ter de lhe pedir permissão para entrar em casa, perguntar como devo decorá-la ou em que posição devo dormir. Por falar nisso, tenho de me lembrar de questionar se vai oficializar a adoção e partilhar apelido comigo, embora duvide que me venha esfregar as costas ao banho, limpar a casa ou preparar as refeições.
Absorvida nestas cogitações, ocorreu-me o jogo infantil “Mamã, dá licença?”, com que nos condicionam desde a infância a acatar ordens arbitrárias, só porque a mamã diz que sim. Estranhamente, quando um qualquer ditame se transforma em lei, inspira nas pessoas o mesmo temor supersticioso que o sobrenatural, como se as ditas leis estivessem gravadas em pedra ou tivessem sido lapidadas nas tábuas de Moisés. Conheci gente que parecia ter uma relação erótica com os regulamentos e que aposto que os usa para se masturbar.
Nas cidades, as normas municipais conferem mais direitos aos edifícios do que às pessoas, aparecendo a proteção destas apenas como pretexto para a instalação de câmaras de rua e o assédio invisível de uma vigilância cada vez mais apertada, em que se vai perdendo o direito à privacidade e tudo se permite em nome da segurança. Prestamo-nos a esta relação paternal(ista) e perversa com os órgãos governativos: em troca de proteção, dispomo-nos a saltar quando nos mandam e a andar ao pé-coxinho ou dar passos à caranguejo quando assim determinam.
Nunca chegamos a atingir a maioridade de consciência, oferecendo a carne às molas da máquina burocrática, que nada busca além da autopreservação. Assumimos que a complexidade das leis e regulamentos esconde uma inteligência e finalidade que não se consegue enxergar entre os termos rebuscados que empregam, mas que insistimos estará por ali algures para nos protegermos do choque psicológico de um mundo em que o Mal manda só porque pode.
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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0