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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

01
Ago24

Macadâmia

Sónia Quental

 

Wanderer am I.

A misfit, perpetual freelancer in someone else’s world.

John J. Falone

 

 

         Normalmente, não quero escrever. Quero, mas não quero, até que uma das forças leva a melhor e acaba por me arrastar até à página em branco. Hoje, a resistência era maior, por me ver empurrada em simultâneo para a mesma sala de espera, a mesma senha e cadeira, a mesma gravata, desta vez num pescoço de mulher. O computador já não era o mesmo, mas usava astúcias gémeas para surripiar a atenção das mãos que o manuseavam, menos coniventes do que as do funcionário que me atendeu em fevereiro, desculpando-se profusamente pela demora.

         A suavidade submissa da voz derrapou por breves instantes do guião quando, ante a minha renitência em aderir a produtos de investimento a longo prazo, me disse que também tinha sido freelancerdesigner, mais propriamente, agora convertida ao ar condicionado que a obrigava a usar fato de inverno no pino do verão e a desviar-se dos olhares fulminantes dos clientes à espera de vez. A centelha foi breve, mas inconfundível.

         Quando vinha embora, subindo a mesma rua tórrida que subo desde o princípio dos tempos, vi desenhar-se um padrão: o das criaturas com que me tenho cruzado que abandonaram a área criativa em que se formaram ou se expressavam (poetas, pintores, terapeutas, designers) para irem parar à banca ou ao setor imobiliário. Ora por quererem constituir família ora por já não conseguirem suportar a vida na corda bamba ou no fio da navalha, sem rendimentos certos, sem saber se o mês vai ser de vacas gordas ou magras, sem poder fazer planos, que o mesmo é dizer: vivendo sem garantia. O desgaste acaba por levar a melhor, reforçado pelos ecos de quem nos quer bem e vem ensinar a sabedoria de que o mundo não é para sonhadores.

         Achando-me num desses frequentes momentos de paralisia em que tento fazer ouvidos moucos à matemática do futuro, descubro-me a pensar sobre vocações e destinos. E a arriscar que vocação é mais do que dom: é quando não se tem mais para onde ir. É quando todos os caminhos vão dar ao mesmo sítio e na frente está um abismo. Mais do que não capitular ou do que resistir, é saber que não há fuga possível.

         Assistindo ao desespero e à debandada instigados pela pressão da IA, o que lamento são as almas perdidas para as falanges cinzentas da certeza, porque a farda que se enverga por fora se infiltra nos poros e raros são os que entram no sistema e permanecem ilesos.

         Na revisitação que costumo fazer de leituras passadas sobre a espiral dos temas que me assombram, fui dar com um termo desconhecido: “pronoia”, definido, num sentido positivo, como o oposto de “paranoia” e em torno do qual Rob Brezsny escreveu todo um livro - a pista de leitura que me desanuviou o espírito. Consta que o autor é astrólogo e escreve horóscopos inspiradores, segundo o princípio da benevolência do universo. Fui ver o meu para hoje, que aqui deixo em tradução, para propagar esta nota de inesperado alento e leveza:

Setenta por cento das nozes de macadâmia em todo o mundo têm o mesmo antepassado: uma árvore específica de Queensland, na Austrália. Em 1896, dois irmãos havaianos apanharam sementes dessa árvore e levaram-nas para a sua propriedade em Oahu. A partir deste pequeno começo, as nozes de macadâmia havaianas passaram a dominar a produção mundial. Prevejo que em breve terá semelhanças com essa árvore original, Gémeos. O que lançar nas próximas semanas e meses poderá ter um tremendo poder de permanência e chegar muito além da inspiração original.

Braços ao alto (1).jpeg

 

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

03
Ago23

A cultura das "dicas"

Sónia Quental

Also, in our search for tools, we become what we seek: a tool. We reduce ourselves to being primarily pragmatic and utilitarian. 

Peter Block

 

Não existem valores além dos que são úteis: algo tem valor se tem utilidade. E qual é a utilidade da beleza? (...) A beleza partiu para duas direções: para o culto da feiura nas artes e para o culto da utilidade no quotidiano. (...) Acontece que nada é mais útil do que o inútil.

Roger Scruton

 

 

Já tenho designado a cultura de formação em que vivemos como a “cultura dos workshops”, mas venho aqui emendar o título e a realidade que descreve para a sua versão minimalista: vivemos é na cultura das dicas. Vejo livros e opiniões de leitura elogiarem muito autores que dizem dar dicas (“práticas” ou “preciosas”) e facilitar processos. É a nova coleção de obras para totós que, ao contrário da que assim trata explicitamente o leitor, o faz dando-lhe palmadinhas nas costas e entregando-lhe um diploma de burrice mascarada, que ele agradece com vénias.

Quer no meu percurso escolar e académico como aluna, quer no profissional como formadora, a realidade que fui conhecendo com o passar dos anos foi de uma facilitação cada vez maior: facilitação dos critérios e das notas de admissão aos cursos, dos programas ensinados e finalmente dos critérios de avaliação e validação, tudo isto administrado com uma linguagem paternalista que passa por inclusiva e que está ao serviço da degradação do rigor.

Não só no contexto da formação profissional, mas também no mundo recreativo, da arte e do desenvolvimento pessoal e espiritual, deparei-me com o fenómeno cada vez mais popular dos workshops. Constatei que qualquer pessoa com qualificações obscuras e competências duvidosas podia viver de dar workshops de 2 ou 3 horas, com muitas dicas e demonstrações, mas muito pouco de substância. É o primado da experiência e da prática, que transforma ignorantes em autoridades na matéria, sob o lema do DIY. Se o aluno quiser levar à prática as dicas recebidas e tiver dúvidas, terá de fazer outro workshop ou de se desenrascar com os truques baratos que aprendeu, pesquisando na internet ou vendo vídeos no YouTube. E não é preciso muito para passar a acreditar que, com mais umas dicas, ele próprio estará habilitado a dar workshops e a ganhar uns trocos à margem.

Na rampa (2).jpg

 

Não quero com isto dizer que não haja pessoas versadas que o são sem terem passado pelo ensino superior ou formal e que tenham desenvolvido um saber respeitável à custa da experiência, que não menosprezo, e da dedicação a uma disciplina, arte ou ofício. Que o que se faz nos tempos livres, por paixão, não possa transformar-se, por mérito, em profissão. A vocação e o esforço têm importância, tanto ou mais do que o saber teórico adquirido, desafiando as metodologias com que as instituições de ensino e formação o transmitem e aferem. O que quero, sim, dizer é que casos como estes representam uma minoria e que o grau de dedicação necessário para a conquista de mérito é elevado.

No entanto, tenta-se hoje inculcar uma mentalidade contrária à do trabalho e do mérito. Tudo o que é preciso para se dominar uma técnica é frequentar workshops, ler newsletters e receber umas "dicas". Para se ser profissional numa área, basta ter-se atividade nessa mesma área, sejam quais forem as habilitações, preparação e real competência dos ditos profissionais, que, após um ano ou dois, ao ritmo de progressão na carreira das atuais gerações, já se dão o título de “especialistas”. Se tiverem um podcast, o título então é automático.

As palavras de ordem desta cultura estão por todo o lado: “técnicas”, “dicas”, “exemplos”, “prático”, “pragmático”, “útil”, “direto”, “fluido”, “leve”, “fácil”, “simples”, “poderoso”, que recheiam um discurso de motivação extraído da literatura da autoajuda, que, no estilo conversacional também em voga, procura injetar autoconfiança e uma fé cega no sucesso – uma das poucas entidades invisíveis em que ainda se acredita e a que se acendem velas. A linguagem religiosa marca, aliás, presença assídua nesta cultura materialista, em que já vejo referirem-se aos livros práticos como “bíblias”, logo ao lado da palavra “top” como classificação sumária – a palavra final que os críticos, leigos, mas especialistas, têm a dizer sobre assuntos que não têm arcabouço para avaliar.

A cultura de formação atual é uma cultura de deformação, subserviente à lógica dos mercados. Enquanto se anda à procura de dicas, para abreviar caminho, baixa-se cada vez mais a fasquia. O que se exclui das estratégias de facilitismo e inclusão, que o que querem é entregar certificados, é a exigência e a qualidade. Quem perde somos todos.

 

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0