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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

03
Jun24

Desvéus

Sónia Quental

 

À medida que fui observando o mundo, comecei a sentir um pouco de pena da mulher moderna, que não tem véus para usar.

Clarissa Pinkola Estés

 

           

As mulheres perderam os véus. Na rua, no metro, sobram carnes dos tecidos que as apertam. Mostram-se as pústulas e deformidades que traduzem a igualdade do valor. Uma fêmea já madura masca pastilha elástica de boca aberta. Outra cheira o sovaco do homem a que se encosta. Aqui e ali, corpos esfregam-se pegados. Uma terceira carrega um pacote de 24 rolos de papel higiénico. Na estação onde trocamos de linha, vê um filme no telemóvel enquanto desce na escada rolante.

Está tudo à vista, não porque a essência tenha vencido as aparências, mas porque não há o que ver além da aparência. Sem véus, o mundo despoja-se do mistério, sem verdade que valha a pena conhecer. As máscaras da impessoalidade cobrem com um esgar universal o que era da ordem do translúcido. E os inteligentes, encostados à esquina, ostentam o escárnio da ignorância embutida.

Rasgam-se os véus onde outrora nasciam parábolas, os símbolos da iniciação. Através deles falam os oráculos. Um véu promete, mas não se dá, porque de si se desfia o caminho ao infinito. Não de portas, mas de véus sucessivos, que convidam à revelação, ao mesmo tempo que a regulam para proteger o olhar da cegueira certa, confundir os curiosos, que cedo se perdem pela recusa do sacrifício.

O véu é casulo de silêncio onde o espírito fermenta. Um casulo sem hóspede, agora que os corpos e as emoções se querem libertados, emancipados os costumes. Onde não há véus encontram-se só as cortinas do subterfúgio, que não escondem castidade nem glória. Feitas de segredos fingidos, sintetizados artificialmente em laboratório. Logo a falta de peso os acusa.

Mas não ao véu, toca do sagrado. Quando se cai dentro de um, a queda é demorada – com tendência a não acabar.

 

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Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

07
Mai24

A casa do silêncio

Sónia Quental

In school they taught you to be extroverted, to have an outgoing personality. Well what has it done for you? It made us all into a bunch of idiots.

 

Robert Adams, in Silence of the Heart

 

 

           Não sei como a notícia atravessou as paredes, mas a insipidez da aula foi sacudida pelo rumor de que Mia Couto estava no anfiteatro a fazer a apresentação de um livro. Não querendo perder a oportunidade, pedimos licença para sair. Apesar de o evento se aproximar do final, seguia-se a sessão de autógrafos com o autor e a ilustradora da obra infantil que motivara o encontro. Daí resultou nova corrida à livraria da faculdade para a comprar a tempo de conseguirmos a assinatura daquela vedeta literária, mesmo que o livro fosse para crianças.

Mia Couto, percebi-o de forma tangível nos breves instantes em que o vi ao vivo, além daqueles em que o ouvi através de um ecrã e das páginas em que o li, é daqueles escritores em que o homem está presente na obra. Consegue-se palpar a sua falta de à-vontade com o público e o silêncio que se desprende dele, marca de uma profundidade habitada. Porque as pessoas silenciosas não são apenas silenciosas quando não falam: são-no também quando falam, puxando-nos irresistivelmente para a dimensão em que residem. É por isso que quem ouço mais alto num grupo são os silenciosos, os que passam quase sempre despercebidos aos demais.

Voltando ao escritor, as marcas do caráter nem o silêncio as apaga. Reparando, constrangido, que as pessoas na fila lhe pediam o autógrafo apenas a ele, virando costas à ilustradora (Danuta Wojciechowska), ouvi-o dizer a quem estava à minha frente, em voz baixa, mas firme, que não se esquecesse dela. Mais do que o livro e o autógrafo, foi esse o tesouro que trouxe comigo nesse dia.

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Admiro pouco os homens que não tomam conta da obra que deixam, tendo a impressão de serem cada vez mais raros aqueles que estão à altura dela, mesmo quando lhe é atribuído um justo valor. Refiro-me concretamente às obras literárias, em que a destreza verbal dos autores se vai afastando de uma sabedoria construída com labor ao longo da vida e que chapinha na piscina para os mais pequenos: a água é quente, mas chega só até aos joelhos. É por isso que jamais serei capaz de olhar para Fernando Pessoa como mais do que um ébrio enfezado, que não se alçou à altura do que produziu através da sua despersonalização e cujo silêncio estava cheio de barulho.

É para esse barulho que insistem em chamar-me, supondo que o seu é canto de sereia a que vou fazer render o silêncio. Uma e outra vez constato: a solidão e o silêncio incomodam. Por algum motivo insondável, quem leva uma vida de bulício acha que todos teríamos a ganhar por nos juntarmos à farra. E agridem com as boas intenções com que tentam demover-nos da quietude e seduzir-nos à frivolidade.

Quanto a mim, o silêncio é uma casa que prefiro imaculada. Ausento-me pouco. Recebo visitas.

 

27
Ago23

"Outsiders"

Sónia Quental

(Dedicado à comunidade de outsiders que acompanha Howdie Mickoski e que comentou o vídeo abaixo.)

 

Why would you wanna fit in with insanity?

Howdie Mickoski

 

 

Presumível forasteiro,

 

Devo começar por te dizer que o cão da vizinha vai à rua mais vezes do que eu. Se tocares à campainha, é provável que não abra, não porque esteja de robe, mas porque não disseste que vinhas. O esforço de me obrigar a simpatias com estranhos ou conhecidos precisa de ensaio demorado, por isso avisa quando vieres. Convém acrescentar que não reajo bem às quebras de rotina e que sou ciosa das âncoras que me fixam.

Se quiseres fazer conversa, não me perguntes o que tenho feito. Sabes que nada disso importa e que vieste para falar do insólito, mesmo que não o tivesses planeado direito e que comecemos, hesitantes, pelo postiço das formalidades, porque por estas bandas o costume é falar-se do tempo. Ainda não sabemos que temos Saturno na mesma casa e que podemos passar ao que interessa, sem precisar de aquecimento ou cautelas. Em mistura ao comentário pouco convincente sobre o calor, menciono brevemente um filme de terror e respondes-me com a angústia da luz do dia que começa a escoar-se três minutos de cada vez depois do solstício de verão – angústia subterrânea para a maioria das pessoas, mas que o nosso termómetro regista. Entre esta troca improvisada e a galope, que desemboca no tema dos rituais e sacrifícios humanos, estalam-me foguetes por dentro.

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Posso descontrair, sem ter medo de dizer a coisa errada, das interpretações que vais fazer, se vais ficar ofendido ou magoado quando te digo a verdade. Não me pedes fórmulas de assertividade nem te importas que rosne se for caso disso, e o alívio que sinto faz-me querer encostar a cabeça e ficar, receber enfim no silêncio quem domina o idioma e não me cobra palavras. Não me estranhas, mesmo que sejas estrangeiro por cá. Não me acusas de julgamento nem confundes as minhas intenções, porque o nosso desencaixe é simétrico. Identificas-te como homem, eu como mulher, e não usamos pronomes como fetiches. O nosso fetiche é o Profundo. É com isso que nos identificamos, um plano mítico para quem vive à superfície, deformando o corpo, confundindo a consciência e escamoteando palavras, mutilada a razão com um arco-íris na machadinha.

 

Gostava de continuar a conversa, mas está na hora de ir à rua. O cão da vizinha leva-me três voltas de avanço.

 

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

24
Jul23

Realidade horizontal

Sónia Quental

Most of humanity lives in a horizontal reality (…).

Amoda Maa

  

And, in this sense, mainstream culture has one aim, one single aim: to erase God from our cosmology. To despiritualize you, to have you deny Truth, honor, divinity. You are gaslighted until these things begin to no longer have any real meaning anymore.

Until they no longer exist.

Neil Kramer

 

 

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A noite escura da alma não é escura: é cinzenta. Assim também a noite do mundo, que mostrou o cenho há três anos e pôs a nu as feições escabrosas de cada um.

Quando o impensável acontece e a demência toma conta das multidões acéfalas, é com intensa sede e escassa ventura que se procuram indivíduos eretos, que não tenham abandonado a integridade e a coragem e que alumiem a opressão de um eterno março. O espaço torna-se ainda mais confinado quando não se vê seres com alma, mas corpos reduzidos à sua condição animal, movidos por um instinto de sobrevivência disfarçado de moralidade e de preocupação com o bem comum, a condizer com o açaime grudado à pele.

Nesse março que nos desnudou, houve aqui e além vozes no crepúsculo que impediram que sucumbisse à loucura quem a encontrou na distopia instalada, unindo numa comunidade espiritual geograficamente dispersa pessoas que se descobriram subitamente sós – sós em família e logo sem família, sós entre presumidos amigos, colegas e desconhecidos. Uma dessas vozes foi a de Neil Kramer, professor de esoterismo no Omega Institute, em Nova Iorque, que explora no seu trabalho a relação entre a espiritualidade e os fatores sociais e culturais que moldam o nosso quotidiano – uma voz que restaurava à distância, nos seus roamcasts, a lucidez que a dissonância cognitiva fazia vacilar.

Não se trata apenas da bizarra trama de acontecimentos desencadeada em 2020, mas de toda a programação cultural e política que a sociedade vem metralhando como pus pestilento e que inoculou a mente superficial e infantilizada dos novos ativistas. São as identidades de género e a confusão deliberada da identidade sexual, a promoção aberta da homossexualidade e a sexualização das crianças, os delírios de masculinidade tóxica e de racismo, a retórica da inclusão baseada na entronização das vítimas e das minorias, o controlo centralizado, a censura descarada, a vigilância galopante e intrusiva, a proteção do público à custa da erosão do privado, a supressão de direitos e liberdades básicos, o primado da tecnologia, a distorção e apropriação ideológica da linguagem, a demonização do (discurso de) ódio, a difamação da faculdade de julgar, a ameaça e instrumentalização do aquecimento global, as teorias do relativismo, a mentira institucionalizada que a tudo subjaz, os cavalos de Troia do coletivismo e dos lemas socialistas, …

Is the sharp focus of truth sometimes divise, sometimes judgmental, sometimes offensive? Yes. (…) Division is necessary, so you can see the distinction between true and false, the clear line between the two. (…) So, it’s sometimes important to be offended, so that you will feel your error, experience the dead weight of your wrong conceit. None of these things can hurt your soul – they only rattle the self.

Neil Kramer

 

Quando se pensa no apogeu civilizacional, o ser humano regride em consciência, tornando a perda da profundidade cada vez mais ostensiva, alheado à debilitação intelectual e humana que decorre do seu empobrecimento espiritual. Ou, como lhe chama Neil Kramer, da eutanásia espiritual cometida, resultado da escolha de viver numa realidade horizontal, de que Deus foi omitido, e da ignorância ativamente cultivada sobre o que possa existir para lá do funcionamento mecânico do corpo do Homem e das forças que movem o corpo da Terra.

No mapa da consciência traçado por David R. Hawkins, a coragem é o primeiro nível de Verdade, vida e poder. Todos os anteriores (da vergonha ao orgulho, passando pelo medo), correspondendo a um paradigma de sobrevivência, são antivida e estão do lado de uma energia estéril, orientada para o falso e o destrutivo. 

Numa sociedade cega, quem protesta porque ainda consegue ver a luz é encarado como um antipatriota, iconoclasta, psicótico ou cobarde, uma ameaça ao sistema estabelecido. A não aceitação das ilusões socialmente dominantes é considerada perigosa e subversiva.

David R. Hawkins

 

Porque março não acabou, ainda são precisos fachos que não se deixem intimidar e que emprestem a voz à Verdade, no meio da névoa por vezes desesperante da alienação generalizada, dispostos a dar o exemplo e a sofrer as consequências, se necessário, com um espírito que não busca reconhecimento, mas se recusa a escolher a passividade face à ação concertada do Mal.

Felizmente, a união só faz a força quando tem raízes na Verdade. É por isso que os poucos conseguem suportar o peso dos muitos e é graças a esse equilíbrio precário que o mundo, já sem norte, ainda não perdeu a órbita.

Spiritual life begins with the silencing of the sleep song. (...) You will grieve, yet you will be liberated; you will be lonely, yet you will find belonging; you will be empty, yet you will be filled with light. The more silence, the more His Spirit indwells.

Neil Kramer

Bob Moran.jpg

Cartoon de Bob Moran

(aqui em memorável entrevista)

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0