Autobiografia às avessas
Especializei-me em não saber. Comecei por não saber o que queria ser quando crescesse e depois tomei-lhe o gosto. Quando cresci, desinteressei-me de ser alguma coisa.
Foi-me mais fácil ir descobrindo o que não queria, apesar do susto que dava. Não queria uma vida normal, mesmo quando julgava que sim. Não queria sumir-me no mofo asfixiante da banalidade.
Não queria viver na mentira, onde quer que ela estivesse. Como nos cruzávamos muitas vezes no trabalho, deixei o trabalho. Não sabia o que seria de mim quando viesse embora, mas vim. Tal como não soube porque tinha de passar a comer vegetais quando a ideia veio. Não me sabia orante até que a oração brotou.
Não soube porque me abandonou a vontade de ler literatura ou que fome era a que sentia, que já não se saciava com ela. Atirei a culpa disso para o fundo do subconsciente, já apertado para a acomodar.
Não soube porque tinha de abdicar dos dons que recebera, mas deixei-os morrer na memória – com eles, o orgulho que me restava e qualquer aspiração a ser especial. Com o passar do tempo, em vez de acumular conhecimento, deu-se o caso de o subtrair.
Não soube porque precisava de deixar pessoas para trás, mas deixei e continuo a trazer na carteira a tesoura de cortar laços e nós.
Não sabia como comprar casa e pagá-la, mas comprei e agora o condomínio quer-se vingar.
Todas as grandes decisões de vida não vieram de mim, mas de Algures. Quando perguntava porquê, saía-me de dentro o silêncio abotoado do “porque sim” e eu que me cosesse com ele.
Nunca soube fazer conversa, mas essa é uma qualidade. Não sei o que responder quando me perguntam por projetos de vida. Não sou arquiteta. Não sei o que a vida quer de mim. Não sei o que quero dela, embora o que não quero cresça em força e firmeza. Se me perguntarem onde me vejo daqui a 5 anos, digo sem rodeios: não sei.
Hoje, que há pessoas a abrir empresas só para poderem ser CEO de alguma coisa, nem sequer preciso de abrir a minha: sou CEO do não saber e não tenho concorrência, já que todos preferem estar do lado das certezas. As atualizações são automáticas: nulas. Posso fazer tudo sozinha, sem delegar tarefas. Referências: toda uma vida dedicada à ignorância.
De não saber em não saber, por aí vou. Também não sei tocar guitarra para fazer disto cantiga, por isso uso o que me sobra: escrever, que também não sei, embora isso me dê esperanças de uma carreira no copywriting.
Espero que pelo menos de Sócrates venha um gesto discreto de assentimento quando repito: só sei que nada sei.
When you first begin, you find only darkness, and as it were a cloud of unknowing.
The Cloud of Unknowing, Anónimo (séc. XIV)
Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados