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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

04
Set24

Selvagem

Sónia Quental

 

         Estava no meu primeiro exílio, a colónia de férias, quando a primeira banda sonora me fechou a infância, entranhando-se no nevoeiro de um abandono com hora marcada. Todas as tardes, o bar da praia fazia soar a música “Nasce selvagem”, toada para uma cria que não fazia parte da ninhada e não sabia que “selvagem” era palavra que lhe descrevesse a vergonha.

         Compreendo agora que foi a forma mais fácil de me dizer que vinha para atravessar a lonjura, deixar família, amigos, trabalho, vocação para trás. A forma mais melódica que havia de me contar que ia passar a vida a ir embora, a mim, que tinha medo de bruxas, gente desdentada e mulheres com pelos nas pernas (a minha mãe era esteticista, por isso eu reparava sempre nos pelos). Não se podia recorrer aos profissionais dos oráculos para entregar a mensagem, por isso ela veio cantada pelos ares de um verão sem sol nem azul.

         Virgem de passado e com o coração mais ou menos ileso, estava longe de compreender palavras como “rotina” ou “profissão”. Mas nos Perdidos e Achados nunca disseram o meu número e eu despertencia cada vez mais. Não era de ninguém, também não era minha. E não parava de nascer, prematura, de encontrar novos exílios que cantavam a mesma canção, até que parei para ouvir. E descobri-me selvagem no “não” que trago pendurado na boca desde que aprendi a falar. Todas as vezes que aprendo a falar, o começo é com a mesma palavra, a que me tentaram fazer engolir, com medo da sombra que as palavras projetam. É nela que me enrosco, outra vez feto, cada vez mais minha.

 

 

24
Ago24

Também aqui é agosto

Sónia Quental

Todas as minhas fontes vêm de ti

Daniel Faria

 

 

        Mulher sou, retenho líquidos. Nasci com os olhos tortos, voltados para dentro. Nem o médico da vista os endireitou. Nem as lentes de plástico vermelha e verde com que desenhava um risco no labirinto. Chamavam a um preguiçoso. Ele continuou sempre, sem ligar.

       Espremo a pele para não guardar tanto líquido, dividi-lo com o mundo carente de águas.

        Endireito os olhos fixando o horizonte em névoa, endireito o labirinto enquanto caminho. Bico de papagaio no joelho. Endireito o esqueleto.

         Encho baldes de água. Por isso me esqueceram, criança, no tanque de lavar a roupa – para reter a água ainda limpa, fazer a distribuição na minha clínica imperfeição humana. A vida foi para aprender a pô-la a circular, sangue azul cada vez mais puro, olhos cada vez mais fechados para fora, salinas concentradas de claro fervor.

         Pensava que me faltava o mar, mas também aqui é agosto.

 

03
Jun24

Desvéus

Sónia Quental

 

À medida que fui observando o mundo, comecei a sentir um pouco de pena da mulher moderna, que não tem véus para usar.

Clarissa Pinkola Estés

 

           

As mulheres perderam os véus. Na rua, no metro, sobram carnes dos tecidos que as apertam. Mostram-se as pústulas e deformidades que traduzem a igualdade do valor. Uma fêmea já madura masca pastilha elástica de boca aberta. Outra cheira o sovaco do homem a que se encosta. Aqui e ali, corpos esfregam-se pegados. Uma terceira carrega um pacote de 24 rolos de papel higiénico. Na estação onde trocamos de linha, vê um filme no telemóvel enquanto desce na escada rolante.

Está tudo à vista, não porque a essência tenha vencido as aparências, mas porque não há o que ver além da aparência. Sem véus, o mundo despoja-se do mistério, sem verdade que valha a pena conhecer. As máscaras da impessoalidade cobrem com um esgar universal o que era da ordem do translúcido. E os inteligentes, encostados à esquina, ostentam o escárnio da ignorância embutida.

Rasgam-se os véus onde outrora nasciam parábolas, os símbolos da iniciação. Através deles falam os oráculos. Um véu promete, mas não se dá, porque de si se desfia o caminho ao infinito. Não de portas, mas de véus sucessivos, que convidam à revelação, ao mesmo tempo que a regulam para proteger o olhar da cegueira certa, confundir os curiosos, que cedo se perdem pela recusa do sacrifício.

O véu é casulo de silêncio onde o espírito fermenta. Um casulo sem hóspede, agora que os corpos e as emoções se querem libertados, emancipados os costumes. Onde não há véus encontram-se só as cortinas do subterfúgio, que não escondem castidade nem glória. Feitas de segredos fingidos, sintetizados artificialmente em laboratório. Logo a falta de peso os acusa.

Mas não ao véu, toca do sagrado. Quando se cai dentro de um, a queda é demorada – com tendência a não acabar.

 

Olhar (3).jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

15
Abr24

Metacoração

Sónia Quental

Ensinaram-me que o amor era transgressão: 10 minutos roubados contra o muro.

 

Cheirava a tabaco e a Hugo Boss, toca de bicho no relento da chuva. Usava toalha de praia e fazia urticária,  tentação tremeluzente de esperas, testamento a vermelho até a tinta acabar.

Palavras raspadas do dicionário para dizer o proibido: que o amor havia. Era pentear poemas e saber que amor era mais hipálage do que metáfora, cravejado de antíteses.

O amor não podia andar de mão dada (ensinaram-me isso quando me mostraram que o amor batia). Eram cartas escondidas em envelopes disfarçados, telefonemas mudos, traições, denúncias. Se havia coisa que o amor trazia, era sempre castigo.

O amor era sombra que caminhava na frente quando não tinha pernas para lhe chegar. Era peixe que não mordia o isco e que fugia, escorregadiço. Nunca segurei o amor na mão: vinha para comer e logo se ia, antes que pudesse amansá-lo.

O amor era do reino das fomes e dos impossíveis. De noite, fantasia, fantasmagórica insónia – pesadelo de dia. Procurado pela justiça com recompensa avara. Era mísero e magro o amor, inclemente. Crescia de sustos, perseguido de morte. Sobrevivia a pão e água, pescada cozida a acompanhar.

 

Era só espinhas. Uma faca no escuro.

 

Serial bully, eclipse permanente do sol. Era eu a ir embora, quando o amor era promessa que o tempo amargava, cavalo alado descontente das asas. Metassuspiro.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0