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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

03
Mai25

Sem título

Sónia Quental

Form changes. Wholeness remains in every crumb.

Georgi Y. Johnson

 

         É nos momentos em que a nossa humanidade animal fica exposta que percebemos o quanto tentamos controlar o movimento da vida, o quanto vivemos para nos proteger das catástrofes, segurando a mão que nos resolve o destino.

         Há coisas escondidas que emergem quando ganhamos a consciência de que não temos o controlo. A resistência não quer abandonar a fachada de racionalidade, entregar-se a essa matéria visceral, indigna da sua imagem de roupa vestida. As emoções revelam-se em bolsas e espasmos, o “eu” afunda, perde a definição, os limites que o separam do movimento mais vasto que o atravessa. Esperneia, com medo de perder a forma e deixar de ser coisa. Quer manter as comportas fechadas, morar no estado de contração contra o fluxo imprevisível da noite – como se fora mais do que um caroço escuro, um ponto minúsculo de contraste contra a imensa luz.

 

Grafíti azul.jpg

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

25
Abr25

Rainha de Espadas

Sónia Quental

 

Captura de ecrã 2025-04-25 185721.png

Desde que aprendi a escrever, vivi em busca da palavra mágica: a que abrisse a porta, desfizesse os nós e desse leveza. A que me transformasse de rainha de Espadas em rainha de Copas, essência recortada de todas as que estão a mais. A palavra exata e restauradora, que perdoasse e me fizesse nova, tão lírica quanto portentosa e quase por estrear.

Enfim vim a saber que o que impregna de magia a palavra é o silêncio, todo neblina, com as suas margens recônditas e sua mansa vertigem. Entre a espada e o cálice, o que muda é o molde. A feição varia: o amor é o mesmo.

 

Imagem: baralho Morgan-Greer

 

21
Abr25

Nas ruas o silêncio

Sónia Quental

         Gosto de sair cedo no dia de Natal e de Ano Novo: as ruas são íntimas, densas de silêncio. Procuro a intimidade com a mesma obstinação que antes de me apontarem essa falha: a de só querer relações íntimas. A diferença é que agora sou consciente disso e nem às ruas dou trégua.

         O costume que se vê de aproveitar as festividades religiosas e os feriados à sexta-feira para tirar férias deu-me a esperança de que a Páscoa fosse igual, mas nem a chuva sossegou as pessoas em casa. Embora há anos não celebre Natal nem Páscoa e não simpatize com o fanatismo das dietas sem açúcar, não posso deixar de reparar em como os grandes feriados religiosos estão cobertos dele. A guloseima é a melhor forma de evitar que se pense no significado daqueles dias que se põem a jeito para um fim de semana maior.

         Como as All Star e o vinil, o catolicismo voltou a estar na moda. O efeito decorativo é o mesmo, a vanglória dos novos convertidos igual à de quem passa a frequentar um clube exclusivo – só que neste todos podem entrar. Basta ajoelhar no palco e gritar o nome de Jesus para que os pecados se façam lã e os lobos de antanho virem cordeiros luzentes, já prontos a evangelizar.

         Nem sempre apetecida, porque não há molho que a adoce, a relação com a cruz só pode ser íntima – esbarramo-nos com ela nas alamedas da vida, cada vez mais despidos de conceitos. No fio dessa nudez íntima, se nos ajudar o equilíbrio, repousa o berço prometido, com a sua amêndoa secreta de silêncio, mais maciça do que qualquer esperança vã.

 

O verbo acreditar é um dos ingredientes mais importantes da libertação humana da atração fortíssima de Deus. Se acreditamos, acreditamos, e podemos ir almoçar depois. A crença religiosa é o nosso bilhete para a liberdade. Os crentes são as pessoas mais preguiçosas que existem.

 Manuel Curado

 

Anfiteatro a dançar (3).jpg

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

19
Abr25

Contentamento

Sónia Quental

 

         Alguns descobriram já que a felicidade não está em alcançar. Descontentes das metas, voltaram-se para os processos, vivem no caminho e a caminho. O meio parece mais promissor do que acabar e descobrir que não há finais felizes. É, pelo menos, garantia de ocupação. Mas também não é aí que se esconde o contentamento. Difícil é admitir que o temos à mão.

 

 

The whole world belongs to me, because I live in the last story, the last dream:

woman sitting in chair with cup of tea.

Byron Katie

 

01
Abr25

O louco

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-03-30 191508.png

À volta das cabeças, há uma nuvem que adquire diferentes tonalidades de pessoa para pessoa, feita da matéria turva do pensamento, tingida pelas emoções, sintonizada com lugares e tempos distantes. É uma bolha fina, mas impenetrável, um headset de realidade virtual que projeta o mundo onde cada um se vê, com as suas figuras e histórias imaginárias, as suas conversas de fazer de conta, em que os balões das personagens têm a tonalidade da própria nuvem.

Só de olhar, sente-se o zunido da frequência invisível e adivinha-se os diálogos que não chegam a transportar-se para o corpo, porque cada um fala sempre sozinho. Semblantes alheados percorrem as ruas numa valsa de braços sem abraços, tropeçando nos próprios pensamentos, simulando encontros à tangente das bolhas que enrijecem com a certeza de que cada mundo imaginário é o mais mundo de todos.

 

Projections change the world into the replica of our own unknown face. 

Paul Levy

 

Imagem: baralho Morgan-Greer

26
Mar25

O diamante

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-03-26 205235.png 

 

No covil de salteadores, todos se julgam o ladrão astuto – traficando pensamentos como se fossem joias, enjeitando o diamante que não sabem apreçar.

Lascada, nem a metade do coração lhes pertence.

 

 

 

Imagem: baralho Rider-Waite

 

The test of progress is not how much intellectual knowledge you have added, but how many mental illusions you have discarded.

Vernon Howard

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0