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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

10
Fev25

O agasalho

Sónia Quental

 

There is no one so depraved that he does not respond to Beauty in some form of expression. 

Marie S. Watts

 

 

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Tendo escapado incólume às pestilências da década, quando me dei conta da alhada em que estava metida, na semana passada, a doença foi imediata, sem dar tempo de me recompor psicologicamente para a travar. Passei o dia a tremer de frio e, se trago o assunto de novo à baila, é para fazer a ponte com a manhã seguinte, em que antes das 7 h, na padaria, uma das freguesas habituais me fez uma emboscada à porta para me pedir os meus casacos, para resumir de um modo grosseiro. Que os tinha muito bonitos e me lembrasse dela quando quisesse dar algum.

         Quando a vida me acena com o seu sentido humor insuperável, percebo que está tudo bem: a deserção do sentido de humor é o primeiro passo para a ruína da alma. O desdém dedicado à beleza, o segundo. Ou talvez seja ao contrário.

        Já fui abordada em público por muitos olhos vazios a pedirem moedinhas, sopa, café e cigarros (!), mas esta foi a primeira vez que me pediram casacos, e não com o pretexto do frio, antes da beleza. A maioria das pessoas não incluiria este item imaterial no seu estojo de bens essenciais, sendo visível que aquela que me pediu os casacos teria argumentos materiais mais convincentes.

          Pode alegar-se a vaidade, e não nego que o defeito me toque a mim, mas há outras subtilezas a considerar. A beleza, natural ou construída, tem um poder de transfiguração silencioso que, sentido nos seus efeitos vaporosos, mas penetrantes, nem sempre se conhece de onde vem. Apela a quem sente uma certa ânsia de redenção, ainda que não saiba que anda em busca dela. Deixar-nos tocar pela beleza, querer fazer parte dela é a primeira licença que se dá ao abraço curativo do amor, o primeiro suspiro de reconciliação com a vida.

         Não disse à senhora que um casaco não faz milagres. Hoje vi-a na padaria orgulhosamente sentada com um casaquinho de pelo cor de rubi, por isso acho que faz.

 

Imagem: baralho The Solar Kingdom

04
Fev25

Uma Aventura... no Supermercado

Sónia Quental

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Ir ao supermercado é daquelas coisas que se faz porque tem de ser. Quem, como eu, abomina as multidões, procura as horas de pouco movimento, o que o trabalho ainda me permite fazer. Como em qualquer viagem que não seja sem destino e sem pressões, também estas são planeadas: tendo em mente aquilo de que preciso, programo ir do ponto A ao ponto B, num tempo que consigo calcular aproximadamente, evadindo-me pelas caixas de autoatendimento.

         Tratando-se de uma tarefa necessária e não de uma visita turística, gosto que seja rotineira, de poder contar que um certo produto esteja numa certa prateleira, para poder despachar o assunto e vir embora. Ou que não seja despachado: também posso fazê-lo nas calmas. É um dos motivos por que gosto de ir a sítios habituais: sei onde as coisas estão. Ou sabia. Ignoro se é um estratagema arquitetado pelos hipermercados para desorientar os clientes ou se sou mesmo eu que sou dada às teorias da conspiração, mas todas as semanas mudam os produtos de lugar, e nem sequer é para um lugar próximo e nem sempre para um local óbvio. É assim que aquilo que poderia ser uma visita de médico facilmente se transforma numa peregrinação lacrimosa por corredores que não têm fim, em que a calma já lá vai.

         Pode parecer um aborrecimento insignificante, e realmente é, em face das calamidades que assolam o planeta ou de questões pessoais de maior gravidade. No entanto, são as pequenas coisas num mundo em mudança acelerada e incerteza crescente que nos dão ou tiram a estabilidade e um certo conforto psicológico. Quando, entre as questões prementes da sobrevivência, a cabeça e o espírito aproveitam estes momentos triviais para se ocuparem do sentido da existência, a última coisa que quero é ter de andar à caça das bananas, atropelada por carrinhos de compras, bebés e paletes.

         Isto vindo de alguém que também não vai ao supermercado para conhecer potenciais parceiros, como vi noticiado há alguns meses. Se já é difícil encontrar a fruta, já para não dizer escolhê-la, imagino o que seria ter de decorar todo o código de sinais dos esquemas de acasalamento modernos e ir sondar corredores dúbios, sem posição fixa, com um ananás virado ao contrário. E isto antes de chegar aos preliminares.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

25
Jul24

Estorvos

Sónia Quental

If you think you're the person who is flossing your teeth, you just lost it again; but, if you don't floss your teeth, you lost it too. 

Ram Dass

  

       

         Vou a meio de uma equação complicada que demonstre a inexistência de tempo e espaço, os princípios esotéricos da cura, desmanchando a névoa da realidade milímetro a milímetro, quando o telefone toca a dizer-me que preciso de renovar a conta bancária. Tirar mais uma senha, pôr-me na fila de espera, multiplicar assinaturas enquanto um funcionário pachorrento dá pancadinhas para encorajar o computador. A máquina deita fumo, deitam fumo os que desesperam atrás de mim, eu lanço as minhas baforadas aos quinhentos formulários que me apresentam em duplicado, sacados da cartola sem fundo da impressora, atordoada pelo sorvedouro burocrático de seguros, impostos, as newsletters da segurança social, os percevejos a atacar o colchão, enquanto o mundo arde, o purgatório já não tem espaço para os aflitos e a única coisa que apetece invocar em vão é o santo nome de Kafka, Nostradamus incontroverso do século XXI.

         Enquanto o computador vai extorquindo mimos ao funcionário, debato-me por dentro, sem saber como explicar a mensagem out-of-office enviada como malware dos escritórios de Deus, atormentada pela queda de cabelo que me faz duvidar de que Ele consiga contá-los a todos antes de chegarem ao chão. E a única sarça ardente que me acontece na cabeleira é quando recebo orçamentos sem IVA.

         Sentada de castigo diante de uma criatura engravatada que fala em arabescos indecifráveis, a realidade estorva-me as alturas, atordoa-me ad infinitum. Esforçando-me por manter o semblante imperturbável da Mona Lisa e aproveitar o tempo para preencher mentalmente o livro de reclamações celeste com todas as coisas importantes que tenho para fazer, despertam-me os pés em marradinhas. Não se queixam de muito: querem as cócegas do chão.

The job of the Buddha is simply to pick up the garbage, to do the dishes, to sweep the floor.

Byron Katie

 

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Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

NOTA: A próxima publicação será uma "caixa de comentários" com algumas das mensagens que tenho recebido como resposta aos textos, que merecem posição de destaque.

 

06
Abr24

À janela

Sónia Quental

 

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O lugar fora sempre à janela, uma forma de cruzar o movimento no tempo e no espaço com o desconhecido que desbravava ao de leve, com o olhar em laser sobre a paisagem. Não gostava que me enganassem sobre o tempo e a distância até ao destino, com o corpo mole a escorregar para a lamúria do ainda-falta-muito-para-chegar, abafada com uma mentira sempre igual. O enjoo só costumava vir quando a viagem de carro era longa, para uma sorte forçada, e me faziam engolir arroz-doce e pinhões à chegada.

A vida foi essa espera constante, numa viagem de coordenadas incertas. Espera pela noite de consoada, pelas férias de verão, pela carta que há de vir no correio, pelo toque do telefone, pelo episódio da próxima semana, por rapar a taça e espetar o palito no bolo, pela época dos morangos e das vindimas, pelo dia de aniversário, pela picada da seringa, pelos guinchos do porco quando a goela rasgava – a espera pela encomenda, que é sempre a mesma. Quando uma espera acaba, começa logo outra, desejada ou temida (às vezes ambas). A saciedade traz consigo a ameaça do vazio, por isso é preciso recriar a espera e a incerteza com uma tensão que não seja excessiva e possa respirar nos breves momentos de consumação.

Só o estado de fluxo que a descoberta dos talentos traz faz esquecer essa espera, projetando uma cápsula que leva em viagem, não no tempo, mas para fora dele, e apagando o rasto do enigma no trava-língua “quanto tempo o tempo tem”, o único que conseguia dizer sem tropeçar nas sílabas. Talvez seja o empenho em resolvê-lo que me faça andar sempre adiantada, condenando a paciência às agruras da espera.

A reflexão, porém, nasce de não me ter feito esperar para ler o ensaio que Andrea Köhler dedicou à espera, na obra O Tempo que Passa, que me cortejava às claras desde o primeiro olhar. A expetativa não foi defraudada, envolvendo-me agora em castelo no arco de metáforas culinárias que a leitura serve para o jantar.

 

 

28
Mar24

"Trivia"

Sónia Quental

        Sento-me, preparada para esperar, quando recebo um e-mail com um inquérito sobre o que é a beleza nos dias de hoje. Um estudo sobre a beleza “real”. Ocorrem-me fragmentos de um questionário que Luís Quintais promoveu a poema: “Em que medida o incomodam sentimentos de predestinação? Nada? Um pouco? Moderadamente? Muito? Muitíssimo?”

        Chega a minha vez. Perguntam-me se quero acelerador. O cronómetro grita em surdina: acelera, acelera. Digo: “Não”. Desacelera. 35 minutos com a tinta. Como se me ouvisse, na rádio uma música desatualizada fala de chamas eternas e destino. Ainda não sabe que o destino é um algoritmo. A beleza, estatística de cabelos brancos.

       Enquanto me torno mais carvão, a cabeça rascunha. Consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo e há que aproveitar quando o tempo desacelera, mesmo que as mãos crispadas nos joelhos ainda estejam a contar. Desassossego nos momentos de transição, principalmente se espremidos pela pressa. Queria ter comigo o Ensaio sobre a Espera, de Andreia Köhler, que vinha muito a calhar, mas ainda não o comprei.

        Faço antes uma leitura ligeira, mas esperançosa: como curar a dor de costas através da conexão mente-corpo, mas nem a desaceleração dá tempo para praticar. No telemóvel, uma fotografia de uma página do Tao Te Ching aberta ao acaso (faltou-me a paciência para a copiar à mão): “Quem se põe em bicos de pés não se mantém ereto./ Quem estica muito as pernas não pode andar”.

        Tudo o que precisava de saber sobre dores de costas e predestinação. Quanto à beleza, tendo a concordar – moderadamente, isto é.

 

13
Mar24

Domingo, manhãs

Sónia Quental

Saio nas manhãs de domingo à hora a que apenas os turistas japoneses cobrem de flashes a Capela das Almas. Nesse momento de transição, em que a luz e a sombra dão de ombros uma com a outra, a coexistência de fenómenos contrários está em evidência.

Ao lado da loja de manutenção de bicicletas, onde um grupo de ciclistas dispostos marca encontro todas as semanas, emerge de uma cave um bando de vampiros, sofrendo as dores do alvorecer com um montinho de erva na mão, que deduzo não será incenso nem mirra, contemplando-o como que esperando que a luz do dia também o ponha a fumegar. Não fico para ver, embora note que a indumentária daquelas que já não posso jurar serem do sexo feminino deixa pouco à imaginação.

O Facebook avisa-me que é dia de eleições. No Twitter (X), alguém brada que as mulheres não são nada sem a vocação da maternidade. Quase me engasgo com a torrada, mas consigo reunir forças para lhe enviar à distância a minha tísica compaixão maternal. Atravessa-me o pensamento a experiência do horrendo e do sublime no baile de domingo passado, sem saber o que esperar deste. Ao passo que o sublime é fugaz, o horrendo tem o hábito de se pegar, por mais que o sacuda.

Pelo caminho, a memória da semana traz-me ecos sumidos: encaixa a baciaaperta os glúteos. Pessoas com a chave na mão pedem duas vezes ajuda para lhes abrir a porta de casa, apontando-me a vocação a que sacrifiquei a maternidade: facilitar entradas.

Quisera seguir os passos de Sophia neste meu caminho da manhã, mas não é época de figos pretos no mercado, que tem hoje o seu dia de descanso. Aqui não há cigarras que cantem o silêncio de bronze – apenas homens que sacodem os tapetes do carro. Onde quer que a manhã pouse, o sublime chega-se com a sua lágrima de mel numa paisagem de azulejos, harmonias e contrastes. E o amor do Invisível pelas coisas visíveis afigura-se ralo só a quem precisa de altar para deitar os joelhos ao chão.

 

2019 © Francisco Amaral - todos os direitos reser

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

04
Dez23

É o carinho, caros "cowboys"

Sónia Quental

Podia ser nómada digital, mas preferi ser sedentária, o que não significa que o caminho não esteja cheio de escolhos e não sinta a adrenalina das montanhas-russas. Ultimamente, têm sido vários os momentos de perplexidade, ao cruzar-me com os novos cowboys do comércio, que já dispensam os recursos humanos para empregarem a automação, num esforço de reduzir “custos operacionais” – muitas vezes, sem qualquer palavra de aviso. Num dia estão lá, no outro deixam de estar, e o freelancer que lance as cartas para tentar adivinhar o que se terá passado ou fique a coçar a cabeça e se desenrasque no fim. Até as empresas que assumem valores “humanos” desaparecem no mesmo vácuo misterioso, descartando as pessoas com igual facilidade que quem dá precedência ao lucro.

No entanto, e a par dos poucos clientes que se mantêm fiéis à qualidade do trabalho e às pessoas com quem trabalham, tenho notado um crescimento da tendência inversa à descrita no parágrafo anterior, em anúncios que frisam não aceitar trabalho feito com o auxílio de qualquer ferramenta automática. Querem o 100% humano.

É um dos motivos que me fazem achar que no futuro o humano será o novo vinil. A nova corrida ao ouro. Também pelas minhas reações quando me deparo com páginas web geridas por bots, sem oferecer qualquer forma de contacto com gente de carne e osso. Em vez de encontrar soluções, embato contra uma parede após a outra. O desespero de lidar com robôs que me mandam ler artigos de ajuda e me atiram para um labirinto que me leva repetidamente ao mesmo ponto de partida, continuando sem resolver o meu problema, faz que, como consumidora, rejeite semelhantes marcas com a mesma rapidez com que elas dispensam as pessoas.

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Não faria compras num site de comércio eletrónico que empregasse tradução automática, tal como não visito os que são escritos em português “marroquino” (uma variante cada vez mais generalizada, com forte pendor oralizante e anglo-saxónico), acreditando que os falantes nativos são exímios utilizadores da língua, abonando à marca o selo de autenticidade e permitindo-lhe poupar em mão de obra efetivamente qualificada.

Aquilo em que pensa quem se apressa a suprimir o valor humano, crendo-o ultrapassado, é no lucro a curto prazo. Quer-se eficiência, produtividade, esperando-se que o público fique satisfeito com um serviço aparentemente melhor e mais rápido. Neste capítulo da história, ainda está longe de o ser, havendo que ponderar o fator desprezado de em muitas situações as pessoas simplesmente não gostarem de ser atendidas por máquinas.

Falando do atendimento humano, posso dizer que é muitas vezes o motivo pelo qual frequento determinados espaços comerciais. Posso ter de pagar mais ou de percorrer uma distância maior; a qualidade da oferta pode não ser superior, mas a alegria e o cuidado que encontro no atendimento são os elementos diferenciais – nem sempre é a conveniência que dita as escolhas. Num dos supermercados a que mais vou, faço-o porque gosto de sentir o calor das funcionárias nas caixas, que não trabalham contrariadas. Recebo um agasalho emocional quando a pessoa tem o cuidado acrescido de pôr as minhas compras no saco, acomodando-as com um esmero que não está no contrato.

É o carinho, caros cowboys. Foi no carinho que se esqueceram de pensar.

Podem dar às máquinas aparência e voz semelhantes às humanas, uma precisão sem precedentes. Num futuro próximo, posso vir a ser atendida por um aparelho que fale comigo, conheça todo o meu histórico de compras e as minhas preferências, saiba medir a minha temperatura e indicar-me o índice de massa corporal. Não é o mesmo que alguém que sabe pequenas coisas, porque prestou atenção. A atenção e o contacto humano são a mina, caros cowboys – não o contactless. Se pensassem antes no lucro a longo prazo e soubessem que gente não é besta, apesar de todos os sinais em contrário, poriam o humano no âmago da evolução, não como palavra-chave sonante de congressos políticos ou de um discurso de marketing com metas de SEO a atingir.

 

Fotografia: 2013 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

01
Dez23

#loveyourself ?...

Sónia Quental

Às vezes, esqueço-me de gostar de mim. É como sair de casa com a camisa desabotoada ou uma meia de cada cor. Já me aconteceu ir com as leggings do avesso. Depois reparo e ocorre-me: já me esquecia de gostar de mim. Conto os minutos que andei nesse estado, fora de prumo, de tom. Quantas pessoas terão notado. Começa a chover e, irritada por não ter trazido guarda-chuva, irrito-me com a irritação. Ah, outra vez o vício de me castigar.

Vou pela rua e admiro as pessoas para quem parece fácil gostar de si. Costas direitas e cabeça erguida, a passada convicta, certezas muitas. Quando penso que gostava de ser assim, a polícia da consciência sopra o apito: passei outra vez o sinal vermelho. Quase que me esquecia de gostar de mim.

Ou quando me convidam para socializar e eu faço cara séria e digo que vou tentar, sabendo desde o início que não. Não gosto de estar no meio de gente, por isso crio fábulas complicadas. A verdade é uma bofetada dura de dar. E nem sempre é fácil gostar de mim.

A páginas tantas, estou empanturrada de preocupação, emoções sólidas que não levei ao calor brando do banho-maria. A caixa de Pandora a abarrotar. Sempre que a esvazio, volta a encher-se – o único milagre que faço. Nem a esperança quero lá dentro, esse veneno subtil. Tirem-me a esperança, mas deixem-me a leveza de gostar de mim. Agora, que lhe provei o sabor, quero mais.

Engelho o nariz ao ver que tudo o que escrevo agora mete receita de culinária. Um dos primeiros e mais volumosos livros que li não foi a Bíblia, mas o Tesouro das Cozinheiras. Livro de sabores e comédia, uma primeira incursão no mundo dos graúdos.

Agora, que penso, vejo que, antes de copiar palavras do dicionário, copiava receitas. Nos tempos livres, digo. Agora, copio citações. Gosto de copiar e de fazer listas – é assim que não perco coisas nem sonhos, dando-lhes suporte, desenhando-lhes a forma. É isso que me prende à terra e ainda me separa dos quadros de Chagall. Isso e os figos. São uma boa forma de gostar de mim (quando me lembro).

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

22
Nov23

Quarto crescente

Sónia Quental

Há épocas para tudo. Há-as de enchentes de trabalho, seguidas de outras em que escasseia. Há épocas em que os cineastas só fazem filmes de vampiros, bruxas e criaturas afins. Há épocas como esta, em que a zona onde moro se transforma num estaleiro de obras, porque resolveram todos fazê-las em uníssono. Épocas em que todas as cabeças que encontro andam a pintar a casa. E a música de fundo que ouço no trabalho é o assobio dos homens lá fora.

Há épocas de chuvas torrenciais e ventos absurdos, sumidos como suspiros nos pequenos verões de bonança. Há ciclos que parecem de Job, noites que atormentam a alma que não tem o condão da paciência. Há épocas em que só há perguntas, outras em que nem isso. Épocas de estar só. E épocas também de companhia.

Há estações de azul (estou numa de verde). Fases de querer cozinhar, outras de recusa. E deixem-se de porquês: tudo o que não seja “porque sim” ou “porque não” é pura ficção.

Há épocas em que nada acontece, outras em que se vive aos atropelos. Vou resfolegando em ambas, treinando o equilíbrio entre as marés, medindo a perna que se segura melhor na areia seca ou molhada.

Há épocas em que não durmo, temporadas sem sonhos – outras daqueles a que Miguel Esteves Cardoso chamou “xixi cerebral” (que não são as melhores). Há épocas de premonições, avisos proféticos, sinais. Há quadras em que até os deuses se afastam.

Há semanas de escrever e outras de empenar. Da birra à paz, uma penada. Quarto minguante, quarto crescente. Tudo tem o seu momento. Mas o que me apetece mesmo é a lua cheia.

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

17
Ago23

Valha-me a meia de leite

Sónia Quental

 

Gnosis is a moving target. Walking its path is a nomadic life. When night falls, you pitch your tent. In the morning, you pack it up, put in on your back and start walking again. Don't pitch it anywhere permanently. Be the infinite explorer.

Neil Kramer

 

 

Ouvi mais de uma vez pessoas que trabalhavam em cafés ou padarias fazerem comentários de desabafo sobre os hábitos dos clientes regulares. Exasperava-as que a mesma pessoa tomasse todos os dias o mesmo pequeno-almoço, a mesma meia de leite com o que quer que fosse a acompanhar, apesar da variedade de opções em oferta. Os motivos não são tão elementares quanto possa pensar-se, embora nem sempre sejam conscientes.

Os hábitos, por mais pequenos que sejam, são âncoras num mundo de incerteza e insegurança. Falando por mim, que convivo há muito com um grau de incógnita robusto: quase sempre, como trabalhadora independente, não me é possível saber se daqui a um mês vou ter trabalho ou ordenado, o que dificulta fazer planos. A ansiedade e o desgaste que esta situação vai naturalmente gerando ao longo dos anos são amplificados pela falta de uma estrutura familiar e afetiva de apoio. Somam-se as mudanças que vêm de fora, da sociedade, e as que irrompem de dentro, ditando-me viragens de rumo que me cabe apenas pôr em marcha. Uma consciência que não vive petrificada exige um sacudir de pele constante, um nunca pousar a cabeça duas vezes no mesmo leito.

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No meio disto, o que me vale é a meia de leite ao pequeno-almoço. Pode não ajudar a tornar mais interessante o dia de quem a serve, mas é das poucas coisas a que ainda me posso agarrar, tirando quando fecharam cafés e postigos. Aí, nem meia de leite havia.        

Acresce que a quantidade não simplifica a escolha. Quando há muito por onde escolher, a confusão é tanta que quase sempre se escolhe errado, a que se segue o arrependimento pela oportunidade perdida de tomar aquilo de que se gosta garantidamente. Alivia ter-se pelo menos uma preferência em que não é preciso pensar, que é imediata e não atraiçoa. Um pequeno prazer certo entre os tantos que falham.

Há ainda o conforto de ir a um estabelecimento onde se é conhecido. Ter alguém que sabe o que queremos e como gostamos de o tomar, sem ter de perguntar. A comunicação silenciosa e conivente que se estabelece num sítio que não é casa, mas que se torna um pouco mais como casa e que às vezes nos mima com rabanadas fora de época.

Mau grado os argumentos, sei que chegará um dia em que até este apego terei de deixar. Até lá, valha-me a meia de leite.

 

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0