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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

21
Ago24

Confessionário

Sónia Quental

 

         A alternativa à glamorização da imagem nas redes sociais, que faz parecer que todos vivem de férias, a viajar, se alimentam de pratos exóticos e passam o tempo em aventuras radicais, é o momento do confessionário. É o nome que dou a quando alguém ouve falar nos atrativos da vulnerabilidade e decide experimentar, com a mesma tónica na transparência em que se empenhava até aí – com a diferença de que o que antes era a “transparência” enfeitada do hall de entrada é agora a transparência hiperbólica da cave de horrores.

         Afinal, nem tudo eram rosas. A pessoa não estava a ser autêntica, mas decidiu assumir aquilo que era, com todos os defeitos e descalabros que tentava esconder dos outros. Percebeu intimamente o charme de se afirmar derrotada, o brilho indesmentível da humildade que não quer parecer que é, mas prepara as conclusões para os outros. Agora, a postura é de contrição, sai tudo cá para fora, com baba, ranho e o voto de absolvição fervorosa do público de followers, cujo coração torce pelo ídolo e por este seu lado tão humano, que toca o lado humano de cada um. No fundo, não são tão diferentes assim.

        E no entanto… Esta prática emocionada e indiscriminada da “vulnerabilidade”, ao estilo reality show, deixa a mesma sugestão de fake do que as anteriores máscaras do poder - a mesma sugestão que sempre senti quando alguém tentava aplicar o esquema da comunicação assertiva, expressando sentimentos e necessidades com a intenção sub-reptícia da chantagem emocional.

         Desabafo agora eu, neste momento de vulnerabilidade mimética, a repugnância instintiva que senti quando encontrei uma publicação do professor espiritual Jeff Foster, que passava na altura por uma fase crónica da doença de Lyme, exteriorizando um pânico que várias vezes o tentou ao suicídio. O título da publicação era “Will you remind me of my own teachings?”, a única parte que senti honesta em toda uma ode à vulnerabilidade, à abertura, à autenticidade e à transparência – termos que se acompanham muito, mas que têm uma essência mal compreendida. Entre o elogio das virtudes de dar a conhecer sem vergonha o inferno por que passava, revelava que não queria morrer, embora às vezes também sentisse o desejo conflitante de morte. Desde o “There’s no shame in crying out to your God when you’re on the fucking cross” até à derradeira confissão (“The ‘Fuck it’ becomes stronger than the ‘Namaste’”), os palavrões vão pontuando a poesia deste que se desespera na perspetiva de dar de caras com a morte (introduzo já aqui o spoiler de que o autor em questão recuperou, se encontra bem e foi recentemente pai).

         Dois dos grandes avatares da espiritualidade do século XX e de todos os séculos, Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj, morreram de cancro. Len-ta-men-te. O autodomínio que manifestaram é em tudo avesso à atitude que a publicação anterior deixa transparecer. Tiveram não só a dignidade de sofrer em silêncio, mas a capacidade de transcender a dor e o corpo. Quando procuro um professor, uma figura exemplar e conhecedora que me ensine a limpar a minha cave de horrores e a mudar-me para o andar de cima, não espero que essa pessoa seja como eu: espero que seja melhor. Mesmo que na condição humana não haja absolutos, há comparativos de superioridade. Por isso, espero-os um pouco mais invulneráveis do que eu. Espero que me mostrem aquilo que posso ser e não que tenha de ser eu a lembrá-los daquilo que ensinaram.

 

03
Jan24

Ser um livro aberto

Sónia Quental

Foram mais de duas semanas à espera de um livro de que restam poucos exemplares em circulação e que veio de fora, chocolate branco para a alma. Antes de começar a dança de aproximação que terá o seu culminar numa leitura tempestuosa, o primeiro pensamento foi adicioná-lo à lista do Goodreads, mais por uma questão de organização do que de visibilidade.

Mas a visibilidade tornou-se a questão, quando se peca pelo excesso dela. Ora são as selfies tiradas no restaurante, no ginásio, na rua, no elevador, no cabeleireiro; ora é a vida no direto contínuo das lives; ora as “partilhas” que alimentam os sites e fóruns de comunidades gerados em torno de interesses comuns… Sem lhes negar o valor (ou cá não estaria), o seu crescimento desenfreado, por entre a teia das redes sociais e a exposição virtual de cada palmo de vida neste mundo virtual, em que se opina vigorosamente sobre todos os assuntos e mais alguns, sobretudo aqueles que se desconhece, acaba por transformar toda esta caldeirada numa boa posta de pescada que, no meu vocabulário, é código para “a evitar o mais possível”.

É relativamente inocente partilhar e recomendar leituras, para continuar o exemplo que me trouxe a este texto. Mas há livros que são só para nós e que só se nos revelam no segredo de uma relação fechada para o mundo. São livros que não se lê uma vez só, e não necessariamente por ordem. Fazem coisas dentro de nós, mesmo quando parecem resistir à decifração ou, pelo contrário, quando parecem simples, mas há um travão que não nos deixa ir além da sua aparente obviedade, insistindo em que fiquemos.

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Talvez seja por isso que sinto algum pudor quando me perguntam qual o meu livro preferido. Foram volumes que viajaram comigo no tempo, ficaram desfeitos pelo uso e as leituras repetidas, que a vida ia revelando em novas camadas e ao mesmo tempo confirmando que me eram destinados. Há quem diga que cada um de nós tem um koan pessoal a descobrir, a que precisa de dar resposta. Acredito que os nossos livros preferidos façam parte desse koan e por vezes sinto que nomeá-los é expor-nos além da abertura necessária para expressar preferências, formular resenhas ou até escrever, como aqui ou nos próprios livros se faz, com tudo o que já exige de entrega.

No embalo desta divagação, acrescento que não me incomoda, por sua vez, identificar o livro mais intragável que alguma vez me passou pelas mãos: Ulisses, de James Joyce. Punha fé no nome, mas nem ele o salvou do naufrágio, com o cúmulo de o ter lido na praia: a) nos tempos em que tinha férias; b) quando me obrigavam a ir à praia. Nem lhe podia dar a conhecer a minha frustração física nem usá-lo para pousar a cabeça quando estava a apanhar sol deitada de barriga para cima, porque era um livro da biblioteca, que teve como única finalidade fazer-me questionar vocação, carreira e existência, tudo ao mesmo tempo (e consta que nem sequer é o “pior” do autor). Considerando os estragos, não foi nada mau que tenha levado apenas alguns grãos de areia para a prateleira.

Parece-me que não nos importamos de escrutinar e esquartejar ódios, dividir as carnes pela tribo até ficar só a carcaça. Os amores, embora nos deliciem na comunhão com os amadores que para eles gravitam, guardam uma margem de secretismo que não deve ser violada e que fulgura apenas no silêncio, como as pinturas de Georges de la Tour. São livros que não podem ser abertos a outros olhares, que pulsam e nos convidam                entreabertos.

 

16
Set23

A tirania dos novos infantes

Sónia Quental

 

Existe uma demonologia própria do politicamente correto. Certos rituais midiáticos são do âmbito do exorcismo, para afugentar o diabo da comunidade política – o diabo que assume os traços da intolerância.

Mathieu Bock-Côté*

 

O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento (…). Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos.

Theodore Dalrymple*

 

 

 

Interrompi a custo a leitura da obra O Império do Politicamente Correto, de Mathieu Bock-Côté, e respirei fundo algumas vezes antes de enfiar as luvas para detergentes abrasivos e mergulhar mãos nas “Diretrizes da comunidade” do Pinterest, exemplo cabal da realidade progressista descrita naquela obra.

A primeira vez que notei uma lógica de funcionamento anómala nesta rede social, anos antes da pandemia, foi quando tentei fazer uma pesquisa com a palavra-chave “sapiossexual” e a plataforma recusava apresentar resultados**, por entender que o conteúdo violava as políticas da comunidade, argumento entretanto adotado por outros canais.

Por estes dias, com a pujança orgiástica dos novos mecanismos da censura, dei-me conta de um Centro de denúncias e violações com uma lista de pins removidos ou com distribuição limitada, por se inserirem ora na categoria de conteúdo para adultos, ora na de violência gráfica. Fui espreitar o último que tinha incorrido em tal violação e tratava-se do rosto banhado em lágrimas de uma estátua de Nossa Senhora das Dores, que a declaração associada à denúncia dizia ter transgredido as diretrizes sobre violência gráfica, por conter “imagens perturbadoras, como violência iminente, caça a animais ou ilustrações gráficas com atos de violência explícita ou grave”. Pensei que estivesse a olhar para a imagem errada, mas não – a descrição referia-se mesmo àquela, uma imagem de que eu tinha simplesmente gostado.

Após um exame um pouco mais demorado das acusações relacionadas com a minha atividade, constatei que violência gráfica eram também representações artísticas da crucifixão de Cristo, estátuas simples de outras divindades e a carta 10 de Espadas do Tarot, referindo-se, por sua vez, o “conteúdo para adultos” a obras de arte que expunham a mínima nesga do corpo humano, incluindo cartoons com personagens em biquíni. Já dentro das atividades de incitação ao ódio, havia uma citação que elogiava a natureza itinerante e livre das “almas ciganas”. E mais não quis ver, porque as luvas de nitrilo não chegavam para tanto e a inépcia respingava por todo o lado, ameaçando manchar-me a capa recém-lavada do sofá.

No parágrafo inicial, que descreve a missão da plataforma, o apelo reiterado é à denúncia – muito simplesmente porque “nem todos os conteúdos são inspiradores”. E, se dúvidas restassem de que a redação destas diretrizes foi feita por crianças, basta atentar na secção sobre assédio e críticas, em que a mágoa arbitrária que alguns possam sentir, por atos que entendam como ofensivos, é critério de exclusão ou limitação da visibilidade de conteúdos. A acusação tornou-se sinónimo de culpa, como bem aponta Theodore Dalrymple na obra Podres de Mimados, provindo de um julgamento automático e omnipresente de quem, ironicamente, se posiciona contra os julgamentos e tanto trabalha para combater teorias da conspiração.

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Pretende-se purgar os espaços sociais virtuais de todos os vestígios de negatividade, para que se mantenham “inspiradores” e felizes – acrescentaria que de “bom gosto”, característica que aparentemente não abençoou a estátua de Camilo no Largo do Amor de Perdição, considerada feia pelo presidente da câmara, pornográfica por outros tantos “especialistas” em arte, em tendências que confirmam a ameaça assustadora da purga a pairar sobre o mundo físico.

 

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*Citações extraídas da edição brasileira das obras.

**A esta data, as restrinções aplicam-se apenas ao termo com um "s": "sapiosexual", o que significa que a correção ortográfica iludiu a censura.

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0