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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

21
Ago24

Confessionário

Sónia Quental

 

         A alternativa à glamorização da imagem nas redes sociais, que faz parecer que todos vivem de férias, a viajar, se alimentam de pratos exóticos e passam o tempo em aventuras radicais, é o momento do confessionário. É o nome que dou a quando alguém ouve falar nos atrativos da vulnerabilidade e decide experimentar, com a mesma tónica na transparência em que se empenhava até aí – com a diferença de que o que antes era a “transparência” enfeitada do hall de entrada é agora a transparência hiperbólica da cave de horrores.

         Afinal, nem tudo eram rosas. A pessoa não estava a ser autêntica, mas decidiu assumir aquilo que era, com todos os defeitos e descalabros que tentava esconder dos outros. Percebeu intimamente o charme de se afirmar derrotada, o brilho indesmentível da humildade que não quer parecer que é, mas prepara as conclusões para os outros. Agora, a postura é de contrição, sai tudo cá para fora, com baba, ranho e o voto de absolvição fervorosa do público de followers, cujo coração torce pelo ídolo e por este seu lado tão humano, que toca o lado humano de cada um. No fundo, não são tão diferentes assim.

        E no entanto… Esta prática emocionada e indiscriminada da “vulnerabilidade”, ao estilo reality show, deixa a mesma sugestão de fake do que as anteriores máscaras do poder - a mesma sugestão que sempre senti quando alguém tentava aplicar o esquema da comunicação assertiva, expressando sentimentos e necessidades com a intenção sub-reptícia da chantagem emocional.

         Desabafo agora eu, neste momento de vulnerabilidade mimética, a repugnância instintiva que senti quando encontrei uma publicação do professor espiritual Jeff Foster, que passava na altura por uma fase crónica da doença de Lyme, exteriorizando um pânico que várias vezes o tentou ao suicídio. O título da publicação era “Will you remind me of my own teachings?”, a única parte que senti honesta em toda uma ode à vulnerabilidade, à abertura, à autenticidade e à transparência – termos que se acompanham muito, mas que têm uma essência mal compreendida. Entre o elogio das virtudes de dar a conhecer sem vergonha o inferno por que passava, revelava que não queria morrer, embora às vezes também sentisse o desejo conflitante de morte. Desde o “There’s no shame in crying out to your God when you’re on the fucking cross” até à derradeira confissão (“The ‘Fuck it’ becomes stronger than the ‘Namaste’”), os palavrões vão pontuando a poesia deste que se desespera na perspetiva de dar de caras com a morte (introduzo já aqui o spoiler de que o autor em questão recuperou, se encontra bem e foi recentemente pai).

         Dois dos grandes avatares da espiritualidade do século XX e de todos os séculos, Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj, morreram de cancro. Len-ta-men-te. O autodomínio que manifestaram é em tudo avesso à atitude que a publicação anterior deixa transparecer. Tiveram não só a dignidade de sofrer em silêncio, mas a capacidade de transcender a dor e o corpo. Quando procuro um professor, uma figura exemplar e conhecedora que me ensine a limpar a minha cave de horrores e a mudar-me para o andar de cima, não espero que essa pessoa seja como eu: espero que seja melhor. Mesmo que na condição humana não haja absolutos, há comparativos de superioridade. Por isso, espero-os um pouco mais invulneráveis do que eu. Espero que me mostrem aquilo que posso ser e não que tenha de ser eu a lembrá-los daquilo que ensinaram.

 

19
Jul24

O caroço

Sónia Quental

 

But to find what true happiness is, we must be willing to be disturbed, surprised, wrong in our assumptions – and cast into a very deep well of unknowing.

Adyashanti

 

                  

         Admito que a glorificação da autoconfiança sempre me inquietou. À medida que ia atravessando limiares etários, sempre à espera de chegar ao círculo das pessoas que “sabem” (o que se passa, o que andamos aqui a fazer, com respostas conclusivas para as perguntas que importam), descobri que quase ninguém se importa com as perguntas que importam. Passado aquele breve intervalo da adolescência ou a eventual crise de vida que leva a que se interroguem sobre o motivo de estarmos aqui ou sobre o que é a felicidade, ninguém quer saber. E descobri que, de entre aqueles que se importam, ninguém ou quase ninguém sabe nada que valha a pena saber. Ninguém que eu conheça, pelo menos – que esteja num círculo de convívio que transforme a ideia de um tal ser em algo mais próximo do que o mito ou a improbabilidade estatística, dando-lhe os contornos de possibilidade alcançável.

         Admito que os autoconfiantes me pareciam mais capazes de lidar com a vida. A crença acaba por ter o seu poder hipnótico, dá um certo desembaraço e tenacidade que leva à superação de “desafios”, esse eufemismo que, como todos os que se repetem levianamente, se tornou nada menos do que insuportável.

         Admito que sentia uma certa inveja dos autoconfiantes, a quem o sucesso parecia servido numa bandeja que premiava a simples crença na capacidade própria, fosse qual fosse o seu fundamento. “Autoconfiança” é a qualidade que aparece à cabeça da lista de predicados que se procura no sexo oposto. A pessoa autoconfiante inspira automaticamente confiança – pelo menos, à primeira vista. Chegado o momento da revista, admito que comecei a ver o quanto de propaganda havia na autoconfiança e o escandaloso logro que espreitava por baixo. Percebi que quase todos os autoconfiantes estavam enganados quanto às qualidades de que se achavam investidos, embora não se cansassem de as alardear: se as repetissem muito, talvez conseguissem convencer-se, a si e aos outros, e elas se tornassem reais.

         Admito outra coisa: que os autoconfiantes eram pessoas demasiado normais para mim. Com demasiadas certezas, demasiado instaladas na vida (não conseguia evitar o horror a esse “encaixe”). Convencidas de que a autoconfiança e a força de vontade bastam para marcar pontos, subjugar os obstáculos de uma existência empenhada em criar dificuldades, materializando uma meta depois da outra por pura diversão, numa luta de vontades que pedia, além de autoconfiança e pensamento positivo, perseverança.

         Admito que a perseverança me inspira mais simpatia. Saber a que aplicá-la é para mim um “desafio” bem mais valoroso do que cultivar a autoconfiança à força bruta, envergar trajes glamorosos que nada escondem por baixo. Mais do que a polpa, interessa-me o caroço.

 

11
Jul24

Olhar para o teto

Sónia Quental

 

Antes de existirem os ecrãs, olhávamos para o teto. Isto é, já tínhamos um protótipo de ecrã para estabelecer contacto à distância e dizer “Estou a olhar para o teto”. Nesses tempos, ainda não se falava de mindfulness, não sabíamos nada de meditação. O mais que podíamos fazer nas noites de insónia, além de olhar para o teto, era olhar para a lua ou tentar adivinhar que música ia passar na rádio, numa altura em que ainda não tínhamos sido expropriados dos poderes telepáticos, que funcionavam com uma eficácia acima da média – um indício de que talvez pudéssemos vergar o futuro, embora o presente fosse mais difícil de deslocar.

A ideia de uma tão grande tela em branco, como o teto ou o futuro, assustava o nosso despreparo, mas merecia ser contemplada, não fosse apanhar-nos de surpresa enquanto fazíamos de conta que a vida era sempre em frente e que bastava acertar num curso com saída para se apanhar a via rápida. Literatura, filosofia, teologia, artes não faziam parte da lista.

A nossa era uma terra pequena – nós habituados a caminhar carregando orbes debaixo do sol. Conhecíamos os caminhos difíceis, embora não tão difíceis quanto os das gerações anteriores, que faziam questão de nos lembrar os seus pés descalços na neve e o leite que vinha da ordenha quando eram magras as vacas. Ainda havia férias grandes, momentos parados em que a vida nos obrigava a pensar nela, a procurar palavras que captassem as nuances de uma angústia existencial em que alguns ficaram a morar para sempre: presos no teto, onde ainda flutuam.

Iniciados na poesia, era incompreensível a pressão e a expetativa de quem nos queria ver simplesmente funcionais na sociedade, sem destoar demasiado, a não ser pelo lustro ou um lugar de influência. O sustento assegurado. Tanto martelaram que houve quem encaixasse por fora, mas ficasse perdido por dentro, eterno Peter Pan que não encontra saída da Terra do Nunca.

Olhando hoje ao redor, com a escalada da violência e a fragilidade quebradiça da saúde mental, oferecem-se-me duas explicações: é de quem nunca olhou para o teto ou nunca saiu de lá, rodopiando à toa na Terra do Nunca, os olhos fechados em caixão de vidro. Um beijo que nunca chega de fora.

 

15
Jun24

Para sempre

Sónia Quental

           

Torna-se claro que vivemos no fim dos tempos quando já não é de uso dizer-se “para sempre”. Se a rotação da Terra desacelera e os dias crescem, contra a impressão de aceleramento que a maioria informa, só os ingénuos ainda trazem na boca juras eternas. Os ciclos passaram, de séculos, a meses, dias, horas, cortados em descontinuidades cada vez mais curtas. Somos seduzidos com o mantra do momento presente como antídoto contra os corredores da memória, onde o futuro também tem quarto. Há que apagar os vestígios da cronologia, ser-se pessoa sem sombra na vertigem do instante, que não poupa noites à insónia.

No piano da estação de metro, alguém toca a “Canção de engate”, de António Variações, que me entra sempre na cabeça. Resisto ao ímpeto de a cantar, pelo comezinho da letra, antítese da eternidade ou apoteose de um “agora” impostor: o amor como aventura dos sentidos, um momento em que duas solidões se entregam, sem pedir continuidades ao tempo. Que “o amor é o momento” é daquelas frases que soam bem e que fazem eco naqueles de nós que gostam de citar frases sonantes sem se demorar muito nelas – mas é frase que mente.

Quem procura o Agora para escapar ao peso do tempo, ao seu prolongamento, é aprendiz de feiticeiro, tentando com moedas roubadas comprar as dádivas da eternidade. Conscientemente, já não podemos dizer “para sempre”: entre este segundo e daqui a uma hora, podem passar eras, tudo mudar. Se estamos vivos, passamos com elas, não resistimos ao tempo: não o deixamos transcorrer, mas percorremo-lo sem reservas até acabar. Só no fim do tempo pode existir o Agora onde o “para sempre” dorme e o Amor funda o seu lastro.

 

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Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

20
Abr24

Metafísica do nada

Sónia Quental

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Steven Pressfield

 

Se uns dizem que somos o que pensamos, já outros gostam de nos reduzir ao que comemos. Seja qual for a preferência, a resposta para os estorvos da existência parece passar invariavelmente por mudar de dieta, abolir o glúten, comer orgânico, aprender a gerir as emoções, a pensar com clareza ou a libertar o poder do pensamento. Definir metas, desmontar crenças limitantes ou irracionais. Limpar o quarto. Sacudir o marasmo. Trabalhar a autoestima, alindar a imagem de si e escrever com o batom no espelho I am enough, que pode muito bem ser a maior invenção depois do batom e do espelho.

Mas as chaves milagreiras compõem uma extensa lista, que vai desde: frequentar workshops, aprender outro idioma, ter aulas de dança, pintar as unhas, tomar banhos de imersão, recitar um mantra, tocar um instrumento musical, fazer psicoterapia, tornar-se fotógrafo amador, adotar uma criança ou um animal, fazer voluntariado, salvar o mundo, refugiar-se num retiro, fazer uma desintoxicação digital, ir morar para outro país. Perdoar. Deixar ir. Abraçar a criança interior. Espremer os limões para fazer limonada. Acabar com a autossabotagem. Ir para o centro do ringue ou da arena. Aprender a dizer “não”, mandar os outros à merda – dizer “sim” à vida. Saber que o universo conspira a nosso favor. Pôr as mãos em concha para o ouvir. Render-se ao tantra, experimentar o ayahuaska. Na dúvida: viajar.

 

Carpe diem

 

O mundo interior é um castelo de cartas: tão leve e frágil que um sopro lhe destrói os andaimes. A vida é feita de sensações e experiências, respostas transitórias para problemas que não se quer enxergar, com medo das consequências de se pensar demais. De encontrar o nada e descobrir que o caroço da vida é oco. Que se calhar não somos mesmo o suficiente, apesar do batom que agora não sai do espelho ou das afirmações repetidas em estado hipnótico, das meditações guiadas e outros rodopios light. Se calhar, tudo o que se fez a pretexto de aproveitar a vida não era mais do que fugir dela e de encontrar respostas próprias, em vez de respostas prontas.

Vale a pena lembrar que é o buraco que faz o dónute. E, se há sabedoria que alguma vez me tenha ficado dos poetas que contemplam a metafísica do nada, em alternativa às mensagens dos pacotes de chá, são os versos, que tantas vezes canto com José Régio, umas vezes rindo, outras chorando: "Não, não vou por aí! Só vou por onde/ me levam meus próprios passos”.

 

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Fotografia: 2022 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

06
Abr24

À janela

Sónia Quental

 

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O lugar fora sempre à janela, uma forma de cruzar o movimento no tempo e no espaço com o desconhecido que desbravava ao de leve, com o olhar em laser sobre a paisagem. Não gostava que me enganassem sobre o tempo e a distância até ao destino, com o corpo mole a escorregar para a lamúria do ainda-falta-muito-para-chegar, abafada com uma mentira sempre igual. O enjoo só costumava vir quando a viagem de carro era longa, para uma sorte forçada, e me faziam engolir arroz-doce e pinhões à chegada.

A vida foi essa espera constante, numa viagem de coordenadas incertas. Espera pela noite de consoada, pelas férias de verão, pela carta que há de vir no correio, pelo toque do telefone, pelo episódio da próxima semana, por rapar a taça e espetar o palito no bolo, pela época dos morangos e das vindimas, pelo dia de aniversário, pela picada da seringa, pelos guinchos do porco quando a goela rasgava – a espera pela encomenda, que é sempre a mesma. Quando uma espera acaba, começa logo outra, desejada ou temida (às vezes ambas). A saciedade traz consigo a ameaça do vazio, por isso é preciso recriar a espera e a incerteza com uma tensão que não seja excessiva e possa respirar nos breves momentos de consumação.

Só o estado de fluxo que a descoberta dos talentos traz faz esquecer essa espera, projetando uma cápsula que leva em viagem, não no tempo, mas para fora dele, e apagando o rasto do enigma no trava-língua “quanto tempo o tempo tem”, o único que conseguia dizer sem tropeçar nas sílabas. Talvez seja o empenho em resolvê-lo que me faça andar sempre adiantada, condenando a paciência às agruras da espera.

A reflexão, porém, nasce de não me ter feito esperar para ler o ensaio que Andrea Köhler dedicou à espera, na obra O Tempo que Passa, que me cortejava às claras desde o primeiro olhar. A expetativa não foi defraudada, envolvendo-me agora em castelo no arco de metáforas culinárias que a leitura serve para o jantar.

 

 

20
Dez23

Grainhas

Sónia Quental

 

O tesouro não está na ilha deserta, encontra-se sempre debaixo dos nossos sapatos.

 Isra Bravo

           

 

Gostava de agradecer ao Steve Jobs pelo discurso de Stanford, mas ainda estou à espera que os pontos se liguem. Aguardo a todo o instante o dia em que olhe para trás e as vivências desconexas se unam numa figura geométrica que revele no seu esplendor o tesouro que esteve sempre lá. É por isso que não me mexo: ouvi muitas vezes dizer que ele está debaixo dos nossos pés. Não sou daqueles que têm de correr mundo para fazerem a descoberta no último capítulo. Estou informada desde o primeiro, por isso vivo de picareta na mão, dedicada a escavar a terra. Prefiro as vias subterrâneas, abrir caminho pelas raízes.

Mas começo a desconfiar que o Steve Jobs me enganou, que a tolice e a fome do mantra que revelou ao mundo geram apenas mais fome e tolice, um rodopiar no encalço de coincidências com significado, premonições que sejam de se fiar. Ou então é porque não tenho uma garagem como ele ou porque não desisti da faculdade. Coleciono lições de vida, erros para nunca mais, conjurando pontos e as suas hipotéticas ligações, expectante desse “aha” que me torne enfim bem-aventurada, revelando uma finalidade teimosa de se mostrar, que explique: foi por isso que passei fome.

Não há cá chegar ao fim do ano para se fazer balanços: o livro de contas está sempre aberto, o trabalho adiantado. O tempo distribui-se entre pagar impostos e a procura de um sentido, com a mesma minúcia feroz (embora não com igual vontade). Só não me digam nem mais uma vez que o que importa são os processos. Há um ponto em que os processos se tornam como os de Kafka: labirintos absurdos e embrutecedores. O que eu quero é a meta, não a burocracia. Por pequenina que seja, num minicircuito, uma corrida de beneficência. Venham os resultados, o produto bruto, o sumo da uva, porque de grainhas já chega.

 

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Fotografia: 2013 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

08
Jul23

Aprender a ser musa

Sónia Quental

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The human soul is hungry for beauty (…). 

John O’Donohue

 

 When you’re nothing, it’s always a good-hair day. 

Byron Katie

 

 

Ninguém aprende a ser musa. A vida não leva para isso. Na antestreia da maioridade, entregaram-me o roteiro: curso com saída – emprego – marido – assentar, para que não se desperdiçassem em mim os dotes de menina prendada. Em nota de rodapé, sublinhava-se, com letra não muito miúda: deixar de ser mal-agradecida e, acima de tudo, não fazer ondas, porque os conflitos não levam a nada.

Hoje, olho para o que fiz da vida, ou para o que ela fez de mim, para o curso sem saída (sem saída que eu queira), o trabalho sem emprego, o marido por materializar, ainda abalada porque há dias alguém se referiu a mim como mulher de meia-idade. A única coisa que faço razoavelmente bem é a sentar, desde que não me peçam agachamentos, e não há dúvida de que tenho talento para as ondas, que são o que mais gosto de fazer. Ainda assim, não invejo a vida de quem tem tudo aquilo que me parece faltar, fora as ondas.

Não queria sair do meu curso: queria ficar, ser para sempre aluna de professores apaixonados, que não ensinavam coisas práticas, mas ensinavam a sua paixão, adamantinos diante dos grupos de recém-adultos que saíam em debandada a meio da aula para irem jogar cartas para o bar, enquanto eu bebia as palavras daqueles amantes incendiados, com vergonha de quem lhes dava costas. Não era aluna do meu curso: era devota e foi como quem escuta blasfémia que, já adiantados nele, ouvi uma dessas que faziam tráfico de apontamentos e tiravam o curso no bar perguntar-me se gostava daquilo que estudava. Gostar??...

Mas, chegada ao último ano, acabaram mesmo por me mostrar a saída e, como um tropo gasto, em vez do final feliz, foi a realidade que encontrei à porta. Vi que era feinha e não me convinha. Ser-se adulto não era o sonho que imaginava quando não queria nada além de crescer. Cedo apurei que a vida profissional era uma continuação do jardim-escola e que adultos a sério não havia nenhum. Estavam todos a fazer de conta, as mulheres a brincar às senhoras com sapatos de salto alto e as unhas pintadas, os homens entretidos com brinquedos maiores. E ninguém sabia o que era a vida.

Entre casórios, crias e descasórios, os despautérios do emprego, dramas de família, crises de saúde pelo meio, férias no Algarve e passagens de ano bem regadas, o pacote clássico em oferta nem com desconto e brilhantina convencia, embora continuassem a tentar impingi-lo com toda a espécie de extras, vendedores-abutres que não acreditam no que vendem, mas se dedicam à causa com afinco redobrado, como se quisessem contagiar os outros com a própria infelicidade e receber comissão por isso. Que é como quem diz: comissão pela mentira, porque o cartão de visita da vida “normal” só dizia essa palavra: “Mentira”. Lda. Escritórios espalhados pelo mundo.

O que eu queria era o inverso dela, mas não lhe conhecia morada. Para resumir a história, deixei que a fome me levasse. Ela levou. Mergulhou-me no substrato da existência, que me seduzia mais do que a capa, mesmo que não fosse coisa prática, não desse para faturar, encher o currículo nem para orientar os workshops do arco-da-velha que por aí pululam. Com a Verdade, descobri a Beleza, descobri que a devoção não era apenas pelos professores apaixonados, mas um fogo que já ardia em mim, souvenir oculto do sagrado. Para o manter aceso, teria de aprender a dançar na corda bamba, sem emprego, sem marido, sem destino traçado. Sem a segurança da normalidade e das coisas certas da vida, apesar da condescendência com que sempre me lembram que nada é certo na vida.

O que me alimenta é esse fogo. Hoje, já não quero lugar no jogo cruel das cadeiras, criança infeliz que ficava sempre de fora. Sou a chama, cheia de ondas, que arde no centro. Não há mais a que possa aspirar.

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

04
Jul23

A costela do silêncio

Sónia Quental

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Let your ultimate prayer be an absolute silence.

Joel S. Goldsmith

 

 Silence reveals itself only to itself. (…). It’s the only teacher that won’t speak to you.

Adyashanti

 

Um choro de criança que insiste; vozes que batem de todos os quadrantes em pura incontinência verbal, exceto do lado direito, onde fica o anjo do silêncio a segurar a minha costela. Não sei se falam comigo ou se me sugam. Atordoada, desmancho-me como animal para a matança; a atenção que ofereço, polvilhada de açúcar, é sorvida até as reservas se esgotarem e só me restar o sorriso suplicante, que desfaço ao chegar a casa, a veia exposta pulsante no pescoço até há pouco tenro.

A digestão para. Vomito os cacos de estridência enquanto o anjo me segura os cabelos. Nem chá nem água me sossegam o estômago. Desidratada de silêncio, o único remédio é esperar que o anjo volte para dentro de mim. Quero que seja rápido, mas a rapidez é contrária ao movimento dos anjos, apesar da sua leveza. Entrego-me ao desconforto da demora, esqueço-me do tempo no trabalho de reinstalar o silêncio e regenerar os tecidos, voltar a montar o corpo peça a peça.

Mas nem isso me é pedido. Sempre que penso que tenho de fazer alguma coisa, a resposta é a mesma: fica quieta, a coisa mais difícil de todas. Tudo tende à harmonia e a ela volta, a menos que teimes no contrário e queiras saber como, tomar conta do processo. O silêncio é o que nunca deixa de ser. Nem um pensamento fora de sítio o faz bulir. Não pode ser ferido. Não podes perdê-lo. Está na tua costela, através dela se reparte e multiplica, sem jamais te expulsar do Paraíso. Fica quieta.

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Jun23

Isso que existe

Sónia Quental

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Assim como a subida da maré levanta todos os navios, o resplendor do amor incondicional num coração humano eleva toda a vida.

 Fran Grace

 

All the love and affection and kindness that came from Maharajji – you cannot get these from man.

 Ram Dass

 

 

O olhar de mais puro amor que alguma vez presenciei foi entre uma monja e uma criança. Parei a contemplar a cena com um pudor maldisfarçado, naquele princípio de noite em que as velas ainda não ardiam no Santuário de Fátima.

Ali estava, antes da procissão, como noutras ocasiões em que fui a Fátima, sem conseguir sentir qualquer beatitude ou atmosfera que sublimasse o lugar, além da miséria das pessoas em súplica ou do castigo de quem cumpre promessa. Chagava-me a exploração comercial dos peregrinos, sugados até ao tutano pela mais mísera refeição que tomassem, sem que a sua verdadeira fome fosse saciada. A missa a que numa dessas manhãs assisti pôs à prova o que me restava de candura: como é possível celebrar-se a fé com tamanho artificialismo e ostentação?...

A monja do olhar amoroso não era uma monja qualquer, mas essa é outra história. Naquele momento, trouxe-me à lembrança o documentário sobre Sri Prem Baba, Isso Existe, que traduz no título o arrebatamento de quando conheceu o seu mestre e sentiu o amor que dele irradiava. Outros, como Ram Dass, deram testemunhos semelhantes.

Naquela noite de maio, que à memória parece ter sido fresca, percebi que não era preciso viajar à Índia nem a lugares remotos para se achar raridades. Elas encontram-se no lusco-fusco do comum; dão-se a quem se dispõe a cruzar o umbral. Podíamos encontrá-las ao nosso lado, não nos achássemos pequenos em demasia.

Uns, ocupados com o corre-corre mundano, não aspiram a mais e, mesmo quando inclinados para a religiosidade, repetem litanias por tradição ou sentido de obrigação; os aflitos dividem-se entre as velhas e as novas igrejas, estas com rituais mais emancipados, mas continuando a falhar as promessas aos crentes. São poucos os que buscam – sabe-se que ainda menos os que encontram e realizam. Trancados na separação que trazemos no corpo, não queremos largar, embora, no fundo de nós, mesmo não lhe chamando Deus, algo se lembre e clame por aquele Amor que vi em Fátima, amor que salva e descansa.

É “isso” que procuramos sem saber, por vielas tortuosas e esconsas, crianças perdidas à espera que Ele nos reconheça e nos dê a graça do Seu olhar, contritas das nossas feições desfiguradas tanto tempo depois da Perfeição.

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Fotografias: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0