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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

23
Fev25

Roda do tempo

Sónia Quental

 

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Não foram apenas as distâncias que as tecnologias vieram encurtar, mas o tempo na visão mais lata da existência humana, dando a sensação de hoje se poder viver várias vidas na mesma encarnação, em que se reencontram as mesmas personagens incansáveis, cavalgando as portas giratórias do mundo virtual como se tudo fosse um “até já” sem consequências. Inventada a internet, temos ao nosso alcance uma versão moderna e democratizada dos registos akáshicos, que qualquer um pode manusear.

        Tenho muito a sina de me descobrirem os encantos postumamente, às vezes passados anos de uma relação que não vingou, como foi o exemplo do pobre diabo que me assaltou o pensamento uma destas madrugadas, dando razão à sabedoria popular que diz que o primeiro nunca se esquece.

          Ele queria jogar à bola; eu, como todas as meninas de 12 anos, achava que o primeiro era para casar. Ele demorou até aos 22 para considerar as opções e decidir que afinal também queria. E não era um querer pequeno, visto ter vasculhado a internet e percorrido centenas de quilómetros para me achar no buraco enregelado onde me exilei no ano de estágio, ao lado do cemitério, na borrasca do inverno. Ia para me levar ao cinema e para casar, com a bênção dos pais, confidentes de todas as horas. Numa casa partilhada por quatro almas penadas, o quarto era o único recanto onde havia privacidade e foi com horror que desviei o olhar quando a criatura teve o à-vontade de se deitar na minha cama, agarrada à almofada onde eu dormia. Entre os três – ele, eu e a fantasia que tinha de mim –, era eu que estava a mais. Estive quase para sair de fininho e deixá-lo entregue à consumação de núpcias, não fosse o medo de encontrar uma lembrança debaixo dos lençóis.

         Já lhes chamaram Highlanders, os imortais. E que nome bem escolhido, porque o corte tem de ser de espada e pelo pescoço, e mesmo depois de defuntos demoram a perceber que passaram para o lado de lá. Estranhamente, são sempre eles que tentam ensinar-me o valor do perdão, da tolerância e do amor incondicional que parecem viver, a acreditar na pregação que ouço quando tentam voltar a girar a porta e a entrar no quentinho de onde acham que nunca saíram. Por correio, por telefone ou em perseguição cerrada pelas vielas cibernéticas, a atividade tornou-se profissão e eu, que não sou de opiniões, venho aqui dar a opinião de que merece sindicato e troféu de tenacidade – desde que não lhes deem subsídio de transporte e lhes tirem o material de escritório.

         A quem faz gosto em aprender, os imortais ensinam muitas coisas, entre elas como passar pelo tempo incólume ou caminhar por ele às arrecuas, num palco giratório com figuras de cera, congeladas num momento fugaz, ali reencenado, num purgatório que não tem como acabar. Por mim, aprendi que quem não aproveita a dádiva do tempo para se entregar a um devir consciente e mudar de lugar a cada instante nunca sairá da roda, e nem é preciso dar-lhe corda, porque ela gira por si.

         Quando o cowboy desata a galope na direção do horizonte, eu, que também não sou de dar conselhos, aconselho quem fica para trás a certificar-se de que o vê desaparecer no além. O mais certo é perceber que se enganou e resolver dar meia-volta, não porque tenha sido fulminado pelo arrebatamento da paixão ou tomado por um arrependimento sincero, mas porque não gosta de deixar coisas inacabadas. A casa ainda não ardeu até ao fim.

 

Imagem: baralho Rider-Waite

 

30
Ago24

Poliamor

Sónia Quental

(…) ele foi capaz de transmitir o horror de um mundo no qual ‘todos pertencem a todos’, um mundo no qual ninguém poderia construir qualquer ligação profunda com ninguém. O alvo principal da distopia de Huxley era a ideia de boa vida como gratificação instantânea dos desejos sensoriais.

 

Theodore Dalrymple

 

 

          Chamou-me a atenção uma capa de revista na montra da papelaria, sugerindo, de forma interrogada, que o amor romântico terá acabado e que a monogamia se tornou obsoleta. Se está impresso na capa de uma revista, deve ser verdade e não há perigo de desinformação, por isso acreditei no diagnóstico.

          Sabia-se já que a desconstrução da identidade sexual preparava a desconstrução da monogamia, um conceito reduzido ao seu caráter histórico e social, num momento em que até a biologia perdeu o estado de graça. A culpa, já se sabe, é do patriarcado, e os modos de viver o amor não passam de correntes do obscurantismo que percorreu as sucessivas épocas, até chegarmos ao presente esclarecido em que temos a felicidade de viver, preparados para acabar com as repressões, derrubar estereótipos e proclamar a liberdade de vida, que gravita em torno da liberdade sexual.

         Da definição de limites rígidos passamos à fluidez gelatinosa da identidade de género e de relação, em que se vive fundamentalmente para coçar comichões. Como propõe Regina Navarro Lins, autora de Novas Formas de Amar, em que se baseia em parte o artigo de revista a que aludo à entrada, chegou a altura de arejar as nossas ideias a respeito de amor e sexo – ou de levar a cama para a varanda, imagem que dá o título a outra das suas obras e que ilustra bem as correntes de ar que ventila.

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          Se o amor romântico é mito ou ilusão, é ilusão que encontra finalidade no crescimento pessoal, que dificilmente acontece numa existência isolada. Uma ilusão que pode levar-nos ao encontro da verdade do amor ou à sua sublimação como verbo. Trocar essa ilusão a dois pelo regresso à selva amorosa é preferir uma miragem serpentina, que não só não vem resolver os dilemas com que as pessoas se confrontam dentro da monogamia, sintoma de um vazio íntimo que se propaga, como vem exacerbá-los, iniciando uma espiral que só tem um sentido: descendente.

          A normalização das relações "abertas" consagra-as ao capricho do momento. “Infelizmente, os caprichos de duas pessoas raras vezes coincidem”, sinaliza Theodore Dalrymple, em A Vida na Sarjeta, um título que nos atira da varanda para a valeta, mas que introduz, desde esse nível rasteiro, uma reflexão bem mais profunda sobre o abismo existencial, o tédio e a degradação moral que marcam o grito do Ipiranga sexual: o grito do bárbaro moderno.

          Evocando o significado simbólico de um dos meus contos de fadas preferidos, enquadrado no ciclo do animal-noivo (“A Bela e o Monstro”), Bela perdeu nesta revolução sexual o poder de revelar o príncipe no monstro, sendo agora o monstro que a absorve e transforma num ser à sua semelhança: bem-vinda ao bacanal fluido do poliamor.

 

Contudo, é evidente que se deve preferir sempre o difícil: tudo o que vive lá cabe. (…). Amar também é bom porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas preparações. É por isso que os seres muito novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, concentradas no coração que bate ansioso e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda imprecisos, inacabados, dependentes?) O amor é a ocasião única de amadurecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigência, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalharem a si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos darmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro, é preciso amealhar muito tempo, acumular um tesoiro.

R. M. Rilke

 

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

25
Abr24

Da marmelada e de outras compotas

Sónia Quental

           

Apesar de termos deixado de nos reduzir ao desempenho de papéis sociais, com a noção de felicidade pessoal e autorrealização ao leme da nau das liberdades individuais, o resultado não parece apontar para um aumento da saúde mental, da satisfação e da felicidade em si. E não, desta vez a culpa não é do governo.

A abundância de possibilidades e as facilidades materiais que nos foram abertas nem por isso trouxeram vidas e relacionamentos mais significativos. Pelo contrário, igualmente fartas são a desorientação e a impermanência, com as pessoas saltando de emprego em emprego, de casa em casa, de relacionamento em relacionamento, de diversão em diversão, despedaçando a sanidade já vacilante contra o relaxamento sedutor dos valores morais, que não cumpriu a promessa de lhes sossegar a alma.

Havendo ainda quem lucre com a propaganda, tudo indica estar condenado à extinção o mito obsoleto das “almas gémeas”, em todas as suas variantes criativas (soulmates, twin flames, ...), dividindo-se as alternativas entre uma visão cínica e amargurada do sexo oposto, e o investimento em parcerias funcionais, segundo a lógica objetificante do comércio. Quando se torna demasiadamente fácil o acesso a relações físicas, e o conceito de intimidade emocional baixa cada vez mais o preço, é tentador sonhar com o unicórnio que se diferencie, reabilitando o que parece já não ter defesa: a pureza, a confiança, a lealdade, a constância – impermeáveis à degradação reinante. É uma ânsia remota, que adquire os contornos esfumados da fantasia e soçobra contra os números dos divórcios e das famílias desfeitas, a normalização dos deslizes e das relações “abertas”, do sexo casual, das situações sem rótulo e sem compromisso, das permutas leves em ambientes de limites também eles esbatidos.

Como os produtos perecíveis e de consumo, as relações têm ciclos cada vez mais curtos, prazos de validade impiedosos. A fluidez insensível dos encontros e das salas de chat já não deixa que se pense em alguém como “especial”. Nesta impessoalidade sem contratos, estamos todos de passagem – no strings attached. Os finais escrevem-se em aberto, o destino pesa: deixá-lo fluir.

 

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Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

09
Mar24

Antiperfil

Sónia Quental

A primeira coisa que tens de saber é que não gosto de viajar (nem gosto nem deixo de gostar). Dificilmente me verás numa fotografia com uma paisagem exótica em fundo ou um copo de vinho na mão, nalgum evento de fim de semana que me realce o intelecto, como o louro realça os olhos de certas mulheres.

Já agora, a minha cor preferida é o azul. Deixo os outros campos por preencher, porque não gosto de me divertir nem de ir ao cinema. Tenho as noites livres. Não faço escalada, evito sair. Não finjo ocupação, exceto quando batem à porta, nem demoro a responder para criar mistério e intriga.

Não uso um estilo conversacional barra amigável, como mandam os visionários da língua. Escrevo formal, sem abreviar, com mais de uma sílaba quase sempre, sinais de pontuação que não a vírgula ou as reticências, e chego a fazer frases completas, que ocupam duas a três linhas. Não me peças para desenhar nem esperes que descomplique. Vou ignorar todos os “lol” que me atires e acabar com “P.S.” em catadupa, fingindo que ainda escrevemos cartas e que elas podem chegar ao fim.

Se procuras flexibilidade e leveza, desde já te digo que não somos compatíveis. Nem nas aulas de ioga consigo e não é por falta de querer. Dizem que o que é preciso é força de vontade, querer muito uma coisa e tudo se faz, mas até nisso pendo para o lado mais estreito da curva de Gauss.

Assertividade não é comigo, paixões e sonhos podes riscar da lista. Vou a caminho da tabula rasa: já não era alta quando nasci e fui mingando cada vez mais. Tenho o meu quê de impressionável e a história da Polegarzinha deixou marcas. É essa a meta que quero atingir: ser a mínima pessoa.

Não é que não beba socialmente: nem bebo nem socializo e se há coisa que não faço é conversa. Nunca me apanharam no clube dos Amigos do Amigo e preconceitos tenho muitos, graças a Deus. Faço julgamentos todos os dias, entre os abdominais e o pequeno-almoço, e o mais sexy que já me chamaram foi nerd.

Se leste até aqui, deves calcular o final: não me interessam aventuras. Sou tão séria que nunca saberás se estou bem ou maldisposta. A única coisa que prometo é deixar-te a adivinhar. 

 

P. S. O signo é Gémeos (não está aberto a debate).

 

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

14
Fev24

Quanto mais me bates

Sónia Quental

NOTA: Publiquei este texto em 2021 num blogue anterior. Republico-o aqui, após breve revisão, por conta da efeméride, com a recomendação de leitura do ensaio "Um amor de valentão" em A Vida na Sarjeta, de Theodore Dalrymple.

 

Só um amor frouxo é compatível com uma vivência pequena em que amar se torna um ato de modéstia.

 Montse Barderi

  

           

Ei-la com os olhos marejados, a coxa pisada, um relato aparatoso metendo polícia e a vergonha da credulidade com que acabara vítima de violência doméstica, depois de várias relações falhadas que a encheram de um temor que impunha distância. Entre a indignação e a dor, contava agora hesitante como durante o dia ainda lhe tinha ido comprar carne ao talho para deixar no apartamento que o pobre continuava a ocupar (o dela), porque não tinha onde ficar. Enquanto ela passava a noite no salão de cabeleireiro onde trabalhava, à espera de vaga na própria casa.

Pensei que fosse o fim da novela, que a vocação criminosa e as ações deletérias do indivíduo em causa fossem agora inquestionáveis até para quem se deslumbra com diamantes em bruto, que se afoita a lapidar. Um “amor” de mulher que se torna mãe, fazendo jus aos sacrifícios da incondicionalidade, que dá sem esperar pelo troco.

O ar de durona ferida com que narrava o seu epílogo e pedia segredo deu lugar, poucos dias depois, a publicações nas redes sociais em que se juntava ao coro de quem condena “julgamentos”, suplicando para o coitado empatia e amor. A dissonância cognitiva, assim preparada, instalou-se em pleno com a fotografia de Natal de uma família feliz em que o rosto do agressor ocupava, sorridente, o primeiro plano, desobrigando desde logo a minha consciência de silêncios prometidos e conivências para com quem assim traía a própria dignidade e me fazia também a mim sentir enganada. 

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O caso está longe de ser raro. Nem todas as formas de abuso são físicas, mas a variante psicológica é flagrantemente comum, tal como a cumplicidade que a vítima cede ao ofensor. Há um vínculo mórbido de lealdade que leva o objeto de abuso a encobrir e proteger o seu perpetrador, com quem se une contra quem quer que tente um apelo à razão.

Se o papel de “vítima” não tem género, falando desta vez de mulheres, estas são aquelas a quem Robin Norwood, na sua obra homónima, chama “mulheres que amam de mais”, cumprindo-me dizer que a descrição pertence ao foro da doença. Não se trata de pureza de sentimento, bondade nem abnegação sadia: o que nos faz correr atrás de quem nos maltrata ou faz do amor uma experiência de penitência, em que se é submetido a um jejum e privação constantes, é tudo menos amor.

Há cautelas a empregar quando se conclui pela inocência das “vítimas” que, numa relação parasítica e destrutiva, recebem também o seu alimento. Há uma gratificação subtil no papel do codependente, sofredor involuntário que não deixa de eternizar o próprio drama, mesmo correndo o risco de acabar em tragédia: o tango dança-se a dois. Não é que peça que lhe batam, mas é isso que se vê merecer e foi o hábito que criou - hábito não isento de provocações astutas. Até que a compulsão ganha vida própria e dá azo ao prazer masoquista da vida na iminência do perigo.

É preciso mais do que consciencializar e decidir para nos desenredarmos do ciclo do abuso: são muitas tomadas de decisão, um caminho de tentativa e erro em que se cai demasiadas vezes para o lado do erro, ao ponto de achar que na nossa história aquele é o único enredo. Os instintos ficam desregulados, vive-se no avesso das relações: fechamo-nos em copas para quem nos quer bem e damos alvarás a quem não tem esse bem em conta, com uma couraça que tenta esconder um coração estuprado, que escancara portas só para quem vem de assalto. A esse nos convencemos a entregar joias, contrato, domicílio permanente. No fim de contas, é a sensação familiar que nos moldou: quanto mais me bates, mais gosto de ti.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

30
Dez23

Anéis de rubi

Sónia Quental

 

Veio-me uma sensação desagradável à boca do estômago quando ouvi pela primeira vez o Rui Veloso avisar que Não se ama alguém que não ouve a mesma canção. A ligeireza desatenta da rima fez esgueirar a verdade como um tiro a que tentei escapar, em vão. E não havia formatação que apagasse a música do disco rígido da mente.

Era o corolário de experiências semidigeridas, augúrio funesto de escolhas desastradas – desastradas, não porque os astros as ditassem, mas por lhes ter trocado as voltas ignorando a voz da sabedoria, isto é, a voz do Rui Veloso, que trepou vezes suficientes ao superego para me soprar, com um prazer maldisfarçado: “Eu bem te disse”. Não desta maneira, mas com a poesia do Carlos Tê, que nem por isso acalmava o vexame.

Para mostrar que aprendi a lição, conto com contrição os anéis que empenhei para tentar que alguém ouvisse a mesma canção que eu. De que adianta desfalcar espólios em troca de companhia para o concerto? E que música se pode fazer entre instrumentos que não afinam entre si, por mais que se dê o Lá? As bandas sonoras não são um figurante sem rosto numa história de amor: são protagonistas, e é por isso que são convidadas para a boda, onde não se espera ouvir o Rui Veloso lamentar a saliva que gastou para mudar alguém nem os convidados a dançar uma salsa em linha demasiado gingada, quando era a valsa que se pedia.

Tudo subtraído, a despesa vai aumentando e há lições que não é preciso pagar mais de uma vez só para refrescar a memória. Não compensa penhorar bocados de nós pelo consolo fátuo da companhia ou de um amor contrafeito que só nos torna mais pobres – forçar harmonias entre notas que não pertencem à mesma escala. Melhor será desenvolver o ouvido para a música, poupar a saliva e guardar os anéis para quem goste de nos ver usá-los.

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

01
Nov23

Chegar onde não se sabe

Sónia Quental

Para chegar ao que não sabes, 

Deves ir por onde não sabes.

 

S. João da Cruz

 

 

Com o vigor crescente de áreas como a ciência de dados, que se propõe desenvolver métodos preditivos em que basear tomadas de decisão, os dados parecem encerrar a tão desejada resposta para o domínio definitivo sobre o desconhecido.

Saber organizá-los, analisá-los e interpretá-los para desocultar tendências, fazer previsões e exercer um controlo maior sobre os resultados é uma ambição multidisciplinar, em que a ciência goza da legitimidade que outros métodos de adivinhação, de origem ancestral, não tinham, encostados ao desdém da superstição. Os dados prometem elementos concretos e mensuráveis, que basta saber decifrar para traçar o mapa do comportamento humano e escalar a montanha cada vez mais benigna do sucesso.

Mas o primado da informação para o desenvolvimento de produtos e serviços tem-se transferido também, perigosamente, para a mentoria de vida e para o negócio rentável dos relacionamentos, em que a recolha de dados se presta à composição da fórmula da felicidade. Cada guru tem o seu método infalível para encontrar e atrair o par certo, vendendo programas dispendiosos a espectros que peregrinam de desilusão em desilusão, na febre desumanizante do dating moderno.

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Se os dados têm a sua validade, somando-se à experiência própria para a avaliação de possibilidades e as necessárias escolhas, cai-se na desmesura de reduzir a complexidade humana a modelos estatísticos e desfechos calculados, na tentativa de evitar o sofrimento que advenha do erro. Acabar com a incerteza, antecipar o futuro e receber garantias para jogar pelo seguro é o que se pretende ao eliminar as incógnitas da equação.

O amor, que apenas na História recente da nossa cultura passou a motivar as uniões matrimoniais, volta a passar para segundo plano face a considerações mais características de parcerias de negócios, em que os currículos dos candidatos se medem para aferir uma compatibilidade que se preveja funcional e lucrativa, com o mínimo risco e sem margem para falências.

A vertente transformadora e sacrificial do amor, no seu sentido fecundo, vai cedendo terreno à avidez de segurança. Não se busca expandir o Eu, pondo as relações ao serviço do desenvolvimento de consciência, mas deixá-lo onde está. Os famosos “desafios”, eufemismo dileto dos tempos que correm, são percalço a evitar na esfera relacional, em que não se procuram experiências engrandecedoras, porque o que se quer é não se ser perturbado.

Para isso, e para que a aposta seja ganha, há que controlar todas as variáveis, ignorar princípios da incerteza e a influência do observador, dando às probabilidades caráter de evidência. Como se o mistério não fizesse parte da vida e os “atos de Deus” não fossem mais do que alíneas sumidas num contrato que acautela calamidades.

Com a sua utilidade relativa, parece-me prudente moderar o entusiasmo com os dados, que a cada momento que passa se transformam em artefactos arqueológicos, lembrando que, se nem sempre se transformam em conhecimento, menos ainda em sabedoria ou clarividência. Cientes da nossa fundamental ignorância sobre as grandes questões da vida, não confiemos o destino à estatística. Reafirmando por outras palavras o que noutros passos tenho escrito: não se chega ao desconhecido por caminhos já batidos, por mais matemáticos que possam ser.

 

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In Lessons in Chemistry

 

19
Out23

(Im)permanecer

Sónia Quental

 

É-se item numerado num menu versátil, servido no drive-in ou em take-way, com talheres de plástico e molhos em pacote. Antigamente, havia nas casas louça boa, prenda de casamento, guardada só para ver e usar na Páscoa, quando o padre vinha benzer o antro. Agora, já não há louça fina e quase não vale a pena comprar talheres como deve ser. Os descartáveis servem – assim são as pessoas que passam, as companhias momentâneas que se entretém, num caleidoscópio em que o virtual e o real se confundem em cores de néon.

As histórias de vida viram roteiros reinventados de uma vez para a outra. Faz-se entrevistas e audições aos candidatos à permanência, mas, terminado o test drive, tudo não passa de mais uma experiência num catálogo de sensações, esquecidas após a ressaca do que impermanece, tempero leve para a solidão.

Sem compromisso.

Hoje, que a casa é minha, não recebo o padre nem espalho alecrim na rua para o ajudar a encontrar o caminho até à entrada. Não preciso de pôr a nota verde à vista debaixo da laranja no prato de porcelana azul, em que só os mandatários de Deus podem tocar. Outra coisa boa é que não tenho de beijar os pés de Cristo na cruz, diante de todos, nem de aceitar, agradecida, as amêndoas açucaradas e moles que o padre trazia no bolso. Dispensava-se de demorar e todos ficavam aliviados. Só vinha buscar a nota e espalhar “Aleluias” extintos.

Sem compromisso.

“Aleluia” é palavra que não se ouve na passarela de gente feita esquisso, serial daters em refeições indigestas de fast-food, procurando a receita infalível para o final feliz, num jiu-jítsu da mente em que a regra universal é não fazer drama e sorrir.

Companhia humana a um clique de distância. Tão perto, cada vez mais longe. Sempre, sem compromisso.

 

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Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

22
Ago23

Vigilantes

Sónia Quental

 

Beauty needs a witness.

Zan Perrion

 

O animus é uma cor primária na paleta da psique feminina. 

Clarissa Pinkola Estés

 

 

Noto, em retrospetiva, as figuras vigilantes que atravessaram a minha vida adulta, velando discretamente por mim. Não falo de anjos, mas de homens. Conheço alguns, que são ou foram amigos; outros frequentam apenas os mesmos espaços que eu, vigiando à distância, desconhecendo talvez que a mulher é sensível ao seu radar.

Invade-me um misto de sentimentos: de um lado, a comoção, contrastando com o desgosto do desabrigo que conheci pela mão de outras presenças masculinas, começando pela que me ensinou a correr antes de me mostrar como caminhar.

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Quando me fiz a esse caminho aos tropeços, com pernas maiores do que eu, houve sempre algum vigilante que ajudou a aplanar o piso ou pegou por momentos na minha bagagem, fosse dando-me boleias porque não tinha carro, cedendo o ombro escorreito da amizade, dividindo inquietações existenciais ou os passos da busca da transcendência. Com uma atitude protetora e uma lealdade inabalável, que, com o respeito pelos limites da vida íntima de cada um, me faziam preferir a sua companhia à das mulheres, eram geralmente mais calados e contidos, diziam a verdade e sabiam guardar segredos.

Descobri que eu era o segredo que precisava que guardassem, enquanto me ocupava de o conhecer. Precisava do seu desvelo à minha volta enquanto mergulhava no profundo – dos seus braços sólidos e capazes para me puxarem à superfície quando me esquecia de respirar. Precisei da sua estrutura para descobrir a sacralidade da beleza e dar-lhe a forma que lhe permitisse ser vista. Socorri-me dos seus olhos quando não me via, do seu valor para achar o meu.

No zelo pela minha integridade física, sei-os protetores da inocência que não quero perder, porque a perda seria também sua. Testemunhas e custódios do esplendor, são a retorta que a redenção procura, no seu estado líquido ou ígneo. Quem lhes conhece a força não vê a fragilidade estoica que ocultam. É em nós, mulheres, que a protegem, à custa dos corações tantas vezes dilacerados.

 

 

Recorte de fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0