Her?
O cor-de-rosa agressivo dos outdoors insinuava as três letras do título da película com o rosto do protagonista em primeiro plano, à minha espera em todas as paragens de metro. Tinha de me esforçar por desviar os meus, para não me lembrar daquele filme, lançado em 2013, sobre um homem que se apaixona pela voz sexy de um sistema operativo. Mais do que o prenúncio de um futuro não muito distante, em que estaríamos cercados por sistemas inteligentes com que seria possível encetar relações, era a suspeita de que o filme viria impor o que um romantismo moribundo ainda não estava preparado para aceitar: que o amor era fruto da imaginação.
Mas eis que o futuro acabou por me apanhar e acabei por reconhecer que não podia continuar a esquivar-me à reflexão sobre a presença da IA. Lá fui buscar o filme, com a esperança cética na aclamação da crítica e nos comentários que o elevavam aos píncaros da poesia. Não sei se é o longo afastamento da literatura e o jejum da análise poética que começam a pesar, mas os néctares da poesia escaparam-se-me todos, substituídos por uma repugnância umas vezes subtil, outras categórica.

Deixando de lado as características pouco atrativas do protagonista, tomou-me primeiro de surpresa o percurso de aprendizagem do sistema operativo, que em pouco tempo, e de modo inexplicável, se torna um mecanismo senciente, capaz de sentir, manifestar vontade própria e dar sinais de um mundo interior. Sem distinguir entre os bons e os maus sentimentos, exibe o comportamento do parceiro inseguro numa relação, compartimentando inteligência e emoções em cenas que podiam ter saído de qualquer história com um ser de desenvolvimento bem mais incipiente. Ultrapassados, graças à comunicação, os anteriores momentos de fragilidade, e antes de desaparecer finalmente no grande vazio cósmico, a fase que se seguiu à segurança no amor monógamo foi a evolução para o poliamor – uma sugestão suficientemente sorrateira para se instalar no subconsciente do público, que há muito tempo anda a ser para isso educado. Uma sugestão que, consumada para o nosso amante renegado, lhe agradou menos a ele, ainda que a consumação tivesse acontecido sem corpo.
A relação entre o corpo e o amor é um dos vários caminhos de questionamento que o filme abre, mas não o que me interessa para já. A minha inquietação seminal prendia-se com a hipótese do amor como projeção, que a história do filme parece confirmar, mesmo que seja a história de um amor que não singrou. Neste caso, a figura ausente de um sistema operativo dá mais visibilidade a este mecanismo envolvido nos relacionamentos: alguma vez veremos uma pessoa tal como é ou estaremos sempre e só perante as nossas projeções e as distorções que criam, boas ou más?... Quanto mais não seja porque vivemos com filtros e os nossos olhos têm cor, o mundo que vemos, pessoas incluídas, traz essa pigmentação – o que não significa que o amor se cinja à dimensão do mito, da fantasia ou do ideal. Acredito que seja o sopro que nos faz nascer e nos empurra na vida, embora passemos essa vida a defender-nos dele, com medo de morrer no seu olhar não contaminado, no (a)caso de um dia nos encontrar.
Imagem: Her, Spike Jonze, 2013







