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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

21
Jul24

Flechas na escuridão

Sónia Quental

 

Escutar é o oposto das abordagens algorítmicas.

Kate Murphy

 

         Decidi parar e ficar só a ouvir. Não o ouvir costumeiro, que aproveita os momentos em que as mãos se ocupam da lida da casa e das refeições ou me desloco na rua para introduzir os cursos e palestras e exercícios e podcasts, mas um ouvir de total disponibilidade, que me ocupasse inteira, sem olhar ao tempo. Que não me inquietasse com o desperdício de não fazer nada além de ouvir.

         Pensei então pela primeira vez nas vozes que me ajudaram a crescer em consciência, sem imagem a contornar o som que ecoava no escuro: vozes sem câmara, gravadas ao microfone, para um público invisível e desconhecido, vindas de uma solidão que tacteia outras na distância, algumas sem noção da influência que exerciam, quem sabe com os seus momentos de dúvida de que houvesse alguém a ouvir. Foi também para esse balanço que parei, para prestar tributo aos locutores que me fermentaram a maturação e que até aqui tenho deixado para trás nas reflexões, que contemplam mais os rastos da leitura do que da audição.

         As primeiras a encantar-me foram as vozes dos professores apaixonados pela sua área de saber, que transportavam em si a franja de segredo dessa paixão, com vestígios de um prazer excessivo e proibido, e o poder de despertar o interesse por disciplinas que pouco entusiasmavam por si - o poder de mudar destinos. Eram vozes que traziam o corpo agarrado, mas que ocupavam como som o primeiro plano, capazes de fascinar pelo contacto que deixavam adivinhar com uma dimensão não domesticada do saber, de que nem todos são porta-vozes autorizados.

         Depois dessas, na vida de casulo em sociedade ou num peregrinar interior que começou por necessidade e continuou pelo seu vórtice gravitacional, vieram as vozes explicitamente iniciadas no Mistério alimentar-me a alma esfaimada, que se prendeu a elas como ao único leme no horizonte. Durante anos, adormeci e movi-me em vigília ao som das centenas de palestras de Trigueirinho, que pareciam inesgotáveis, mas que um dia se extinguiram mesmo. Depois, vieram outros: Joel S. Goldsmith, Neil Kramer, Vernon Howard, Howdie Mickoski – cada um com o seu timbre, a sua modulação e tónica inconfundíveis. Não eram vozes que interrompessem o silêncio, mas que me levaram ao seu encontro e ensinaram a escutá-lo, a definir a minha própria voz, encontrar as próprias pernas.

         Flechas iluminadas é como as vejo, pontos singulares de sanidade quando o mundo em peso mostrou padecer do contrário e era perigoso o contrabalanço. Acima de tudo, mostraram-me que havia outros como eu, peregrinos do espírito, mesmo que à minha volta fosse só deserto e as raras miragens não convencessem. Às vezes, escrevia o que lhes ouvia, como estas palavras cruas de Neil Kramer, sobre aqueles com quem podemos falar de coisas significativas:

How few people we can turn to in life to share the deepest things within a meaningful way, in person, in our life, in a day by day or week by week basis. I tell you: most people have nobody, absolutely nobody.

 

         Reconhecendo também aqui a comunidade dispersa de peregrinos unida pelo fio de uma voz, deixo nesta pasta, a quem interessar, uma faixa da compilação Audio Cleaver, de Neil Kramer, com o título “The Wider Tribe” (em inglês). Ouve-se no escuro.

 

Num estudo realizado em 2018 e em que foram inquiridos vinte mil americanos, quase metade respondeu que não tinha interações sociais em pessoa com significado, como ter uma conversa extensa com um amigo, diariamente. Uma proporção semelhante afirmou que se sentia só e colocada de parte mesmo quando havia outros por perto. (…) As taxas de suicídio atuais atingiram o valor mais alto dos últimos trinta anos nos Estados Unidos, tendo subido 30% desde 1999. A esperança média de vida americana está agora em declínio devido ao suicídio, ao vício de opioides, ao alcoolismo e a outras doenças apelidadas de doenças de ansiedade e associadas à solidão.

            E isto não ocorre apenas nos Estados Unidos. A solidão é um fenómeno mundial. A Organização Mundial da Saúde relata que durante os últimos quarenta e cinco anos, as taxas de suicídio subiram 60% em termos globais.

Kate Murphy, in O que Perde quando não Está a Ouvir

 

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Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

11
Jul24

Olhar para o teto

Sónia Quental

 

Antes de existirem os ecrãs, olhávamos para o teto. Isto é, já tínhamos um protótipo de ecrã para estabelecer contacto à distância e dizer “Estou a olhar para o teto”. Nesses tempos, ainda não se falava de mindfulness, não sabíamos nada de meditação. O mais que podíamos fazer nas noites de insónia, além de olhar para o teto, era olhar para a lua ou tentar adivinhar que música ia passar na rádio, numa altura em que ainda não tínhamos sido expropriados dos poderes telepáticos, que funcionavam com uma eficácia acima da média – um indício de que talvez pudéssemos vergar o futuro, embora o presente fosse mais difícil de deslocar.

A ideia de uma tão grande tela em branco, como o teto ou o futuro, assustava o nosso despreparo, mas merecia ser contemplada, não fosse apanhar-nos de surpresa enquanto fazíamos de conta que a vida era sempre em frente e que bastava acertar num curso com saída para se apanhar a via rápida. Literatura, filosofia, teologia, artes não faziam parte da lista.

A nossa era uma terra pequena – nós habituados a caminhar carregando orbes debaixo do sol. Conhecíamos os caminhos difíceis, embora não tão difíceis quanto os das gerações anteriores, que faziam questão de nos lembrar os seus pés descalços na neve e o leite que vinha da ordenha quando eram magras as vacas. Ainda havia férias grandes, momentos parados em que a vida nos obrigava a pensar nela, a procurar palavras que captassem as nuances de uma angústia existencial em que alguns ficaram a morar para sempre: presos no teto, onde ainda flutuam.

Iniciados na poesia, era incompreensível a pressão e a expetativa de quem nos queria ver simplesmente funcionais na sociedade, sem destoar demasiado, a não ser pelo lustro ou um lugar de influência. O sustento assegurado. Tanto martelaram que houve quem encaixasse por fora, mas ficasse perdido por dentro, eterno Peter Pan que não encontra saída da Terra do Nunca.

Olhando hoje ao redor, com a escalada da violência e a fragilidade quebradiça da saúde mental, oferecem-se-me duas explicações: é de quem nunca olhou para o teto ou nunca saiu de lá, rodopiando à toa na Terra do Nunca, os olhos fechados em caixão de vidro. Um beijo que nunca chega de fora.

 

25
Abr24

Da marmelada e de outras compotas

Sónia Quental

           

Apesar de termos deixado de nos reduzir ao desempenho de papéis sociais, com a noção de felicidade pessoal e autorrealização ao leme da nau das liberdades individuais, o resultado não parece apontar para um aumento da saúde mental, da satisfação e da felicidade em si. E não, desta vez a culpa não é do governo.

A abundância de possibilidades e as facilidades materiais que nos foram abertas nem por isso trouxeram vidas e relacionamentos mais significativos. Pelo contrário, igualmente fartas são a desorientação e a impermanência, com as pessoas saltando de emprego em emprego, de casa em casa, de relacionamento em relacionamento, de diversão em diversão, despedaçando a sanidade já vacilante contra o relaxamento sedutor dos valores morais, que não cumpriu a promessa de lhes sossegar a alma.

Havendo ainda quem lucre com a propaganda, tudo indica estar condenado à extinção o mito obsoleto das “almas gémeas”, em todas as suas variantes criativas (soulmates, twin flames, ...), dividindo-se as alternativas entre uma visão cínica e amargurada do sexo oposto, e o investimento em parcerias funcionais, segundo a lógica objetificante do comércio. Quando se torna demasiadamente fácil o acesso a relações físicas, e o conceito de intimidade emocional baixa cada vez mais o preço, é tentador sonhar com o unicórnio que se diferencie, reabilitando o que parece já não ter defesa: a pureza, a confiança, a lealdade, a constância – impermeáveis à degradação reinante. É uma ânsia remota, que adquire os contornos esfumados da fantasia e soçobra contra os números dos divórcios e das famílias desfeitas, a normalização dos deslizes e das relações “abertas”, do sexo casual, das situações sem rótulo e sem compromisso, das permutas leves em ambientes de limites também eles esbatidos.

Como os produtos perecíveis e de consumo, as relações têm ciclos cada vez mais curtos, prazos de validade impiedosos. A fluidez insensível dos encontros e das salas de chat já não deixa que se pense em alguém como “especial”. Nesta impessoalidade sem contratos, estamos todos de passagem – no strings attached. Os finais escrevem-se em aberto, o destino pesa: deixá-lo fluir.

 

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Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

14
Dez23

Emplastros Anónimos

Sónia Quental

Às assombrações que pairam sobre estes blogues.

 

            

- Emplastros Anónimos. Em que posso ajudar?

- Boas. Olhe lá, ó moça, disseram-me que tinham aí uma teta que tirava cafés…

- Bom dia, Sr. Emplastro. Queria dizer “seio”, certamente. Temos uma máquina que serve leite orgânico, com um cheirinho a acompanhar. Pode escolher a tipologia do mamífero: trans, bi, cis, dis, mis, mu…

- Olhe, mas qual é o objetivo? É a pagar??

- A nossa organização é uma organização filantrópica, sem fins lucrativos...

- Fi… tró… quê??

- Quer dizer que não tem de pagar o leite nem o cheirinho. Aliás, o nosso objetivo é ajudar ao desmame de todos os Emplastros. Temos planos de expansão e em breve marcaremos presença nos países de terceiro mundo.

- Mame ou desmame… Desde que tenha o que interessa….

- Tenha calma, Sr. Emplastro. Não oferecemos cuidados paliativos: estamos aqui para curar dependências. Começamos pelo seio duplo (com ou sem pilosidade), depois passamos para o mono, o biberão, o leite em pó… É um longo percurso até chegar às papas e aos sólidos.

- E entregam canetas ou calendários?

- Temos todo o tipo de brindes e regalias para os sócios. Fazemos inclusive reciclagem do diploma de 1.º ciclo, com financiamento do Estado e estágio integrado para remover o estigma do analfabetismo e promover a reinserção na sociedade.

- E pagam subsídio?

- Pagamos o rendimento social, desde que tenha aproveitamento aos módulos. Depois de aprender a ler e a escrever, temos módulos mais avançados de hermenêutica, com introdução ao sentido de humor, à ironia, ao sarcasmo… Quem conseguir chegar ao 3.º ciclo recebe algumas luzes sobre subtileza e inteligência emocional.

- Mas qual é a utilidade?

- A utilidade é que passará a conseguir ler e interpretar um texto sem ter de pedir ajuda aos autores. Irá desenvolver a autonomia.

- E as casas de banho são mistas?...

- Temos o prazer de informar que subscrevemos integralmente os mandamentos da diversidade e da inclusão, que são o motivo primário da nossa existência. A nossa bandeira é a autodeterminação e a euforia. Somos um baluarte da saúde mental.

- Bal… quê?? O que tu queres sei eu...

- Peço desculpa, Sr. Emplastro, mas tenho outra chamada em linha. Se quiser tornar-se sócio, prima a tecla 1. A tecla 2 se tiver mais perguntas sobre a nossa missão. A tecla 3 para apoio psicológico à disforia do Emplastro…

 

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Fotografia: 2012 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

12
Dez23

Sósia

Sónia Quental

 

(…) the human race was swayed into believing a spiritual world that cannot be perceived or measured does not exist. This is arrogance in its highest form and a grave injustice to humanity.

Jerry Marzinsky

 

 

Não foi a primeira vez que vi a fotocópia de uma pessoa. O mesmo físico, até à singularidade mais minúscula, a mesma forma de vestir e de andar, o mesmo estilo de dança. O cheiro era uma das diferenças mínimas. O cheiro e a idade.

Fiquei-me a absorvê-lo (digo, a observá-lo), ciente agora de que afinal tenho um “tipo” que me atrai, a tentar processar a evocação confusa e dolorosa que aquela pessoa inspirava, sem o saber. Não podia ir ter com ele e dizer-lhe: “Olha, és a fotocópia de alguém que amei por engano. Deixa-me cheirar-te e cair em tentação”. Ninguém gosta de ser comparado. Ninguém gosta de sentir que é a reprodução de um protótipo, sem recheio original. Mas a verdade é que o que está fora não existe desligado do interior, talvez mesmo os atributos físicos aparentemente herdados, como o tipo de pele, de corpo.

Afigura-se-me, desde que comecei a trabalhar sobre o tema da inspiração, que não somos autores, mas barro, mais objetos do que sujeitos criativos, desconhecedores das forças que nos moldam. Somos menos indivíduos do que pensamos e até o livre-arbítrio é aparente.

Na reflexão que foi evoluindo e abrangendo a área da metafísica, encontrei abordagens concordantes. Uma das que me interessaram foi a de Jerry Marzinsky*, psicoterapeuta que trabalhou com uma população esquizofrénica em estabelecimentos prisionais e hospitais estatais norte-americanos e que, na esteira de Swendenborg e Wilson Dusen, propôs que a voz que ouvimos na nossa cabeça tem origem parasítica. A esquizofrenia paranoide seria uma manifestação extrema e considerada desviante de um fenómeno generalizado, em que o ato de pensar não é voluntário nem inteligente, sendo estimulado para gerar uma certa qualidade de energia emocional, que alimenta entidades externas a nós.

 

Swedenborg felt no thoughts are our own. He believed thoughts flowed into our minds from positive or negative entities outside of ourselves, and that we are the choosers of which thoughts we entertain, similar to tuning a radio to a particular station.

 Jerry Marzinsky

 

Penso muitas vezes, quando diante de indivíduos com opiniões fortes, se são eles que as têm ou elas a eles (a nós!). O orgulho com que defendemos posicionamentos, convicções e um modo de ser que acreditamos tão único quanto a nossa impressão digital pode estar seriamente equivocado. Um belo dia, cruzamo-nos com um sósia na rua e desinchamos. Podemos sempre dar uma gargalhada e convidá-lo para dançar.

 

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*In An Amazing Journey into the Psychotic Mind - Breaking the Spell of the Ivory Tower, escrito em colaboração com Sherry Swinney.

Site e canal do YouTube de Jerry Marzinsky: https://www.jerrymarzinsky.com/

https://www.youtube.com/@engineeringmentalsanity-je774/videos.

 

Fotografia: 2017 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0