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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

11
Abr24

"Slow motion"

Sónia Quental

 

E assim, não obstante a aceleração constante do ritmo de vida, arranjamos sempre maneira de nos deixar infiltrar pelas nossas lentidões.

 

Andrea Köhler 

           

           

Varro vertiginosamente o chão com os olhos desde que caminhar na rua se tornou prova de obstáculos, demarcada por dejetos caninos e escarros da mesma ordem. A atividade desportivo-contemplativa foi, porém, sacudida pelo choque quando comecei a deparar-me com caracóis que tentavam a sua travessia, disputando a mesma medalha. Mais do que a concorrência, afligiu-me aquela fragilidade afoita, sumamente esmagável, e a lentidão anacrónica dos moluscos, alheia ao acelerar dos tempos e às pressas urbanas.

Não esmagar caracóis foi mais um constrangimento que passou a fazer parte da prática diária, com os seus sulcos evocativos de espaços naturais ou ajardinados, que pelas artes do acaso me conduziram a uma palestra de Robert Moore sobre os arquétipos do Masculino. Nela, o psicanalista junguiano, coautor de King, Warrior, Magician, Loverreferia-se à importância de integrar o arquétipo do Amante no nosso dia a dia, de abandonar a vergonha e voltar ao jardim, num jogo de palavras entre o play e o display que descrevia o modo de estar nesse recinto à parte, fora do tempo e do espaço comuns, onde o entusiasmo é livre de se expressar na experiência do sensual, a que também chamou a redescoberta do corpo do amor. Também o masculino tem os seus oásis de êxtase onde bebe da beleza que o sacraliza.

Se o amor e a sensualidade não são coniventes com atrasos, também não concordam com a pressa nem com o tempo contado. Ainda que desfasada da imagem que de imediato associaríamos a este quadro, a presença dos caracóis em paisagem inóspita lembra o valor de nos deixarmos infiltrar pela lentidão e o jogo de prazer necessário que desafia o asfalto do tempo.

 

Poleiro (2).jpg

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

13
Jul23

"A menina dança?"

Sónia Quental

 

O body swayed to music, O brightening glance,

How can we know the dancer from the dance?

William Buttler Yeats

 

 

Alexandra Guinapo Photography.jpg

Nos dois últimos domingos, dancei com um menino no baile. Isto é, parecia um menino, mas tinha barba. Era baixinho, roliço, dançava bem, mas, mais do que a desenvoltura na pista, o que o distinguia era a atitude. O garbo e o modo sensual como dava corpo à dança, a relação aberta a que convidava o par, sem o acanhamento dos complexos que atrapalham, seja qual for a constituição física de cada um, deixavam uma impressão tremenda.

Qualquer que seja o estilo e o grau de proximidade física, a dança é um convite para um encontro, que muitas vezes só nos atrevemos a expressar quando antecipamos resposta positiva. É difícil encarar uma recusa para dançar como não sendo uma rejeição pessoal, manter a autoestima intacta e a iniciativa. Pelo mesmo motivo, não é fácil recusar a dança a alguém que tenha a temeridade de fazer o pedido, mas com quem não se gosta de dançar. Não faltam ainda equívocos, deslizes e oportunidades perdidas num baile, o que contribui para o melindre de se convidar uma pessoa que não se conhece e torna tentador procurar estratégias para disfarçar constrangimentos e atos falhados. Todas as ciladas do mundo social estão em maior evidência num salão de baile.

Por outro lado, nem todos estão de corpo inteiro no encontro que é a dança, mesmo quando ambas as partes consentem. Às tantas, está cada qual a dançar sozinho, em vez de com o par, e ao som de uma música que não é a que se ouve. Há quem dance sem olhar para a pessoa com quem dança e, quando os desacertos são muitos ou a sintonia falha, a vontade é de ficar ali só de corpo, rezando para escapar a acidentes, não ser demasiado transparente e resguardar a alma enquanto a música não acaba.

O cavalheiro com ar de menino diferenciou-se desde esse primeiro momento do código da dança: tinha pé ligeiro e inequívoco quando andava em busca de par. Não dava margem para dúvidas quanto ao convite que fazia nem a quem se destinava (a ambiguidade é outra escapatória útil quando há a possibilidade de uma abordagem correr mal). E aparecia ao encontro da dança.

Alexandra Guinapo Photography (2).jpg

Sempre me fez espécie o valor – quanto a mim exagerado – que costuma atribuir-se à autoconfiança, em parte pelas dúvidas existenciais que sempre me assaltaram. Por saber também que um ignorante autoconfiante não deixa de ser ignorante, e a autoconfiança só lhe agrava o defeito, o mesmo se podendo dizer de alguém que não dança bem, mas está convencido de que sim. Esse será talvez tema para outro texto. O que quero neste dizer é que o “menino” com quem dancei me mostrou o efeito que a autoconfiança pode ter quando bem administrada e acompanhada de qualidades que a autenticam, em vez de um vácuo inflado. Sabia o que fazia, gostava de dançar e deixava-se transportar com admirável deleite. Não hesitava em liderar, no papel que lhe cabia, nem descurava a atenção e a delicadeza para com o par.

Pudera eu ser assim, que não sei brincar da mesma forma espontânea com o corpo e abri-lo à dança no gozo desse brinde a dois. A introversão não é um adereço que ajude ao ato e muitas vezes gostava de poder deixá-la à entrada, com a carteira e os sapatos de usar na rua. Não dá para se dançar encolhido nem com o cabelo à frente da cara, e a mera reprodução de passos aprendidos dificilmente conduz ao arrebatamento da dança, às dádivas que reserva a quem se entrega inteiro de corpo, sem medo de se expor. De alguma forma, a dança sexy e desinibida do menino-cavalheiro transmitiu-se-me, colando-me uma das muitas notas de comoção e maravilha que o forró me tem deixado desde que aprendi a dançar.

Uma delas, que sabe especialmente bem ouvir nos dias que correm, é a cortesia de outro século com que perguntam: “A menina dança?”. E o enlace do abraço que se segue.

Forró (3).jpg

 

Fotografias: © Alexandra Guinapo e © Francisco Amaral (2017)

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0