O body swayed to music, O brightening glance,
How can we know the dancer from the dance?
William Buttler Yeats
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Nos dois últimos domingos, dancei com um menino no baile. Isto é, parecia um menino, mas tinha barba. Era baixinho, roliço, dançava bem, mas, mais do que a desenvoltura na pista, o que o distinguia era a atitude. O garbo e o modo sensual como dava corpo à dança, a relação aberta a que convidava o par, sem o acanhamento dos complexos que atrapalham, seja qual for a constituição física de cada um, deixavam uma impressão tremenda.
Qualquer que seja o estilo e o grau de proximidade física, a dança é um convite para um encontro, que muitas vezes só nos atrevemos a expressar quando antecipamos resposta positiva. É difícil encarar uma recusa para dançar como não sendo uma rejeição pessoal, manter a autoestima intacta e a iniciativa. Pelo mesmo motivo, não é fácil recusar a dança a alguém que tenha a temeridade de fazer o pedido, mas com quem não se gosta de dançar. Não faltam ainda equívocos, deslizes e oportunidades perdidas num baile, o que contribui para o melindre de se convidar uma pessoa que não se conhece e torna tentador procurar estratégias para disfarçar constrangimentos e atos falhados. Todas as ciladas do mundo social estão em maior evidência num salão de baile.
Por outro lado, nem todos estão de corpo inteiro no encontro que é a dança, mesmo quando ambas as partes consentem. Às tantas, está cada qual a dançar sozinho, em vez de com o par, e ao som de uma música que não é a que se ouve. Há quem dance sem olhar para a pessoa com quem dança e, quando os desacertos são muitos ou a sintonia falha, a vontade é de ficar ali só de corpo, rezando para escapar a acidentes, não ser demasiado transparente e resguardar a alma enquanto a música não acaba.
O cavalheiro com ar de menino diferenciou-se desde esse primeiro momento do código da dança: tinha pé ligeiro e inequívoco quando andava em busca de par. Não dava margem para dúvidas quanto ao convite que fazia nem a quem se destinava (a ambiguidade é outra escapatória útil quando há a possibilidade de uma abordagem correr mal). E aparecia ao encontro da dança.
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Sempre me fez espécie o valor – quanto a mim exagerado – que costuma atribuir-se à autoconfiança, em parte pelas dúvidas existenciais que sempre me assaltaram. Por saber também que um ignorante autoconfiante não deixa de ser ignorante, e a autoconfiança só lhe agrava o defeito, o mesmo se podendo dizer de alguém que não dança bem, mas está convencido de que sim. Esse será talvez tema para outro texto. O que quero neste dizer é que o “menino” com quem dancei me mostrou o efeito que a autoconfiança pode ter quando bem administrada e acompanhada de qualidades que a autenticam, em vez de um vácuo inflado. Sabia o que fazia, gostava de dançar e deixava-se transportar com admirável deleite. Não hesitava em liderar, no papel que lhe cabia, nem descurava a atenção e a delicadeza para com o par.
Pudera eu ser assim, que não sei brincar da mesma forma espontânea com o corpo e abri-lo à dança no gozo desse brinde a dois. A introversão não é um adereço que ajude ao ato e muitas vezes gostava de poder deixá-la à entrada, com a carteira e os sapatos de usar na rua. Não dá para se dançar encolhido nem com o cabelo à frente da cara, e a mera reprodução de passos aprendidos dificilmente conduz ao arrebatamento da dança, às dádivas que reserva a quem se entrega inteiro de corpo, sem medo de se expor. De alguma forma, a dança sexy e desinibida do menino-cavalheiro transmitiu-se-me, colando-me uma das muitas notas de comoção e maravilha que o forró me tem deixado desde que aprendi a dançar.
Uma delas, que sabe especialmente bem ouvir nos dias que correm, é a cortesia de outro século com que perguntam: “A menina dança?”. E o enlace do abraço que se segue.
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Fotografias: © Alexandra Guinapo e © Francisco Amaral (2017)