Bonecos
Sinto-me tremer até à unha quando tecem louvores à simpatia de alguém. Entre o falo ou não falo, resisto ao papel de educar gente graúda até que, com os óculos invisíveis na ponta do nariz, um peso bem real, murmuro a contragosto: “Simpatia não é virtude. Não falta charme aos psicopatas”.
Não ouvem. Admiro a habilidade que temos em ver o que queremos, ouvir o que interessa e pôr o resto em mute enquanto treinamos o assobio em mi maior. Quanta ginástica não se pratica para manter uma praia de ficções intacta, sem perda de um grão de areia. Pedem-me a pá de plástico e o ancinho. Fico-me estátua a apreciar os gestos alucinados de construção com que uma criatura adulta cava um chão impercetível, no sítio da areia molhada a imitar a solidez. Não gosto de brincar ao faz de conta, mas também não quero ser a desmancha-prazeres que dá má nota ao esforço, mesmo que o mérito seja nulo.
Houve vezes em que tentei fazer de conta, quando a idade era própria e tinha bonecas (poucas), roupa à medida e um fogão em miniatura. A imaginação regalava-se com os “bons dias”, “se faz favor” e “obrigada” que dizia com sapatos de senhora, mesmo que fosse a boneca a calçá-los. Ser grande era poder ir a uma loja fazer compras de salto alto.
Desde que o sou, pasmo com a confusão oblíqua de todos os que reduzem a educação e respeito àquele “bom dia” sacramental que ofende quando não vem. Gente em modo boneco, que fala para se ouvir falar e que regista no bloco de notas do telemóvel quantos agradecimentos lhe devem e todas as vezes que fulano ou sicrano falhou o “se faz favor”. O inchaço lento do peito pelos despeitos acumulados derrete rápido com um gesto de simpatia, sem olhar à conveniência ou à proveniência. Quanto ressentimento rijo se dissolve com um “bom dia” distraído!