O novo galo de Barcelos
Nota: A saga doméstica das baratas terminou por cá há quase um ano, depois de os responsáveis pela infestação terem abandonado o edifício, mas lá fora parece iminente. Depois de ter começado há alguns meses a ver baratas mortas nas ruas de diferentes zonas do Porto, encontrei hoje a notícia de que os autocarros de Londres estão infestados delas.
Não me parece que seja coincidência nem que o tema seja irrisório, mesmo para quem ainda não tenha tido a visita destes bichinhos crocantes. É assim que, depois de ter abandonado a sátira neles inspirada, trago da “gaveta” um texto interrompido que retoma o agravo. Agora, que a UE se mostra cada vez mais empenhada em punir o "discurso de ódio" e que a China se tornou uma das visitantes diárias deste blogue, prefiro não estabelecer nexos causais. Eles estão à vista e exalam odor.
O novo galo de Barcelos
As baratas multiplicavam-se, graças a Deus, sem que Ele mandasse, marchando sobre o país de alto a baixo e de novo até cá acima. Com o êxito das primeiras experiências gastronómicas, Maria Benedita tinha lançado um canal de teleculinária, com página no Instagram e uma legião crescente de seguidores, todos ansiosos por experimentar a nova dieta recomendada pela UE.
A matéria-prima era barata no duplo sentido da palavra e já tinha o hábito de se aninhar nos frigoríficos, poupando esforços de armazenamento. Com um sentido de oportunidade também ele providencial, a rede da Tuder Eats tinha começado a distribuir os ovinhos de inseto à refeição, por isso a população em peso já fazia criação em casa – a cavalo dado, não se olha o dente. Maria Benedita, uma babyboomer com veia empreendedora, não perdeu tempo a propor uma colaboração, oferecendo um livrinho de receitas com novos insetos a acompanhar as entregas. Mas o tempero do sucesso não lhe bastava: mais do que cozinheira, considerava-se criadora de tendências, uma visionária que queria fazer o país recuperar do atraso cultural.
Sensível aos ventos que sopravam, Maria Benedita queria despedir o galo de Barcelos e adotar a barata como símbolo nacional, mais democrático e inclusivo – isto é, menos patriarcal. A cozinha parecia-lhe a ela que era ainda domínio da matriarca, e a barata era rainha. Mais do que renovar os ícones, era preciso reescrever o próprio hino, rasurar os arcaísmos do seu halo falocêntrico, substituindo-os por termos modernos, progressistas, no curto prazo em que hinos e bandeiras ainda perdurassem. Além de cozinhar, Maria Benedita agora escrevia, como todos os famosos, e não era só receitas. Quando lhe chamavam “poeta”, não corrigia para “poetisa”, declamando timidamente a versão revista do canto pátrio que ia propor ao Parlamento:
Filhos do mar, gentil povo,
Gente pacata, fenomenal,
Vacinai hoje de novo
O rabinho de Portugal!
Entre as brumas da memória,
Ó maiorais, ouve-se a voz
Dos que traíram os avós
Trocando as voltas da História!
Às baratas, às baratas!
Para o planeta salvar
Às baratas, às baratas!
Pelo ambiente bradar
Contra as nações,
marchar, marchar!





