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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

11
Abr25

Dicionário de olhares

Sónia Quental

         Um dos momentos mais desconfortáveis por que já passei foram os dez minutos inteiros em que fui invisível. Estava no quarto do apartamento onde morava uma amiga, com um colega dela de faculdade, enquanto ela estendia roupa na varanda. Os móveis eram menos transparentes do que eu, um corpo de que o olhar do rapaz se conseguiu desviar com tamanha habilidade que me fez duvidar da minha existência ou de que estivesse ciente da minha presença, apesar do espaço exíguo que ocupávamos e de estarmos ambos a falar com a mesma pessoa.

         Estender um olhar a alguém é um primeiro sinal de reconhecimento: a constatação de que essa pessoa existe, não apenas num espaço físico, mas no mapa de um outro – um mapa que nos põe em relação. Claro que muitas vezes não se quer que essa relação ultrapasse o nível da impessoalidade e por isso há momentos em que o olhar se resguarda e evita cruzar-se com o dos outros para segurar a distância. Há olhares que não se dão porque se quer traçar um limite; há-os que se escusam para castigar – afinal, não há castigo maior do que apagar os contornos de uma presença. Mas também há aqueles que não se erguem por pura vergonha. Cobrem-se de pálpebras, não por não quererem reconhecer os demais, mas pelo medo de ultrapassarem o limiar do invisível e serem apanhados. A isso leva o sentimento de inferioridade da pessoa que torna os outros ausentes para se negar primeiro a si.

         Quando olhamos alguém nos olhos, estamos a erguer a face e a dar-nos a um olhar, o que não se faz com qualquer um. É por isso que a maioria esconde o olhar atrás de véus, num posicionamento feito dos fingimentos que o trato social normalizou. Olha, mas não vê nem se dá a ver. Já manter no olhar a essência e dirigi-lo a alguém, mais do que durante um instante fugaz, é aceitar ser-se desnudado. Esse é o olhar que é, não o que se limita a mapear o território ou a criar opacidades. É também o olhar que encontra.

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Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

28
Mar25

A revolta do galinheiro

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-03-28 103902.pngAinda me lembro do tempo em que a doença mental era estigmatizada e escondida dos olhos do público – um tempo distante do de hoje, em que a debilidade psicológica procura argumentos para se justificar, explora a vitimização em benefício próprio e recruta seguidores.

O interesse pelo desenvolvimento pessoal, pelos temas do feminino e do masculino e dos relacionamentos em geral trouxeram à minha atenção há alguns anos grupos como os dos MGTOW (Men Going Their Own Way), que fui acompanhando muito à distância e de olhos semicerrados, não fossem entrar salpicos de lama daquela chafurdice intelectual e moral, impermeável a qualquer tentativa de diálogo coerente.

         As referências repetidas à red pill e à black pill traduzem desde logo uma ignorância de base: os celibatários deviam saber que a pílula não lhes serve de nada e que o abuso de estupefacientes não dá bom nome à causa. Fui ler pela primeira vez os 12 passos dos Narcóticos e Alcoólicos Anónimos, que já tinha visto referidos de forma lisonjeira em obras de cunho espiritual e fiquei tão agradavelmente surpreendida que me atrevo a dizer que está ali a cura. O primeiro passo consiste em reconhecer a impotência face ao vício e a perda de controlo sobre a própria vida – a perda da razão, acrescento. O segundo, em reconhecer que existe um poder superior que pode devolver-lhes a sanidade – não há casos perdidos. O quarto, que recomendaria como requisito preliminar, corresponde ao inventário moral minucioso de si mesmo – isto é, ao assumir da responsabilidade contrário à vitimização masoquista com que estas seitas se masturbam publicamente.

         Mesmo entre influencers que não usam o rótulo “MGTOW” ou “Incel”, as perturbações de personalidade são evidentes. O ambiente de apoteose da adolescência começa logo pela legião de seguidores acéfalos, suspensos das lives e da sabedoria trémula de homens que recusam não só tornarem-se homens, mas tornarem-se adultos – que não andam à procura de mulher, mas de mãe; que à frente das câmaras enchem o peito de ar, mas na vida privada andam encolhidos e se oferecem para ser o capacho dos outros, acusando depois quem lhes passa por cima. É como se o galinheiro tivesse decidido revoltar-se contra as leis da selva e quisesse ser tratado como leão só porque acha ter direito à igualdade de cidadania. Senão amua ou pega numa metralhadora.

          Aposto que os Incel foram espezinhados na corrida ao chocolate do Dubai, sem dúvida por uma manada de mulheres. Sem saia onde se esconderem, porque elas agora usam calças, ficaram a chuchar no dedo. E que bem lhes faz.

 

Imagem: O Sono da Razão Produz Monstros, Francisco de Goya

 

14
Mar25

O Oráculo

Sónia Quental

          Tantas vezes tenho encontrado recomendações relacionadas com o conceito moderno de “autocuidado” – um conjunto de práticas que parecem girar em torno dos banhos de imersão, dos cuidados com a saúde, a alimentação e o sono – que achei que tinha de voltar ao primeiro filme do Matrix. Não me perguntem porquê, mas algo me disse que precisava de revisitar a cena em que Neo se encontra com o Oráculo, que mora num prédio vandalizado, guardado por um cego, num apartamento cinzento, com uma porta igual à de tantos outros. Só me lembrava de que recebia as pessoas na cozinha, enquanto fazia biscoitos, e tinha a sensação de que não seria dada a estadias prolongadas na banheira, embora se movesse devagar – ou antes, de forma deliberada.

         A recapitulação da cena mostrou-me uma mulher de meia-idade que, além de cozinhar biscoitos, fumava, apontando para um letreiro acima da porta onde se lia a célebre frase de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Uma mulher radiosa, sábia, que não transmitia qualquer imagem de falta de amor-próprio, não parecia incomodada com o consumo de tabaco e açúcar nem sofrer de fadigas por servir primeiro os outros. (Acrescento de passagem que também não a imagino a engrossar os quadríceps e a transformar o corpo no de um homem, baseando nisso uma noção enganosa de autoestima que dividisse com o mundo no Instagram.)

         É nisto que se enganam os profissionais de saúde e a trupe entusiasta do desenvolvimento pessoal, ao confundirem os cuidados pessoais com a busca da saúde física e mental, quando não com a busca do prazer. Mesmo aqueles que reconhecem a importância da meditação, da dimensão espiritual ou das práticas sagradas fazem-no a título decorativo, tratando o sagrado como mais um hábito a incorporar num regime que se destina a reduzir o stresse e a ansiedade e a melhorar a “qualidade de vida” – uma expressão que ainda hoje não sei o que significa. Como se não fosse mais do que um utensílio a guardar no nécéssaire e a introduzir na higiene diária para a restauração pessoal, posto que não gere grandes perturbações – um pouco à semelhança dos romances policiais que alguns gostam de ler na praia, que entretêm e estimulam a mente até certo ponto, sem trazer inquietações metafísicas profundas.

         Segundo os preceitos modernos, o Oráculo do Matrix não parece praticar o autocuidado, nem sob a forma mais sofisticada do mindfulness, mas não vejo nada que lhe falte, antes parecendo sobrar. Talvez porque, com toda a sua singularidade, se tenha tornado aquilo que alguns preferem manter à distância de uma prática, tendo deixado de se distinguir dos outros e do que os transcende. Talvez porque seja uma mulher que se conhece e, tal como todos os que percorrem o caminho do autoconhecimento, não tenha medo de se deixar perturbar. Duvido que faça os biscoitos de receita na mão.

 

 

05
Mar25

A era das distrações

Sónia Quental

 

        Já não faz falta o entretenimento para nos entreter. Depois de durante muito tempo ter tentado arrumar as coisas práticas da vida num frasco hermético, com etiqueta e prateleira própria, elas teimam em sobejar e em pedir-me cuidados. Prefiro chamar-lhes “males necessários”. Sem que tenha o tempo absorvido por crianças ou família, sem que tenha de pôr combustível no carro ou de perder horas no trânsito, por mais que tente criar espaços dedicados ao significado, ele dispersa-se, ante o assédio contínuo das distrações.

         Numa era em que a vida devia ter-se tornado mais fácil, sendo essa a promessa da miríade de bens de consumo, tudo parece conspirar para nos desviar de qualquer centro. Pondo de parte o trabalho, ele é inspeções, manutenções, reparações, reabilitações, intervenções de todo o tipo, seguros, impostos, faturas, reuniões de condomínio, processos legais, compras, tarefas domésticas e agora todos os ferrolhos a que as ameaças de cibersegurança obrigam, fechando já os olhos ao mundo sinistro que nos cresce à volta. Não é preciso sequer ver TV. É um sem-fim de assaltos, obrigações e ninharias cujo fito único, quando não é o de roubar ou espoliar, parece ser o de cansar e distrair, não deixar espaço para nada que ainda tenha substância – não deixar, aliás, espaço algum que nos pertença. E, se de dia nos tentam atordoar e pôr a dormir, de noite a estratégia parece ser a privação do sono, quando não pelas preocupações com que insistem em bombardear-nos, pela magra tentativa que alguém possa fazer de abrir um hiato e olhar para dentro.

         Manter um mundo fictício dá trabalho e, quanto mais fictício ele se torna, maior o esforço e o sentimento de alienação. O tempo que sobra das distrações é empregado a tentar separar o que é fake do que não é, uma tarefa tão vã quanto a de arrumar os males necessários no jarro de vidro e esperar que eles se conformem com o downgrade de uma subscrição compulsiva, que acusa os efeitos da inflação de ano para ano. De consumidores, passámos a consumidos, a matéria-prima que engorda a máquina, estações de serviço abertas 24 horas por dia, porque permanentemente contactáveis ou localizáveis. O fim das fronteiras é oficial: fronteiras de espaço, tempo, privacidade, contribuindo tudo para a confusão da identidade. Primeiro distraídos, depois invadidos e por fim diluídos. Chegaremos então ao nada existencial.

 

Poleiro.jpg

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

10
Fev25

O agasalho

Sónia Quental

 

There is no one so depraved that he does not respond to Beauty in some form of expression. 

Marie S. Watts

 

 

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Tendo escapado incólume às pestilências da década, quando me dei conta da alhada em que estava metida, na semana passada, a doença foi imediata, sem dar tempo de me recompor psicologicamente para a travar. Passei o dia a tremer de frio e, se trago o assunto de novo à baila, é para fazer a ponte com a manhã seguinte, em que antes das 7 h, na padaria, uma das freguesas habituais me fez uma emboscada à porta para me pedir os meus casacos, para resumir de um modo grosseiro. Que os tinha muito bonitos e me lembrasse dela quando quisesse dar algum.

         Quando a vida me acena com o seu sentido humor insuperável, percebo que está tudo bem: a deserção do sentido de humor é o primeiro passo para a ruína da alma. O desdém dedicado à beleza, o segundo. Ou talvez seja ao contrário.

        Já fui abordada em público por muitos olhos vazios a pedirem moedinhas, sopa, café e cigarros (!), mas esta foi a primeira vez que me pediram casacos, e não com o pretexto do frio, antes da beleza. A maioria das pessoas não incluiria este item imaterial no seu estojo de bens essenciais, sendo visível que aquela que me pediu os casacos teria argumentos materiais mais convincentes.

          Pode alegar-se a vaidade, e não nego que o defeito me toque a mim, mas há outras subtilezas a considerar. A beleza, natural ou construída, tem um poder de transfiguração silencioso que, sentido nos seus efeitos vaporosos, mas penetrantes, nem sempre se conhece de onde vem. Apela a quem sente uma certa ânsia de redenção, ainda que não saiba que anda em busca dela. Deixar-nos tocar pela beleza, querer fazer parte dela é a primeira licença que se dá ao abraço curativo do amor, o primeiro suspiro de reconciliação com a vida.

         Não disse à senhora que um casaco não faz milagres. Hoje vi-a na padaria orgulhosamente sentada com um casaquinho de pelo cor de rubi, por isso acho que faz.

 

Imagem: baralho The Solar Kingdom

06
Fev25

Confiar ou não confiar

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-02-06 121224.png

Este é daqueles textos que começo a escrever sem título e sem saber como vai acabar. Daqueles que não se aconselham, escritos sob o efeito da emoção e que pertencem à categoria do “desabafo”, que nem sempre me é simpática. Embora quem escreve se submeta a um certo grau de exposição, não tenho os blogues como diários pessoais, em que o autor possa e deva abrir o peito para o mundo e despejar neles toda a espécie de confissões, sob o pretexto do ultraje ou de uma alegada vulnerabilidade, que na maior parte das vezes não passa de emocionalismo fácil. Se há coisa que a internet nos trouxe, foi exposição a mais. Este será, pois, um caso sem exemplo, a que cedo não só para me aliviar de pesos, mas esperando que a reflexão possa servir a alguém mais.

          O advento da internet trouxe, como é sabido, muitas oportunidades de fraude, que, à medida que a tecnologia evolui, se vão tornando também mais sofisticadas. Quem utiliza a rede numa base diária, não só para fins pessoais, mas para trabalhar, expõe-se crescentemente a elas. Por mais informado que esteja em matéria de cibersegurança, ainda há uma possibilidade considerável de ser apanhado numa, devido aos riscos inerentes à comunicação com desconhecidos à distância.

        No trabalho remoto e pontual, em que não conhecemos pessoalmente o empregador ou cliente e não falta oferta de mão de obra, é fácil ser-se descartado: afinal, não passamos de um nome no ecrã, quando muito associado a uma fotografia, que ninguém pode garantir que seja verdadeira, e não há nada que obrigue o cliente além de um contrato precário. Temos nome, mas somos anónimos. É por isso que sinto a maior consideração e estima por aqueles clientes que, ao longo dos anos e mesmo enfrentando adversidades, continuam a voltar, expressando uma lealdade a que nada os obrigava. Num mundo digital onde não há laços duradouros, é extremamente comovedor receber uma mensagem cuidada de Ano Novo, com um bónus, de alguém que escolhe trabalhar comigo há 7 anos e que sei que muitas vezes tem de dispensar pessoas, por falta de qualidade no desempenho – alguém de quem não conheço mais do que a voz. Outros há de quem não conheço a voz nem a fotografia, mas que também voltam, personificando uma humanidade e integridade que se torna tentador pôr em causa com as armadilhas que vão aparecendo por todo o lado, como aquela em que caí esta semana, com prejuízo financeiro para mim.

         Podia fazer como o meu vizinho e passar a dar 20 voltas à chave de cada vez que entro ou saio de casa – a casa física e as outras. Mas, mesmo sabendo que o risco existe, também sei que não posso eliminá-lo por completo, sobretudo se quero receber as suas recompensas. No mundo do trabalho, não é só o trabalhador remoto que corre riscos, mas também os clientes, já que as fraudes existem de ambos os lados e nem sempre alguém que não fala a mesma língua que nós tem condições para avaliar a qualidade do nosso trabalho. É por isso que fico contente quando recebo e me mostro à altura de um voto de confiança. Sinto-me comovida e emocionada quando encontro pessoas que confiam e que não erguem entre nós muros de suspeitas, fazendo-me sentir culpada por crimes que não cometi.

         Hoje, escrevo e choro ao mesmo tempo. Mas amanhã levanto-me outra vez às 6. É o que faz uma mulher.

 

Imagem: baralho Rider-Waite

04
Fev25

Uma Aventura... no Supermercado

Sónia Quental

Parede castanha (Afurada) (3).jpg

Ir ao supermercado é daquelas coisas que se faz porque tem de ser. Quem, como eu, abomina as multidões, procura as horas de pouco movimento, o que o trabalho ainda me permite fazer. Como em qualquer viagem que não seja sem destino e sem pressões, também estas são planeadas: tendo em mente aquilo de que preciso, programo ir do ponto A ao ponto B, num tempo que consigo calcular aproximadamente, evadindo-me pelas caixas de autoatendimento.

         Tratando-se de uma tarefa necessária e não de uma visita turística, gosto que seja rotineira, de poder contar que um certo produto esteja numa certa prateleira, para poder despachar o assunto e vir embora. Ou que não seja despachado: também posso fazê-lo nas calmas. É um dos motivos por que gosto de ir a sítios habituais: sei onde as coisas estão. Ou sabia. Ignoro se é um estratagema arquitetado pelos hipermercados para desorientar os clientes ou se sou mesmo eu que sou dada às teorias da conspiração, mas todas as semanas mudam os produtos de lugar, e nem sequer é para um lugar próximo e nem sempre para um local óbvio. É assim que aquilo que poderia ser uma visita de médico facilmente se transforma numa peregrinação lacrimosa por corredores que não têm fim, em que a calma já lá vai.

         Pode parecer um aborrecimento insignificante, e realmente é, em face das calamidades que assolam o planeta ou de questões pessoais de maior gravidade. No entanto, são as pequenas coisas num mundo em mudança acelerada e incerteza crescente que nos dão ou tiram a estabilidade e um certo conforto psicológico. Quando, entre as questões prementes da sobrevivência, a cabeça e o espírito aproveitam estes momentos triviais para se ocuparem do sentido da existência, a última coisa que quero é ter de andar à caça das bananas, atropelada por carrinhos de compras, bebés e paletes.

         Isto vindo de alguém que também não vai ao supermercado para conhecer potenciais parceiros, como vi noticiado há alguns meses. Se já é difícil encontrar a fruta, já para não dizer escolhê-la, imagino o que seria ter de decorar todo o código de sinais dos esquemas de acasalamento modernos e ir sondar corredores dúbios, sem posição fixa, com um ananás virado ao contrário. E isto antes de chegar aos preliminares.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

31
Jan25

Made in China

Sónia Quental

Feita a encomenda numa das maiores lojas de comércio eletrónico, chegou a surpresa: o produto vinha da China. Pode ter sido a contrariedade a toldar-me a visão, mas comecei a ver chinesices por todo o lado.

Aquela obra premiada e muito recomendada de uma jovem escritora catalã, que acabei por ceder a comprar: ginástica chinesa. Bonita de se ver, mas mais nada.

A autobiografia do papa Francisco, com o título a dizer Esperança: chinesada de mau gosto.

Os canais de streaming, onde não há série nem filme que não meta cena de homossexualidade: chinesice pegada.

A chinesice da esquerda e da direita, da política e dos políticos que ainda há quem acredite que vão salvar o mundo. As opiniões, as redes sociais, os podcasts, o entretenimento barato e o analfabetismo que se vê em tantos blogues. A IA a querer entrar por todas as frestas, com um exército de assistentes, acólitos e vendedores sem escrúpulos: chinesada da grande.

Os elogios mútuos, os falsos humildes, os penitentes vaidosos, as máscaras ambulantes, a mentira que galga de trotinete estradas, passeios, pessoas, mãos, olhos, bons dias, os beijinhos que um dia a terra cuspiu e que são tempero para tudo, as regateiras do mercado a chamarem-me “querida”… tudo made in China.

Lançada que estava neste inventário furioso, a memória prega-me uma partida, abrindo a janela para a cena remota em que uma colega da faculdade diz que falou de mim ao namorado:

- É que pareces uma chinesinha.

 

25
Jan25

O Pinga-Amor

Sónia Quental

 

Cavaleiro de Copas.png

O Pinga-Amor gostava delas tenrinhas, inocentinhas, praticamente sem trinca. Era para elas que guardava teias de aranha no bolso, material extensível, que lançava, aracnídeo macho, sobre as florzinhas viçosas que se passeavam sem saber que o eram. Pigarreando para expurgar a voz de intenções segundas, o Pinga-Amor chegava-se e colava-se-lhes todo, calculando de cabeça que alminhas pediam uma abordagem mais vagarosa. E era todo vagares. Mas o seu repertório, que cabia num caderninho de bolso, repetia-o sem variação, prometendo-lhes a capa da Vogue entre a meada de elogios, despistando-as com lições solenes sobre a importância do relaxamento ou discursando sobre o correr da vida, qual Epicuro com a auréola mais cândida do desapego. Sobre ânimos exaltados, vertia com o mesmo vagar cerimonial a fleuma adquirida após uma existência dedicada aos prazeres do estômago e da camaradagem.

         De bigode aperaltado, despido de preconceitos e pudores, insinuava ideia semelhante nos cerebrozinhos encantados com os seus galanteios, que se iam fechando na teia, não por falta de entendimento, mas por se acharem no dever de retribuir mesuras. A valentia com que o Pinga-Amor se atirava para a frente de batalha na caça de talentos era confirmada pelas substâncias estranhas que injetava no organismo, que não o impediam de contrair as moléstias contra as quais se inoculava, cujo sintoma persistente eram as evacuações intestinais. Às jovenzinhas deslumbradas, gostava de exibir as marcas das agulhas nos bíceps descaídos, enquanto lhes espremia os pecados mais íntimos, prometendo-lhes o sigilo do túmulo com a mesma convicção com que outros vendiam a continuidade no Além.

         No labirinto do Império, era figura de certa dignidade, chefiando o Gabinete das Manobras de Diversão, onde, além das teias que fazia para uso pessoal, tecia cortinas de fumo com a mesma habilidade de dedos com que as moiras enrolavam os destinos universais. Fosse pela presença constante de cortinas e cantigas, fosse por qualquer predisposição impossível de contrariar, gostava de adormecer a ouvir a história da Carochinha, sem saber que ele era a mosca na teia, o ratão apanhado nas tramas que urdia para pescar anjinhos doces nas suas redes pinceladas de mel.

 

Imagem: Tarot Cigano

 

19
Jan25

Vícios

Sónia Quental

         Por motivos que pouca importa esmiuçar, tenho-me dedicado à leitura de manuais de instruções de frigoríficos, que fizeram mais por mim do que dizer-me que devia descongelar o meu antes que sejamos ambos tragados pelo gelo.

            O pasmo não foi pequeno ao ler as advertências para não se utilizar um secador de cabelo para secar o interior do frigorífico nem pôr lá dentro velas acesas para remover maus odores – o que sugere que ambas as proezas já foram tentadas. A ênfase que a repetição dá ao pedido de não deixar crianças entrar para o frigorífico ou para dentro das gavetas semeou o seu tanto de desassossego: sabendo embora que muitos pais gostariam de fazer freeze à prole destravada, não supus que recorressem a meios tão extremos e literais para o conseguir.

        Empolgada que estava com todas estas aprendizagens e com o português escorreito do texto, eis que tropeço numa daquelas pedras que são a razão de ser de poemas como “No meio do caminho”, de Drummond de Andrade: o emprego infatigável do pronome demonstrativo “o mesmo”:

 

“Não limpe o aparelho pulverizando água diretamente sobre o mesmo”.

“Mantenha todos os materiais da embalagem fora do alcance das crianças, porque os mesmos podem ser perigosos para elas”.

 

         Contrariamente ao que defendem alguns, a formulação não é erro, mas uma deselegância exacerbada pela falta de comedimento no uso, a que aderem até os que mais insistem na simplificação do discurso. Mais universal do que o verniz das unhas que une mulheres de todos os estratos sociais, “o mesmo” ouve-se e lê-se em toda a parte, em substituição de formas mais simples e naturais como “ele/ela”, “este/esta”, “dele/dela”, “seu/sua” ou da simples omissão, como se aconselharia no segundo exemplo acima e era prática comum até um passado recente.

        Senha não reconhecida de igualdade social e nivelamento cultural, infelizmente para baixo, este verdadeiro trambolho tanto se ouve em conversas de café como se lê em traduções literárias, de profissionais que mostram não ser imunes aos modismos da língua. É um dos exemplos infelizes do contágio psíquico que ocorre não só no campo das ideias, mas da linguagem, mostrando como pouco filtramos e refletimos sobre o que recebemos e propagamos. Pior do que isso, só mesmo rematar com “LOL”.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0