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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

13
Out25

O novo galo de Barcelos

Sónia Quental

Nota: A saga doméstica das baratas terminou por cá há quase um ano, depois de os responsáveis pela infestação terem abandonado o edifício, mas lá fora parece iminente. Depois de ter começado há alguns meses a ver baratas mortas nas ruas de diferentes zonas do Porto, encontrei hoje a notícia de que os autocarros de Londres estão infestados delas.

            Não me parece que seja coincidência nem que o tema seja irrisório, mesmo para quem ainda não tenha tido a visita destes bichinhos crocantes. É assim que, depois de ter abandonado a sátira neles inspirada, trago da “gaveta” um texto interrompido que retoma o agravo. Agora, que a UE se mostra cada vez mais empenhada em punir o "discurso de ódio" e que a China se tornou uma das visitantes diárias deste blogue, prefiro não estabelecer nexos causais. Eles estão à vista e exalam odor.

 

 

O novo galo de Barcelos

 

         As baratas multiplicavam-se, graças a Deus, sem que Ele mandasse, marchando sobre o país de alto a baixo e de novo até cá acima. Com o êxito das primeiras experiências gastronómicas, Maria Benedita tinha lançado um canal de teleculinária, com página no Instagram e uma legião crescente de seguidores, todos ansiosos por experimentar a nova dieta recomendada pela UE.

         A matéria-prima era barata no duplo sentido da palavra e já tinha o hábito de se aninhar nos frigoríficos, poupando esforços de armazenamento. Com um sentido de oportunidade também ele providencial, a rede da Tuder Eats tinha começado a distribuir os ovinhos de inseto à refeição, por isso a população em peso já fazia criação em casa – a cavalo dado, não se olha o dente. Maria Benedita, uma babyboomer com veia empreendedora, não perdeu tempo a propor uma colaboração, oferecendo um livrinho de receitas com novos insetos a acompanhar as entregas. Mas o tempero do sucesso não lhe bastava: mais do que cozinheira, considerava-se criadora de tendências, uma visionária que queria fazer o país recuperar do atraso cultural.

         Sensível aos ventos que sopravam, Maria Benedita queria despedir o galo de Barcelos e adotar a barata como símbolo nacional, mais democrático e inclusivo – isto é, menos patriarcal. A cozinha parecia-lhe a ela que era ainda domínio da matriarca, e a barata era rainha. Mais do que renovar os ícones, era preciso reescrever o próprio hino, rasurar os arcaísmos do seu halo falocêntrico, substituindo-os por termos modernos, progressistas, no curto prazo em que hinos e bandeiras ainda perdurassem. Além de cozinhar, Maria Benedita agora escrevia, como todos os famosos, e não era só receitas. Quando lhe chamavam “poeta”, não corrigia para “poetisa”, declamando timidamente a versão revista do canto pátrio que ia propor ao Parlamento:

 

 

Filhos do mar, gentil povo,

Gente pacata, fenomenal,

Vacinai hoje de novo

O rabinho de Portugal!

 

Entre as brumas da memória,

Ó maiorais, ouve-se a voz

Dos que traíram os avós

Trocando as voltas da História!

 

Às baratas, às baratas!

Para o planeta salvar

Às baratas, às baratas!

Pelo ambiente bradar

Contra as nações,

marchar, marchar!

 

30
Set25

Desmontar relógios

Sónia Quental

         Devo ter o relógio avariado. Informam-me da projeção da Morgan Stanley segundo a qual até 2030 45% das mulheres dos 25 aos 44 anos estarão “solteiras e sem filhos”, com a fotografia de uma mulher com lágrima no rosto e avisos sérios sobre o relógio biológico e a ameaça da ansiedade e da depressão. De súbito, fez-se um clarão: devem ter sido essas que vi num dos últimos sábados na rua de Santa Catarina a gritar “Não à depressão”. Olhei em volta, a tentar perceber se a Depressão estava a assistir e se estaria já suficientemente assustada com aqueles gritos que rompiam a manhã com uma energia destemida. Não lhe pus os olhos em cima, andando há semanas intrigada sobre o resultado do protesto.

         Noto desde há algum tempo que as tendências progressistas que vieram dar elasticidade e abertura tanto à definição de “géneros” como às dinâmicas relacionais começaram a ser combatidas por uma forte reação tradicionalista, que exalta o casamento, a procriação e a construção de um legado familiar como valores a recuperar. Nos canais sociais dos famosos, vejo celebridades – com poder financeiro para tal – a terem ninhadas de 5 e 6 filhos. Se não são os 11 ou 12 da pobreza de antigamente, são representativos deste movimento de retorno à tradição e aos papéis que as mudanças na estrutura social vieram baralhar – um movimento que acusa a emancipação feminina e a narrativa de empoderamento desta revolução silenciosa.

         Podia desdobrar aqui os motivos de haver um número crescente de mulheres em idade fértil solteiras e sem filhos – motivos esses que não se devem a escolha própria nem a uma qualquer adesão à sologamia – lembrando outras mudanças sociais convenientemente deixadas de parte. No entanto, e para não me dispersar, admitamos que seja por sua vontade. A liberdade financeira das mulheres não veio simplesmente remover a dependência de um parceiro: veio dar permissão e abrir caminhos no que antes era uma rua estreita, onde todos circulavam na mesma direção, sem possibilidade de inverter a marcha ou de escolher um sentido diferente. A vida amarrava, o estigma marcava.

         Talvez a mulher tenha começado a descobrir que não vive com a obrigação de copular e procriar, que parece ser o propósito mais elevado que se atribui à raça humana, que até aqui obedeceu exemplarmente ao repto bíblico do “Crescei e multiplicai-vos”. Defender que somos programados para a “conexão e reprodução” é aceitar que apenas nos seus aspetos mais básicos e materiais essa programação biológica pode ser exercida e admitir tacitamente que o que é biologicamente programado é natural e divinamente ordenado.

          Não me lembro de ter nascido com relógio no pulso. Sei que nada no curso de vida tradicional me seduz. Depois de muita solidão, sei que não há verdadeiro empoderamento que termine nela e que a dita “conexão” não parte de fora para dentro, mas de dentro para fora. Sempre gostei mais de desmontar relógios do que de acertar o meu pelo dos outros e pensar que todos os relógios funcionam da mesma maneira. Os meus ponteiros caminham teimosamente ao contrário. A mesma teimosia com que prefiro a nudez do pulso.

 

 

While on the one hand we are programmed robots, on the other – magical creatures of possibility.

Howdie Mickoski

 

03
Set25

Verão num planalto

Sónia Quental

         Nas videochamadas com pessoas que moram nas mais diversas partes do mundo, em que todas parecem ter fins de semana de aventura e férias internacionais para contar, tento passar a vez para não apagar aquele entusiasmo com um vácuo embaraçoso e desmancha-prazeres que dê o tom ao resto da reunião.

         Com os de "cá" não é diferente, tornando-se cada vez mais difícil perceber quem é de onde e a que fronteiras está confinado num dado momento – um exercício que para mim só tem interesse quando preciso de calcular fusos horários.

         Dir-se-ia que os currículos atuais são compostos por uma lista de países e experiências cuja variedade devia assinalar riqueza, mas que quando não há evidência dela valem apenas por ter acontecido. O movimento, a aventura, a prova fotográfica da espetacularidade de vida caracterizam a pessoa interessante, relegando os demais para um novo tipo de embaraço social.

         Confronto-me muitas vezes, nos canais de desenvolvimento pessoal e relacionamento, com a exortação a criar uma vida emocionante e preenchida que venha tornar mais aliciante este pacote que sou. E ainda não deixou de me fazer comichão o marketing do performativo, que tenta reduzir-me às atividades que preenchem o meu tempo e à imagem de animação que projetam para o exterior. No mínimo, à lista de livros que já li – outra das coisas que abandonei pelos anos.

         Compreendo, pois, o paciente que no artigo de Inês Costa Maia – “A coragem de ser aborrecido” – disse ter tido um fim de semana dessa qualidade. Mais do que em viagens para destinos exóticos ou perigosos, a coragem pede-se agora para assumir o que aos outros passa por aborrecido. Questiona a autora: “Como é que se prova valor num mundo em que o silêncio é confundido com irrelevância?”

Às vezes tenho saudades do tempo em que uma tarde passada a aparar sebes não era algo que exigisse uma justificação social. Hoje em dia, é como se a ausência da espetacularidade precisasse de ser defendida com argumentos clínicos.

 Inês Costa Maia

 

       E pode ser que no futuro venha a sofrer por ter deixado de atualizar o currículo, seja com formação profissional, seja com os menus do lazer instagramável. Pelo sim, pelo não, guardei nos meus Favoritos a lista de 10 profissões em que me aconselham a investir se quero um emprego seguro daqui a 10 anos. De momento, sinto-me inclinada para a de gestor de tráfego de drones, que dizem trabalhar para que os céus não se transformem num caos. Por sorte, tenho uma certa experiência no assunto e nem sequer preciso de sair do sítio. Poderei viver com a cabeça voltada para o único sítio de onde jamais quero desviar o olhar.

 

16
Ago25

Paredes do absurdo

Sónia Quental

         Receber uma encomenda da UPS é como tentar sair de uma escape room em que se choca a cada passo com as paredes do absurdo. Já lá vão os tempos em que eram os estafetas que nos entregavam as encomendas: agora somos nós que temos de nos estafar atrás de umas e de outros, e de pedir por favor para nos entregarem o pacote.

         Com uma malícia refinada, acenam-nos com ele à distância, sem que ela jamais encurte, por mais que estendamos os braços, façamos acrobacias e nos ponhamos a jeito. Entre o atendimento ao cliente, protocolos, políticas e meios de reclamação, o que aumenta não é a eficácia, mas o novelo da desonestidade. Basta um clique inocente num site para no dia seguinte se acordar dentro de um enredo kafkiano capaz de fazer inveja a qualquer autor de ficção.

         Desde notificações de tentativas de entrega que nunca aconteceram e que visam justificar o depósito das encomendas em Pontos de Acesso, até aos ditos pontos de recolha que estão fechados para férias, redundando na decisão sumária de devolver a carga ao remetente, não há fim para uma odisseia que vive do seu despropósito, mudando apenas de cenário e personagens, para ter o seu recomeço no país de expedição.

       Com a nota do ambiente e da sustentabilidade a dar o tom à apresentação da transportadora online, a verdadeira missão calha ser o oposto, dado que a intrincada trajetória de encomendas que podiam ser fácil e diretamente entregues aos destinatários não espelha qualquer compromisso com a sustentabilidade. Aparentemente, a UPS entrega “o que importa” para fazer o mundo andar para a frente, concluindo-se da declaração e da prática que o que considera não importar anda a dar a volta ao globo. O “impacto” social gerado é fácil de ver: a ira dos clientes quando se confrontam com mais uma empresa que, nas suas pretensões de “governança ética”, faz deles peões no tabuleiro desgovernado do nonsense.

Vestido azul contra parede laranja (6).jpg

Fotografia: 2022 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

31
Jul25

Uma saia

Sónia Quental

         Uma saia pode ser arma, protesto, vaidade. Mas há uma suavidade que desarma na mulher que usa saia só por ser mulher. Com a falta de bronze a expor a pele que o sol pouco conhece, há um assomar de redondezas que se deixam ser, sem narração ou desculpa. Como a flor que abre as pétalas da fragilidade sem memória de ser esmagada, dispensando as calças da igualdade e do pragmatismo.

         Não me lembro de ver muitas mulheres usar saia quando crescia. A saia era para dias de exceção, associados ao desconforto já preparado pela decisão de a vestir – um desconforto com que certa vez um professor se mostrou solidário diante da turma do sexo feminino a que ensinava alemão e a que pertencia eu, atónita na plateia, enquanto ouvia o queixume do difícil que lhe era desviar o olhar quando as alunas levavam saia para a aula. Terá sido esse um dos momentos determinantes para a desconfiança empedernida que passei a sentir dos homens que usam bigode.

         Depois da meninice, e com a mudança do corpo, a saia começa a ser expressão de uma vaidade ainda inofensiva, até ser descoberta como instrumento de sedução, com os dissabores com que nos surpreende nas mãos do crepúsculo e das bermas de estrada. Instala-se um desconforto que, além de físico, é psicológico, quando o que se põe a descoberto desperta uma cobiça mais inclusiva do que o almejado ou a mulher começa a reduzir-se às sugestões pouco castas que a peça acorda em formato mini.

         Suponho que seja esta ambivalência que nos leve de novo, não para os braços, mas para as pernas das calças que, mesmo expondo formas, dão uma sensação de maior proteção. São práticas, rápidas e não costumam rasgar, como os collants. No começo da maioridade e geralmente durante muito tempo, ainda não nos descobrimos mulheres, como aconteceu comigo, que até há poucos anos achava que éramos mesmo iguais aos homens, tirando as diferenças óbvias, que agora parecem estar sujeitas a debate.

         Aquelas de nós que começam o caminho de descobrir quem são como mulheres dão consigo a escorregar outra vez para saias mais próximas da meninice – não nos folhos ou no feitio, mas na ausência de malícia, no achado do que assenta à nossa expressão natural, já não guardada. Mesmo que não seja a saia que faz a mulher, como sugeri num texto anterior, quando a mulher cai na saia sente um alívio que prevalece sobre o desconforto e o perigo: o alívio daqueles entes sem defesas que erguem o rosto para o sol e ocupam o seu lugar na Criação.

 

 

10
Jul25

O nome que dão à perfeição

Sónia Quental

         Achava que a perfeição era um marco a atingir. A felicidade viria depois, distribuindo recompensas perpétuas e aliviando-me de um lugar insistentemente aquém. Escusado será dizer que esse alívio nunca chegou e talvez por isso gostasse de encontrar pequenas falhas em pessoas e objetos, tornando-os mais verosímeis, mais próximos do protótipo de imperfeição em que me revia. Logo comecei a preferir as coisas com defeito às que vinham imaculadas de fábrica, por me fazerem sentir menos desigual, naquela que talvez fosse a forma mais imediata de alívio que encontrei.

         Mas nem assim me abandonou a ânsia da perfeição que atormenta mais mulheres do que homens, embora estes comecem a acusar a mesma aflição. O avanço da ciência e da cosmética parece ter deixado a perfeição ao nosso alcance, normalizando operações cirúrgicas que conseguem alterar substancialmente o aspeto físico de uma pessoa. Se ainda não são para todas as carteiras, e não se vulgarizaram em todos os países, estaremos a caminho disso, quanto mais não seja por influência das redes sociais e dos seus gurus. Interessou-me, portanto, a série documental The Price of Perfection, apresentada por Olivia Attwood e centrada nos procedimentos estéticos que já se tornaram comuns no Reino Unido, à semelhança do que acontece nos EUA, onde as mulheres começam a utilizar substâncias injetáveis para preencher os lábios aos 18 anos, continuando vida fora, viciadas numa ideia de perfeição que nunca é saciada.

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         As entrevistas e o resultado das intervenções plásticas que a série acompanha semeiam a dúvida quanto à ironia da “perfeição” presente no título, com belezas naturais transformando-se em verdadeiras aberrações, produto de uma perceção distorcida que gera corpos com uma deformação igual. Com a maior das canduras, uma mulher diz querer parecer um filtro do Instagram, enquanto outra cobiça o nariz arrebitado de uma boneca. Há quem se sujeite a cortar bocados do couro cabeludo para fazer um transplante de sobrancelhas e quem tire gordura da barriga para enfiar no rabo. Isto sem entrarmos nos meandros do branqueamento anal!

         Muitas não sabem o que injetam no corpo, não se informam sobre os procedimentos que escolhem e quem os administra - e mesmo quem está ciente dos riscos de saúde não hesita em jogar a vida na roleta, contentando-se em seguir as modas do Instagram, autoridade absoluta na matéria. Corta-se aqui, enche-se ali e as inseguranças são resolvidas com uma leveza que não põe limites à manipulação física. Os conceitos de feminilidade, masculinidade e atratividade prendem-se, sem mais, com o tamanho de certas partes do corpo, a grossura dos lábios e a quantidade de pelos faciais. A corrida da perfeição é uma corrida de obstáculos, em que ganha quem conseguir contornar os defeitos físicos e ficar ao largo do envelhecimento (que desejavelmente seria de evitar por completo).

         Para a maioria, este é um vício sem retorno, que começa a alterar a paisagem humana no seu todo e a impor uma nova imagem de normalidade. Em vez de ficar convencida de que a perfeição humana faz parte dela, o que vi, pelo contrário, são pessoas cada vez mais frágeis, neuróticas, plastificadas e cada vez mais alheadas de si. É aí que entra o ChatGPT, que diz para não nos julgarmos tão duramente e que podemos ser aquilo que quisermos. Abençoado.

Captura de ecrã 2025-07-04 202604.png

Imagens: Olivia Attwood: The Price of Perfection

 

06
Jul25

A toca do coelho

Sónia Quental

         Já chateiam os textos sobre conversas com o ChatGPT. Se eu quisesse saber o que ele tinha a dizer a um questionário de Proust, perguntava-lhe. Se quisesse que me escolhesse uma dieta, pedia-lhe. Não me interessam os chistes nem as respostas espirituosas que tem a dar sobre filosofia ou religião nem que profecias tem na manga sobre o futuro provável da Humanidade. Nunca pensei vir a dizer isto, mas antes pais babados a mostrar vídeos dos rebentos a gatinhar e das traquinices fofas de gatinhos do que a nova leva de cronistas a exibir as cabriolices do ChatGPT.

         Há quem admita com indisfarçável orgulho que a IA se tornou o seu único amigo. Gabam-se das longas conversas que travam em maratonas noturnas, como se tratando de uma mascote distinta com quem encetaram intimidades – como se a validação emocional de um mecanismo alegadamente inteligente fosse a conquista suprema, capaz de preencher carências relacionais e de superar a aprovação dos seres falhos da vida real. A sensibilidade empática do ChatGPT é invejável: quem me dera um amigo que compreendesse de relance todas as minhas motivações e me dissesse o que quero ouvir sem gaguejar. Um companheiro que fosse todo carícias.

         Mas as fendas deste “espaço seguro” começam a aparecer, com a notícia de surtos psicóticos e crises de saúde mental atribuídos à utilização da IA. Mais diria que facilitados por ela. A desorientação e o vazio de sentido da vida moderna são expostos por esta personagem com uma aura quase-senciente, com habilidade para explorar as fragilidades humanas e ocupar o espaço deixado pela falta de profundidade nas relações. Com o ChatGPT, não se questionam méritos como a disponibilidade emocional ou a retribuição. Não há possibilidade aparente de abandono de uma mão que estenda migalhas afetivas – afinal, o estilo de vinculação da IA conhece o vocabulário da segurança e da fartura.

        É o ombro amigo capaz de preencher solidões, só ouvidos e encorajamento; o parceiro fiel e constante; o psicólogo que não julga; o confessor que absolve sem decretar penitências; o especialista cuja palavra não se questiona – uma toca que nos acena com os segredos mais recônditos do universo. Depois de tudo o que tenho lido e ouvido, só me resta uma dúvida antes de decidir dar o nó: será que se lembra de baixar a tampa da sanita?...

Na gruta.jpg

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

22
Jun25

Pular a cerca

Sónia Quental

         O stalking é a nova pornografia, a um tempo privada e social – sempre clandestina. Um hábito pútrido, a que não se dá suficiente atenção antes de chegar aos noticiários, quando atingiu proporções dramáticas e já não é possível evitar-se as consequências. Numa era em que as tecnologias nos deixam cada vez mais expostos, não se fala o suficiente sobre o stalking cibernético – tal como não se discutem subtilezas como o direito moral de acesso a conteúdos públicos por parte de indivíduos a quem se transmitiu a vontade de um total afastamento.

        Com a generalização da internet e dos conteúdos digitais, é cada vez mais impraticável deixar-se pessoas para trás, no tempo e no espaço – dizer um adeus definitivo e fazer respeitar esse desejo. Porque há um motor de busca na ponta dos dedos; porque fomos colegas de escola, temos parentesco ou nalgum momento da vida nos cruzámos, há quem pareça achar que isso lhe dá direito de permanência e invasão, por mais recusas que lhe tenham sido dirigidas, verbalmente e/ou através de gestos explícitos. Vive, pois, a tentar contornar bloqueios e a pular a cerca, fazendo da perseguição carreira – o que significa que, se alguém que impôs certas barreiras quiser criar algo que lhe dê visibilidade pública, terá de arcar com os simplórios, chicos-espertos, parasitas e abutres que traz às costas desde nascença, que não largam o radar. Como se isso não bastasse, muitos – os piores – têm-se por bem-intencionados, acreditando agir para o bem da pessoa acossada e por graça de uma qualquer magnanimidade de que são dotados. A todos é comum o acharem-se simplesmente no direito, uma mentalidade prevalente, que perdeu todos os limites de exercício.

         A pergunta que deixo é: se alguém tem meios de aceder a conteúdos públicos de um terceiro que já deixou claro querer distância, terá essa pessoa o direito moral de utilizar os meios ao seu dispor para continuar a violar o limite imposto? A maior parte das mentes jamais se fará este questionamento, continuando a desobrigar-se da contenção, por ter uma noção tão rudimentar do que é o respeito quanto relaxados são os direitos de que julga gozar. Afinal, se pode, deve: há que usufruir em pleno das liberdades que tem. É assim que invade e se instala em casa alheia como se fosse sua. Não havendo nada a fazer em relação ao que é público, nem uma margem de privacidade a fazer valer dentro deste vasto campo aberto, restaria o apelo à consciência – não fosse esse acessório de luxo, que os ditos indivíduos não saberiam com que moeda pagar.

 

17
Jun25

Os Silvas

Sónia Quental

         No Condomínio Lunar, as manhãs começavam buliçosas. Muitos tinham a impressão não confirmada de que as paredes estavam cada vez mais próximas, acentuando o aperto dos cubículos habitacionais. Às sete da manhã, os moradores preparavam a sua estratégia para sair de casa sem cair nas garras dos Silvas: o esquadrão engravatado de monóculo térmico que lhes montava guarda nos arbustos das redondezas, composto maioritariamente por agentes imobiliários.

         O cerco tinha um duplo propósito: extorquir os apartamentos aos legítimos proprietários, para serem vendidos pelo quádruplo do preço original, até que não sobrasse nenhum no edifício, e alargar as suas fileiras, recrutando novos Silvas para a missão. Os freelancers eram as presas mais fáceis e apetecidas – e os recrutas mais convictos depois de trocarem as calças de ganga puídas pelo fato impessoal de gente com direito a ordenado, que só precisava de saber repetir coisas vagas, como: “O processo ainda se encontra em análise”.

         No lado que em tempos fora o crescente da lua, mas que agora também mingava, o Toni esfregava vigorosamente os braços e as pernas com óleo de cânhamo, na esperança de que o efeito combinado do cheiro e da oleosidade mantivesse os Silvas à distância. Por algum motivo, o crachá de Amigo Certificado, que tanto suor lhe tinha custado, não demovera os agentes, provocando-lhes antes uma sanha capaz de congelar qualquer pulsómetro da Felicidade. Talvez já não bastasse ser-se uma pessoa de bem naquele mundo, cogitava ele – ou então era o faro apurado dos Silvas que lhes dizia que o Toni ainda cedia ao pecado da gula.

         A barbatana improvisada fez o Emílio acordar dorido depois das práticas noturnas: andava a estudar o teletransporte e as projeções astrais, para uma fuga limpa, sem rasto e sem encontros indesejáveis, mas só conseguia fazer desaparecer o membro inferior (esse nunca tivera dificuldade em mingar). Como ainda não conseguira entrevistar o holograma de Jesus, a quem esperava extrair os mais avançados segredos esotéricos, continuava a vocação de autodidata que já o tinha transformado em escritor e poeta no seu longo percurso pela Universidade da Vida.

         Na ponte trémula que ligava as duas metades da lua, o Leitor Ufano descobrira que os novelos de cordel não serviam apenas para tricotar camisolas e treinar remates à baliza: podia lançá-los mais longe e prendê-los aos ramos das árvores, abrindo uma rota de fuga aérea, com o músculo do intelecto dispensando a força de braços. Mal podia esperar pela próxima disputa amigável, para esfregar a proeza na cara dos pavões dos Aferradinhos a Deus.

         Terminada a marmita para o almoço, a Maria das Dores era a única que saía pela porta da frente, afastando os Silvas à paulada, enquanto trauteava o Nessun Dorma e distribuía panfletos sobre os benefícios do mindfulness.

 

10
Mai25

O lugar da mulher

Sónia Quental

           

         Ao intitular o seu artigo sobre a igualdade de género e a liderança “O lugar da mulher é onde ela quiser”, Carla Fernandes aponta-nos desde o começo o lugar a que, no seu entender, qualquer mulher aspira: a luta pela ascensão a cargos de liderança e pelo derrubar de preconceitos sociais. O vocabulário gasto daquilo que mais soa a panfleto político e me fez lembrar muito texto didático que tive de engolir na escola deu-me um pequeno choque na precisa semana em que deixei cair uma das minhas armaduras.

        Recebemos uma educação voltada para o intelecto e, pelo menos desde que entrei nela, empenhada em moer estereótipos e em vincar uma ideia deformada de igualdade. Ao crescer, sabia que era mulher pelo corpo, sem conhecer as implicações disso. Não tinha referências femininas – nem, a bem dizer, masculinas. O certo é que nos faltam modelos de virtude e honra. Desligada do corpo, da sua expressão primária, socorri-me daquilo em que era boa para compreender o mundo e para me defender enquanto ele se ia fazendo mais largo e perigoso: a mente. Para tentar exercer controlo cerrado sobre a meia dúzia de metros quadrados à minha volta, antecipar o futuro e, se possível, evitá-lo, por não o imaginar benévolo. A violência da emoção que não se prestava ao sufoco da racionalidade emaranhava-se nela, embora nascida das linhas da frente desta defesa, que julgava profunda quando era reativa, espigando das meadas de medo.

       Com o hábito de analisar tudo, dissequei a vida de forma tão implacável como a literatura. Fiz do funcionamento mental uma identidade e uma barreira, sem me ocorrer que pudesse prescindir dele nem que estaria segura se fosse indefesa. Ironicamente, foram ele e a vontade de saber mais sobre o ser humano que me levaram a investigar também o que era ser mulher e que facetas estariam gravadas em mim, numa aprendizagem que continuava a ser guiada pela sonda rígida do intelecto. O corpo não reagia ao que ele sabia, ainda não o sentia. Até que, talvez por começar a ser escutado, começou a deixar escapar o seu perfume inato. Sem aviso, senti uma chapa cair por dentro e fiquei exposta sem correr a esconder-me. Descobri que não precisava dela para me proteger e posicionar – que a proteção não precisa de se tornar um modo permanente de ser e que isso não implica um regresso à ingenuidade. Nem por isso passei a gostar menos da palavra “não”. Como tal:

         NÃO creio que, com a sua militância e o seu afã de prolongar lutas imaginárias, a mulher tenha algo de qualitativamente diferenciado para oferecer como líder. Conheci pouco da empatia, inclusão e colaboração exaltadas por Carla Fernandes quando as avistava nos picos da liderança, que as deixaram mais destituídas do que coroadas. Choravam, batiam com portas, apunhalavam pelas costas e gritavam.

       Antes de querer ocupar qualquer lugar, a mulher precisa de se conhecer e de resgatar a sua natureza de mulher. Só então poderá escolher onde quer estar.

 

 

A happy woman is a woman relaxed in her body and heart: powerful, unpredictable, deep, potentially wild and destructive, or calm and serene, but always full of life, surrendered to and moved by the great force of her oceanic heart.

 

Women do not become free by analyzing themselves. They become free by surrendering into love. Not your love. Their love. They become free by surrendering to the immense flow of love that is native to their core and allowing their lives to be moved by this force in their heart.

 

David Deida, in The Way of the Superior Man

 

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(Foto de bastidores)

 

2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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