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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

19
Set24

Elogio da escuta

Sónia Quental

            Mas numa era em que a escuta é vista como um fardo, as pessoas sentem-se envergonhadas, embaraçadas ou culpadas quando alguém as escuta, e ainda mais quando reflete sobre o que disseram. 

Kate Murphy

 

 

         Há muito quem ouça, poucos que escutem. Aprendi a falar mais por imitação do que por correção, mas, ao contrário dos que escrevem como falam, acabei a falar como escrevo. A escuta, por sua vez, vai ainda nos primeiros passos, por tentativa e erro, pedindo-me a concentração intensa dos começos no exercício de ser um espelho mais limpo, com várias séries de repetições, dia sim, dia sim.

     Como ato intencional, consome-se uma grande energia só na preparação para não se estar preparado, isto é, para ouvir sem antepor ou apressar desfechos, sem ter a resposta na calha, mesmo que isso abra rotundas lentas de silêncio. Parte da aprendizagem é saber a quem dar atenção, quando pedir esclarecimentos, em que momento interromper a escuta e dizer “Já chega”. Como sugere Kate Murphy em O que Perde quando não Está a Ouvir, “Ainda que a escuta seja a epítome da graciosidade, não é uma cortesia que devamos a todos”.

         Por isso, como as prendas que escolhemos de modo premeditado, a qualidade importa. E, para aprender a ouvir bem, vem-se a descobrir que é preciso fazê-lo com o corpo todo, aprender o vocabulário do que não é dito, tarefa onde entram também as mãos, num treino full-body que desmente a passividade aparente.

         Perante a ostensiva falta de ouvidos pacientes, é a busca da escuta, de se ser recebido, que faz as filas para o psicólogo e o cabeleireiro, de onde não se sai de pés, mas de cabeça lavada, que é a mesma coisa - com direito a massagem, no último caso. Quando era pequena, gostava de brincar às cabeleireiras: pelo toque que me acalmava o pensamento, como carícia que se movia por vagares e redemoinhos, sem pedir nada em troca (só que pedia). É assim, à vez, que nos escutamos, desejavelmente sem acumular calotes.

         Mesmo que a escuta não se distribua a rodos, andar de ouvido atento e antena sintonizada é a melhor meditação que conheço. Começar por nos ouvirmos a nós mesmos é condição necessária para que possamos escutar o outro. E, quando há ruído na comunicação, quando nos distraímos ou tropeçamos na atenção, o bom da escuta é que podemos sempre começar de novo.

 

30
Ago24

Poliamor

Sónia Quental

(…) ele foi capaz de transmitir o horror de um mundo no qual ‘todos pertencem a todos’, um mundo no qual ninguém poderia construir qualquer ligação profunda com ninguém. O alvo principal da distopia de Huxley era a ideia de boa vida como gratificação instantânea dos desejos sensoriais.

 

Theodore Dalrymple

 

 

          Chamou-me a atenção uma capa de revista na montra da papelaria, sugerindo, de forma interrogada, que o amor romântico terá acabado e que a monogamia se tornou obsoleta. Se está impresso na capa de uma revista, deve ser verdade e não há perigo de desinformação, por isso acreditei no diagnóstico.

          Sabia-se já que a desconstrução da identidade sexual preparava a desconstrução da monogamia, um conceito reduzido ao seu caráter histórico e social, num momento em que até a biologia perdeu o estado de graça. A culpa, já se sabe, é do patriarcado, e os modos de viver o amor não passam de correntes do obscurantismo que percorreu as sucessivas épocas, até chegarmos ao presente esclarecido em que temos a felicidade de viver, preparados para acabar com as repressões, derrubar estereótipos e proclamar a liberdade de vida, que gravita em torno da liberdade sexual.

         Da definição de limites rígidos passamos à fluidez gelatinosa da identidade de género e de relação, em que se vive fundamentalmente para coçar comichões. Como propõe Regina Navarro Lins, autora de Novas Formas de Amar, em que se baseia em parte o artigo de revista a que aludo à entrada, chegou a altura de arejar as nossas ideias a respeito de amor e sexo – ou de levar a cama para a varanda, imagem que dá o título a outra das suas obras e que ilustra bem as correntes de ar que ventila.

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          Se o amor romântico é mito ou ilusão, é ilusão que encontra finalidade no crescimento pessoal, que dificilmente acontece numa existência isolada. Uma ilusão que pode levar-nos ao encontro da verdade do amor ou à sua sublimação como verbo. Trocar essa ilusão a dois pelo regresso à selva amorosa é preferir uma miragem serpentina, que não só não vem resolver os dilemas com que as pessoas se confrontam dentro da monogamia, sintoma de um vazio íntimo que se propaga, como vem exacerbá-los, iniciando uma espiral que só tem um sentido: descendente.

          A normalização das relações "abertas" consagra-as ao capricho do momento. “Infelizmente, os caprichos de duas pessoas raras vezes coincidem”, sinaliza Theodore Dalrymple, em A Vida na Sarjeta, um título que nos atira da varanda para a valeta, mas que introduz, desde esse nível rasteiro, uma reflexão bem mais profunda sobre o abismo existencial, o tédio e a degradação moral que marcam o grito do Ipiranga sexual: o grito do bárbaro moderno.

          Evocando o significado simbólico de um dos meus contos de fadas preferidos, enquadrado no ciclo do animal-noivo (“A Bela e o Monstro”), Bela perdeu nesta revolução sexual o poder de revelar o príncipe no monstro, sendo agora o monstro que a absorve e transforma num ser à sua semelhança: bem-vinda ao bacanal fluido do poliamor.

 

Contudo, é evidente que se deve preferir sempre o difícil: tudo o que vive lá cabe. (…). Amar também é bom porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas preparações. É por isso que os seres muito novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, concentradas no coração que bate ansioso e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda imprecisos, inacabados, dependentes?) O amor é a ocasião única de amadurecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigência, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalharem a si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos darmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro, é preciso amealhar muito tempo, acumular um tesoiro.

R. M. Rilke

 

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

21
Ago24

Confessionário

Sónia Quental

 

         A alternativa à glamorização da imagem nas redes sociais, que faz parecer que todos vivem de férias, a viajar, se alimentam de pratos exóticos e passam o tempo em aventuras radicais, é o momento do confessionário. É o nome que dou a quando alguém ouve falar nos atrativos da vulnerabilidade e decide experimentar, com a mesma tónica na transparência em que se empenhava até aí – com a diferença de que o que antes era a “transparência” enfeitada do hall de entrada é agora a transparência hiperbólica da cave de horrores.

         Afinal, nem tudo eram rosas. A pessoa não estava a ser autêntica, mas decidiu assumir aquilo que era, com todos os defeitos e descalabros que tentava esconder dos outros. Percebeu intimamente o charme de se afirmar derrotada, o brilho indesmentível da humildade que não quer parecer que é, mas prepara as conclusões para os outros. Agora, a postura é de contrição, sai tudo cá para fora, com baba, ranho e o voto de absolvição fervorosa do público de followers, cujo coração torce pelo ídolo e por este seu lado tão humano, que toca o lado humano de cada um. No fundo, não são tão diferentes assim.

        E no entanto… Esta prática emocionada e indiscriminada da “vulnerabilidade”, ao estilo reality show, deixa a mesma sugestão de fake do que as anteriores máscaras do poder - a mesma sugestão que sempre senti quando alguém tentava aplicar o esquema da comunicação assertiva, expressando sentimentos e necessidades com a intenção sub-reptícia da chantagem emocional.

         Desabafo agora eu, neste momento de vulnerabilidade mimética, a repugnância instintiva que senti quando encontrei uma publicação do professor espiritual Jeff Foster, que passava na altura por uma fase crónica da doença de Lyme, exteriorizando um pânico que várias vezes o tentou ao suicídio. O título da publicação era “Will you remind me of my own teachings?”, a única parte que senti honesta em toda uma ode à vulnerabilidade, à abertura, à autenticidade e à transparência – termos que se acompanham muito, mas que têm uma essência mal compreendida. Entre o elogio das virtudes de dar a conhecer sem vergonha o inferno por que passava, revelava que não queria morrer, embora às vezes também sentisse o desejo conflitante de morte. Desde o “There’s no shame in crying out to your God when you’re on the fucking cross” até à derradeira confissão (“The ‘Fuck it’ becomes stronger than the ‘Namaste’”), os palavrões vão pontuando a poesia deste que se desespera na perspetiva de dar de caras com a morte (introduzo já aqui o spoiler de que o autor em questão recuperou, se encontra bem e foi recentemente pai).

         Dois dos grandes avatares da espiritualidade do século XX e de todos os séculos, Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj, morreram de cancro. Len-ta-men-te. O autodomínio que manifestaram é em tudo avesso à atitude que a publicação anterior deixa transparecer. Tiveram não só a dignidade de sofrer em silêncio, mas a capacidade de transcender a dor e o corpo. Quando procuro um professor, uma figura exemplar e conhecedora que me ensine a limpar a minha cave de horrores e a mudar-me para o andar de cima, não espero que essa pessoa seja como eu: espero que seja melhor. Mesmo que na condição humana não haja absolutos, há comparativos de superioridade. Por isso, espero-os um pouco mais invulneráveis do que eu. Espero que me mostrem aquilo que posso ser e não que tenha de ser eu a lembrá-los daquilo que ensinaram.

 

16
Ago24

Deus-Ikea

Sónia Quental

           

         A designação não é minha, mas de um artigo de Pedro Saraiva Ferreira sobre as novas espiritualidades que vieram substituir a religião – uma religiosidade de consumo, que o autor classifica como um “Cristianismo sem Cristo”, à imagem do Homem psicológico, que nasceu para ser feliz, indiferente à ideia de salvação. Guia-o uma busca pelo sagrado que segue o modelo “faça você mesmo”, à semelhança dos móveis do Ikea.

         A única coisa que tenho contra os móveis do Ikea são as arestas cortantes, as bicadas que às vezes dão e ter de pedir a outra pessoa para os montar. Não sou essa mulher emancipada que se diverte em noites de insónia agarrada aos hieróglifos de manuais de instruções e a dezenas de parafusos, peças, pecinhas e objetos de natureza incógnita, com uma pequena chave como varinha mágica, capaz de encaixar tudo no sítio.

         No entanto, serve-me a comparação para defender que, no que toca à busca do sagrado, não há como escapar ao DIY: cada um tem de redescobrir a roda, levantar a própria cama. Podemos formar comunidades, reclamar com o bot do atendimento ao cliente, pedir orientação a quem já montou a sua ou vai mais adiantado, mas serão sempre nossos os braços e as mãos, a irritação solene, a paciência ao limite, os momentos de epifania, as misérias, a glória.

         Quem faz questão de montar um móvel sozinho, sem os selos de autoridades externas, embalados em dogmas ossificados, não procura necessariamente os atalhos enganosos da autoajuda nem está preocupado com garantias de bem-estar. Tem como fito o Profundo, que quer conhecer e amar, um palmo de cada vez, na aspereza salgada da pele. Não anda em busca das "opiniões certas" que o colunista do Observador opõe à tentação do relativismo ou à fantasia das preferências pessoais – nem sequer lhe interessam opiniões, que não entram no túnel estreito que se vai abrindo com o peso do corpo no chão, os olhos sondando o céu, o punho esfolado de vontade.

         Não vejo Felicidade que não seja salvação.

 

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Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

07
Ago24

A brasa e a sardinha

Sónia Quental

 

         Se o jornalismo alguma vez teve pretensões de isenção e objetividade, a falta das quais era com maior ou menor habilidade disfarçada, essa tentativa desapareceu sem deixar rasto. Basta passar os olhos pelos títulos das notícias em destaque – que classificam sem hesitar os participantes de protestos como sendo de "extrema-direita", "racistas" ou o já clássico "negacionistas", em contraponto à reverência religiosa com que recitam os dogmas de uma qualquer seita de "especialistas" – para se constatar que as preocupações deontológicas não estão na ordem do dia.

         Na mesma medida em que, nos últimos anos, foram surgindo novos mecanismos e pretextos de censura, acompanhados da inauguração do cargo delirante de fact-checker, a manipulação das notícias é perpetrada às claras pelos grandes órgãos de comunicação social, responsáveis pelas manobras de desinformação de que eles próprios acusam os indivíduos e grupos que não se cansam de rotular. A chave de leitura é dada logo no título da notícia, não vá a perspicácia falhar ao leitor: são indivíduos de extrema-direita, a única explicação para um comportamento de uma bizarria que fazem questão de esquadrinhar, motivada em ideais patológicos, de rejeição dos direitos humanos e do bem comum.

         Na sua fase emergente, este ambiente encontrou resposta nas novas tecnologias da comunicação, que criaram os meios para o aparecimento de canais alternativos ao mainstream, abrindo novas formas de acesso à informação, que deixou de ser monopolizada pelos jornalistas profissionais. A internet deu direito de antena a YouTubers, autores de podcasts e canais independentes, que vieram colmatar a falta de fontes de verdade confiáveis. Mas também na arena do alternativo a parra é mais do que a uva, acabando este por assumir os contornos de um segundo mainstream, nalguns casos tão tendencioso e excessivo quanto aquele de que tenta demarcar-se.

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         As novas plataformas da informação dirigem-se hoje a um cidadão mais escolarizado, que as procura para se educar e estabelecer comunidades em torno de uma afinidade de interesses. É neste meio que se afirma uma plêiade de coaches e gurus autoungidos, dotados do carisma inoxidável da certeza, e de seguidores da mesma lavra, que absorvem com facilidade o hábito disseminado da rotulagem. Além da máxima irónica do "não julgamento", tornou-se corriqueiro o manejo de termos como "tóxico" ou "narcisista", que a pessoa comum aplica com ligeireza às relações pessoais. "Estava numa relação tóxica", explica aquela que se apresenta como vítima sem precisar de o dizer, depreendendo-se com naturalidade que não tivesse participação na dinâmica que assim descreve. Invariavelmente, o outro era um narcisista, com todo um jargão associado à condição que o locutor domina como especialista declarado.

         Torna-se claro que a quantidade e a velocidade da informação, com o empurrão da evolução tecnológica, não se fizeram acompanhar de uma maturação humana comparável. Os grandes media já não são soberanos, agarrando-se com tenacidade à réstia de controlo que ainda têm sobre a opinião pública, que procura emancipar-se e tornar-se mais expedita no acesso à notícia, bem como ao que já é vulgo designar-se "conteúdos". Neste imenso mar de sargaço, cada um aproveita o que lhe convém, que o mesmo é dizer "puxa a brasa à sua sardinha", técnica de antanho agora em formato rich media.

         Às alucinações privadas, não faltam meios; às coletivas, não faltam estímulos. Alguns sugerem que a solução passa por deixar de comer sardinha. Outros trocam receitas. Outros ainda querem reparti-la em partes iguais, desde que não fiquem com as espinhas. Os cautelosos lembram a toxicidade dos mares e o mercúrio do peixe. Rui Moreira quer instalar câmaras, para que ninguém tente pôr a mão à sardinha, enquanto obriga os renitentes ao voto. Os sabichões citam de cor Einstein, pregando que a solução não está ao nível do problema. Os evoluídos franzem o sobrolho, porque não se deve dizer "problema", mas "desafio", e os desafios são oportunidades. Oportunidade não perde Elon Musk, que ora pela sardinha enquanto lhe liga o cérebro à nuvem e se faz dono de céus e oceanos. Os extraterrestres ficam-se pelas pipocas.

 

Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

01
Ago24

Macadâmia

Sónia Quental

 

Wanderer am I.

A misfit, perpetual freelancer in someone else’s world.

John J. Falone

 

 

         Normalmente, não quero escrever. Quero, mas não quero, até que uma das forças leva a melhor e acaba por me arrastar até à página em branco. Hoje, a resistência era maior, por me ver empurrada em simultâneo para a mesma sala de espera, a mesma senha e cadeira, a mesma gravata, desta vez num pescoço de mulher. O computador já não era o mesmo, mas usava astúcias gémeas para surripiar a atenção das mãos que o manuseavam, menos coniventes do que as do funcionário que me atendeu em fevereiro, desculpando-se profusamente pela demora.

         A suavidade submissa da voz derrapou por breves instantes do guião quando, ante a minha renitência em aderir a produtos de investimento a longo prazo, me disse que também tinha sido freelancerdesigner, mais propriamente, agora convertida ao ar condicionado que a obrigava a usar fato de inverno no pino do verão e a desviar-se dos olhares fulminantes dos clientes à espera de vez. A centelha foi breve, mas inconfundível.

         Quando vinha embora, subindo a mesma rua tórrida que subo desde o princípio dos tempos, vi desenhar-se um padrão: o das criaturas com que me tenho cruzado que abandonaram a área criativa em que se formaram ou se expressavam (poetas, pintores, terapeutas, designers) para irem parar à banca ou ao setor imobiliário. Ora por quererem constituir família ora por já não conseguirem suportar a vida na corda bamba ou no fio da navalha, sem rendimentos certos, sem saber se o mês vai ser de vacas gordas ou magras, sem poder fazer planos, que o mesmo é dizer: vivendo sem garantia. O desgaste acaba por levar a melhor, reforçado pelos ecos de quem nos quer bem e vem ensinar a sabedoria de que o mundo não é para sonhadores.

         Achando-me num desses frequentes momentos de paralisia em que tento fazer ouvidos moucos à matemática do futuro, descubro-me a pensar sobre vocações e destinos. E a arriscar que vocação é mais do que dom: é quando não se tem mais para onde ir. É quando todos os caminhos vão dar ao mesmo sítio e na frente está um abismo. Mais do que não capitular ou do que resistir, é saber que não há fuga possível.

         Assistindo ao desespero e à debandada instigados pela pressão da IA, o que lamento são as almas perdidas para as falanges cinzentas da certeza, porque a farda que se enverga por fora se infiltra nos poros e raros são os que entram no sistema e permanecem ilesos.

         Na revisitação que costumo fazer de leituras passadas sobre a espiral dos temas que me assombram, fui dar com um termo desconhecido: “pronoia”, definido, num sentido positivo, como o oposto de “paranoia” e em torno do qual Rob Brezsny escreveu todo um livro - a pista de leitura que me desanuviou o espírito. Consta que o autor é astrólogo e escreve horóscopos inspiradores, segundo o princípio da benevolência do universo. Fui ver o meu para hoje, que aqui deixo em tradução, para propagar esta nota de inesperado alento e leveza:

Setenta por cento das nozes de macadâmia em todo o mundo têm o mesmo antepassado: uma árvore específica de Queensland, na Austrália. Em 1896, dois irmãos havaianos apanharam sementes dessa árvore e levaram-nas para a sua propriedade em Oahu. A partir deste pequeno começo, as nozes de macadâmia havaianas passaram a dominar a produção mundial. Prevejo que em breve terá semelhanças com essa árvore original, Gémeos. O que lançar nas próximas semanas e meses poderá ter um tremendo poder de permanência e chegar muito além da inspiração original.

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Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

11
Jul24

Olhar para o teto

Sónia Quental

 

Antes de existirem os ecrãs, olhávamos para o teto. Isto é, já tínhamos um protótipo de ecrã para estabelecer contacto à distância e dizer “Estou a olhar para o teto”. Nesses tempos, ainda não se falava de mindfulness, não sabíamos nada de meditação. O mais que podíamos fazer nas noites de insónia, além de olhar para o teto, era olhar para a lua ou tentar adivinhar que música ia passar na rádio, numa altura em que ainda não tínhamos sido expropriados dos poderes telepáticos, que funcionavam com uma eficácia acima da média – um indício de que talvez pudéssemos vergar o futuro, embora o presente fosse mais difícil de deslocar.

A ideia de uma tão grande tela em branco, como o teto ou o futuro, assustava o nosso despreparo, mas merecia ser contemplada, não fosse apanhar-nos de surpresa enquanto fazíamos de conta que a vida era sempre em frente e que bastava acertar num curso com saída para se apanhar a via rápida. Literatura, filosofia, teologia, artes não faziam parte da lista.

A nossa era uma terra pequena – nós habituados a caminhar carregando orbes debaixo do sol. Conhecíamos os caminhos difíceis, embora não tão difíceis quanto os das gerações anteriores, que faziam questão de nos lembrar os seus pés descalços na neve e o leite que vinha da ordenha quando eram magras as vacas. Ainda havia férias grandes, momentos parados em que a vida nos obrigava a pensar nela, a procurar palavras que captassem as nuances de uma angústia existencial em que alguns ficaram a morar para sempre: presos no teto, onde ainda flutuam.

Iniciados na poesia, era incompreensível a pressão e a expetativa de quem nos queria ver simplesmente funcionais na sociedade, sem destoar demasiado, a não ser pelo lustro ou um lugar de influência. O sustento assegurado. Tanto martelaram que houve quem encaixasse por fora, mas ficasse perdido por dentro, eterno Peter Pan que não encontra saída da Terra do Nunca.

Olhando hoje ao redor, com a escalada da violência e a fragilidade quebradiça da saúde mental, oferecem-se-me duas explicações: é de quem nunca olhou para o teto ou nunca saiu de lá, rodopiando à toa na Terra do Nunca, os olhos fechados em caixão de vidro. Um beijo que nunca chega de fora.

 

03
Jul24

Cupão nosso

Sónia Quental

           

Produtos, serviços e aplicações marcham ao ritmo do tambor do inevitável, rumo à promessa das receitas de vigilância sonegadas aos espaços ainda selvagens que designamos por ‘a minha realidade’, ‘o meu lar’, ‘a minha vida’ e ‘o meu corpo’.

 

Shoshana Zuboff

 

 

Resisti até onde pude aos cupões e às apps que em toda a parte somos aliciados ou intimados a instalar no telemóvel. Afogado em impostos, o Português vive para os descontos, a validar e-faturas na internet, na esperança de ser um dos felizes contemplados no sorteio da Fatura da Sorte, e a colecionar cupões de supermercado e combustível. Agora, são as campanhas renovadas das lojas online, que nos acenam com descontos perpétuos, já não limitados às épocas de saldos, e embustes descarados, que não perdoam a quem não lê as letras miudinhas e se deixa ofuscar pelas imagens (como eu, que quis encomendar um jogo de lençóis e recebi UM lençol, como se fosse dormir enrolada nele, qual mortalha florida).

Não faltando motivos de distração, contar cupões é mais um, com um peso a não menosprezar, atiçando com a sugestão de um ganho, por mais pequeno que seja, o nosso instinto de sobrevivência e vaidade. O tempo, a energia e a atenção que a atividade consome não são perdas sujeitas a balanço. Por outro lado, as vantagens de termos todo um historial de compras gravado numa app, que é preciso instalar se queremos beneficiar de descontos exclusivos, esconde uma sombra que o ingénuo não aceita ver enquanto a ameaça não se tornar esmagadora e impossível de repudiar. O termo “grátis” é o “Abre-te, Sésamo” que lhe faz brilhar nos olhos a gula incontida, tal como a autoimportância, alimentada pelas promessas de relevância e personalização.

À distração amena criada pelos cupões vem juntar-se a utilidade, para os proprietários, da extração de dados dos utilizadores das apps. Cercados por câmaras no mundo físico e com as nossas atividades diárias cada vez mais rastreadas, decantadas e espremidas no virtual, o lucro comercial é apenas o objetivo mais imediato das marcas, que são as primeiras a beneficiar das novas formas de vigilância que a tecnologia põe ao seu dispor. A previsão, o controlo e a manipulação comportamental são a derradeira meta deste assalto gradual, que nem sentimos, de tão manso que é. Agradavelmente persuadidos a abdicar de uma autonomia e liberdade que nunca chegámos a conquistar, são sempre estas que estamos dispostos a entregar em troca de pontos ou de meia dúzia de patacos, quando não da ilusão de segurança. A isto nos conduziu o livre-arbítrio, fonte de orgulho dos donos de opiniões, que trabalham para engordar os aglomerados de dados que fazem os mosaicos da estatística do Big Data, parente do Big Brother.

Quando me lembro da estátua O Pensador, de Rodin, tão distante dos reflexos desta modernidade, inclino-me a achar que o indivíduo esculpido está a tentar decidir que cupão vai usar primeiro ou que aplicação vai apagar do telemóvel, porque já não tem espaço para mais. Não são tarefas pequenas.

 

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A pensar nos cupões (versão femme)

 

2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

23
Jun24

São baratas, senhor!

Sónia Quental

           

Não é preciso ser-se entendido em culinária para se saber que nem todas as batatas casam com todos os nabos. Tendo padecido do afã que muitos sentem em reunir a maior diversidade de vegetais para tornar a sopa mais nutritiva, a dado passo fizeram-me notar que ficava descaracterizada. Falava-se literalmente de sopa, mas, sabendo agora como a culinária se presta às mais ricas metáforas, não deixo que se percam por desatenção.

E quem diz “sopa” podia dizer “salada”. Há alimentos que não convém misturar, porque fermentam e são nocivos para o organismo. Não obstante, não só tentam acenar-nos com a ideia de que, quanto mais variados os ingredientes adicionados à salada, melhor, como insistem em que não há fruta podre – se houver, a culpa é do caixote em que não foi devidamente aclimatada. Com jeitinho, a culpa se calhar até é minha. Sou assim animada a contrariar as evidências dos sentidos, incluindo o mau cheiro do pomo, o bolor que o devora, a minhoquinha embutida, dedicada às lides da mineração. Apontar semelhantes indícios é agir de má-fé, motivada por preconceito xenófobo ou racista, e incorrer em discurso de ódio contra a manga que vem de avião.

É assim que, ensinados a ignorar o óbvio e a atribuí-lo aos delírios da imaginação, quando não à perfídia dos instintos, acolhemos de braços abertos o exotismo vegetal, num caos que não é estranho ao nosso mosaico humano crescentemente eclético, zeloso do mito do bom selvagem. Catequizados que somos a não fazer julgamentos, temos como pobres vítimas os assaltantes e agressores que montam operações aqui na zona, mais sujeitos, nós, a receber uma qualquer acusação de crime de ódio – ofensa capital –, que logo nos encosta à extrema-direita, remédio santo para calar as mentes teimosamente fechadas à diversidade.

A quem não gosta de julgar pelas aparências, aconselho a que se guie pelo cheiro: esse, como o algodão, não engana. Foi pelo cheiro que um grupo de indivíduos de determinada nacionalidade montou arraial aqui no prédio: primeiro, era o odor corporal dos próprios, que tornava a partilha do elevador experiência penosa. Depois, o cheiro intenso da comida que cozinham às 4h e 5h da tarde e que se foi alastrando do último andar para baixo, invadindo o interior dos outros apartamentos. As visitantes mais recentes foram as baratas, que, quando fui pesquisar à internet, descobri serem um inseto cosmopolita, o que me causou uma certa inveja.

São dez pessoas ao monte, ou quase, num T1 transformado em chiqueiro, no meio das baratas que devem ter domesticado e que agora marcham sem cerimónia pelos restantes andares, no seu garbo conquistador, mais velozes ainda do que o cheiro. Não há rainha, santa ou não, que venha e se atreva a dizer: “São rosas, senhor, são rosas!”. Não, nem rosas nem flor que se cheire: são mesmo baratas. Eu cá já sonho com elas, enquanto me fustigo pelo anseio retrógrado de habitar em ambientes salubres, à cata da semente de ódio que há em mim, real fonte de infestação.

Um consolo me resta quando for sitiada: a sofisticação de viver num prédio multicultural.

One professor of race relations, Bikhu Parekh, has even suggested that Britain should change its name, which has so many negative historical connotations for millions around the world. Now that Britain has become so ineradicably multicultural, he says, there is no justification for it to be ‘British’ any more.

Theodore Dalrymple

 

15
Jun24

Para sempre

Sónia Quental

           

Torna-se claro que vivemos no fim dos tempos quando já não é de uso dizer-se “para sempre”. Se a rotação da Terra desacelera e os dias crescem, contra a impressão de aceleramento que a maioria informa, só os ingénuos ainda trazem na boca juras eternas. Os ciclos passaram, de séculos, a meses, dias, horas, cortados em descontinuidades cada vez mais curtas. Somos seduzidos com o mantra do momento presente como antídoto contra os corredores da memória, onde o futuro também tem quarto. Há que apagar os vestígios da cronologia, ser-se pessoa sem sombra na vertigem do instante, que não poupa noites à insónia.

No piano da estação de metro, alguém toca a “Canção de engate”, de António Variações, que me entra sempre na cabeça. Resisto ao ímpeto de a cantar, pelo comezinho da letra, antítese da eternidade ou apoteose de um “agora” impostor: o amor como aventura dos sentidos, um momento em que duas solidões se entregam, sem pedir continuidades ao tempo. Que “o amor é o momento” é daquelas frases que soam bem e que fazem eco naqueles de nós que gostam de citar frases sonantes sem se demorar muito nelas – mas é frase que mente.

Quem procura o Agora para escapar ao peso do tempo, ao seu prolongamento, é aprendiz de feiticeiro, tentando com moedas roubadas comprar as dádivas da eternidade. Conscientemente, já não podemos dizer “para sempre”: entre este segundo e daqui a uma hora, podem passar eras, tudo mudar. Se estamos vivos, passamos com elas, não resistimos ao tempo: não o deixamos transcorrer, mas percorremo-lo sem reservas até acabar. Só no fim do tempo pode existir o Agora onde o “para sempre” dorme e o Amor funda o seu lastro.

 

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Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0