Dicionário de olhares
Um dos momentos mais desconfortáveis por que já passei foram os dez minutos inteiros em que fui invisível. Estava no quarto do apartamento onde morava uma amiga, com um colega dela de faculdade, enquanto ela estendia roupa na varanda. Os móveis eram menos transparentes do que eu, um corpo de que o olhar do rapaz se conseguiu desviar com tamanha habilidade que me fez duvidar da minha existência ou de que estivesse ciente da minha presença, apesar do espaço exíguo que ocupávamos e de estarmos ambos a falar com a mesma pessoa.
Estender um olhar a alguém é um primeiro sinal de reconhecimento: a constatação de que essa pessoa existe, não apenas num espaço físico, mas no mapa de um outro – um mapa que nos põe em relação. Claro que muitas vezes não se quer que essa relação ultrapasse o nível da impessoalidade e por isso há momentos em que o olhar se resguarda e evita cruzar-se com o dos outros para segurar a distância. Há olhares que não se dão porque se quer traçar um limite; há-os que se escusam para castigar – afinal, não há castigo maior do que apagar os contornos de uma presença. Mas também há aqueles que não se erguem por pura vergonha. Cobrem-se de pálpebras, não por não quererem reconhecer os demais, mas pelo medo de ultrapassarem o limiar do invisível e serem apanhados. A isso leva o sentimento de inferioridade da pessoa que torna os outros ausentes para se negar primeiro a si.
Quando olhamos alguém nos olhos, estamos a erguer a face e a dar-nos a um olhar, o que não se faz com qualquer um. É por isso que a maioria esconde o olhar atrás de véus, num posicionamento feito dos fingimentos que o trato social normalizou. Olha, mas não vê nem se dá a ver. Já manter no olhar a essência e dirigi-lo a alguém, mais do que durante um instante fugaz, é aceitar ser-se desnudado. Esse é o olhar que é, não o que se limita a mapear o território ou a criar opacidades. É também o olhar que encontra.
Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados