Desmontar relógios
Devo ter o relógio avariado. Informam-me da projeção da Morgan Stanley segundo a qual até 2030 45% das mulheres dos 25 aos 44 anos estarão “solteiras e sem filhos”, com a fotografia de uma mulher com lágrima no rosto e avisos sérios sobre o relógio biológico e a ameaça da ansiedade e da depressão. De súbito, fez-se um clarão: devem ter sido essas que vi num dos últimos sábados na rua de Santa Catarina a gritar “Não à depressão”. Olhei em volta, a tentar perceber se a Depressão estava a assistir e se estaria já suficientemente assustada com aqueles gritos que rompiam a manhã com uma energia destemida. Não lhe pus os olhos em cima, andando há semanas intrigada sobre o resultado do protesto.
Noto desde há algum tempo que as tendências progressistas que vieram dar elasticidade e abertura tanto à definição de “géneros” como às dinâmicas relacionais começaram a ser combatidas por uma forte reação tradicionalista, que exalta o casamento, a procriação e a construção de um legado familiar como valores a recuperar. Nos canais sociais dos famosos, vejo celebridades – com poder financeiro para tal – a terem ninhadas de 5 e 6 filhos. Se não são os 11 ou 12 da pobreza de antigamente, são representativos deste movimento de retorno à tradição e aos papéis que as mudanças na estrutura social vieram baralhar – um movimento que acusa a emancipação feminina e a narrativa de empoderamento desta revolução silenciosa.
Podia desdobrar aqui os motivos de haver um número crescente de mulheres em idade fértil solteiras e sem filhos – motivos esses que não se devem a escolha própria nem a uma qualquer adesão à sologamia – lembrando outras mudanças sociais convenientemente deixadas de parte. No entanto, e para não me dispersar, admitamos que seja por sua vontade. A liberdade financeira das mulheres não veio simplesmente remover a dependência de um parceiro: veio dar permissão e abrir caminhos no que antes era uma rua estreita, onde todos circulavam na mesma direção, sem possibilidade de inverter a marcha ou de escolher um sentido diferente. A vida amarrava, o estigma marcava.
Talvez a mulher tenha começado a descobrir que não vive com a obrigação de copular e procriar, que parece ser o propósito mais elevado que se atribui à raça humana, que até aqui obedeceu exemplarmente ao repto bíblico do “Crescei e multiplicai-vos”. Defender que somos programados para a “conexão e reprodução” é aceitar que apenas nos seus aspetos mais básicos e materiais essa programação biológica pode ser exercida e admitir tacitamente que o que é biologicamente programado é natural e divinamente ordenado.
Não me lembro de ter nascido com relógio no pulso. Sei que nada no curso de vida tradicional me seduz. Depois de muita solidão, sei que não há verdadeiro empoderamento que termine nela e que a dita “conexão” não parte de fora para dentro, mas de dentro para fora. Sempre gostei mais de desmontar relógios do que de acertar o meu pelo dos outros e pensar que todos os relógios funcionam da mesma maneira. Os meus ponteiros caminham teimosamente ao contrário. A mesma teimosia com que prefiro a nudez do pulso.
While on the one hand we are programmed robots, on the other – magical creatures of possibility.
Howdie Mickoski




