Pular a cerca
O stalking é a nova pornografia, a um tempo privada e social – sempre clandestina. Um hábito pútrido, a que não se dá suficiente atenção antes de chegar aos noticiários, quando atingiu proporções dramáticas e já não é possível evitar-se as consequências. Numa era em que as tecnologias nos deixam cada vez mais expostos, não se fala o suficiente sobre o stalking cibernético – tal como não se discutem subtilezas como o direito moral de acesso a conteúdos públicos por parte de indivíduos a quem se transmitiu a vontade de um total afastamento.
Com a generalização da internet e dos conteúdos digitais, é cada vez mais impraticável deixar-se pessoas para trás, no tempo e no espaço – dizer um adeus definitivo e fazer respeitar esse desejo. Porque há um motor de busca na ponta dos dedos; porque fomos colegas de escola, temos parentesco ou nalgum momento da vida nos cruzámos, há quem pareça achar que isso lhe dá direito de permanência e invasão, por mais recusas que lhe tenham sido dirigidas, verbalmente e/ou através de gestos explícitos. Vive, pois, a tentar contornar bloqueios e a pular a cerca, fazendo da perseguição carreira – o que significa que, se alguém que impôs certas barreiras quiser criar algo que lhe dê visibilidade pública, terá de arcar com os simplórios, chicos-espertos, parasitas e abutres que traz às costas desde nascença, que não largam o radar. Como se isso não bastasse, muitos – os piores – têm-se por bem-intencionados, acreditando agir para o bem da pessoa acossada e por graça de uma qualquer magnanimidade de que são dotados. A todos é comum o acharem-se simplesmente no direito, uma mentalidade prevalente, que perdeu todos os limites de exercício.
A pergunta que deixo é: se alguém tem meios de aceder a conteúdos públicos de um terceiro que já deixou claro querer distância, terá essa pessoa o direito moral de utilizar os meios ao seu dispor para continuar a violar o limite imposto? A maior parte das mentes jamais se fará este questionamento, continuando a desobrigar-se da contenção, por ter uma noção tão rudimentar do que é o respeito quanto relaxados são os direitos de que julga gozar. Afinal, se pode, deve: há que usufruir em pleno das liberdades que tem. É assim que invade e se instala em casa alheia como se fosse sua. Não havendo nada a fazer em relação ao que é público, nem uma margem de privacidade a fazer valer dentro deste vasto campo aberto, restaria o apelo à consciência – não fosse esse acessório de luxo, que os ditos indivíduos não saberiam com que moeda pagar.