"Ludus, -i"
Esta semana, ganhei um distintivo de “fã em ascensão” no Facebook. E nem o absurdo do caso nem a influência da razão conseguiram reprimir o gáudio secreto de ter recebido um galardão. Logo pensei na lógica do jogo, que já algum tempo galgou a arena das atividades lúdicas e recreativas, espalhando-se agora para lá das redes sociais.
No comércio e no trabalho, os distintivos, prémios, pontos e incentivos da chamada “ludificação” propõem-se aumentar as vendas e fidelizar clientes; motivar, fomentar a produtividade e estimular soluções criativas, com o apelo aos sortilégios do storytelling. Mas se, como n’ As Mil e Uma Noites, há histórias que ajudam a adiar a morte, outras há que iludem a vida – e o mesmo se pode dizer da mecânica aparentemente inofensiva da narrativa e do jogo, capaz de despertar o envolvimento, prender a atenção e potenciar a criatividade através do desafio e da competição. Se há momentos em que encarar a vida como um jogo contribui para aligeirar o peso e a excessiva seriedade com que a levamos, não deixa de me inquietar este ambiente de perpétua ligeireza que se generalizou, com a infantilização crescente dos adultos e a necessidade de doses constantes de diversão.
Adotar o jogo como motivador da aprendizagem ou do trabalho muito depois dos primeiros anos formativos é desdobrar um cenário omnipresente de simulação e hiperestimulação, em que nos vamos alheando cada vez mais do real (com todas as aspas que a palavra merece), o que os gadgets de que já não prescindimos estão preparados para facilitar.
Não considero que um empregador ou cliente tenha o dever de me motivar para o trabalho. Da mesma forma, também não gostaria de ser tratada como peão num tabuleiro de estratégia ou cavalo de corrida que recebe vergastadas jocosas para cruzar a meta à frente dos outros, recompensado com uma guloseima enquanto ganha fôlego para o próximo circuito e o próximo galardão espirituoso.
Por falar em espírito, houve uma comunidade com essa vocação que acompanhei durante alguns anos em que havia um coro que atuava nas cerimónias públicas. O efeito exaltado dos coros sempre me provocou arrepios, mas trago este à baila pela particularidade de o público ser desencorajado de aplaudir no final de cada música. A razão para tal era subtrair ao culto da personalidade, para que a tarefa pudesse ser ofertada como serviço.
Um dos ensinamentos que muitas vezes ouvi nas palestras daquele grupo era a importância de se trabalhar sem olhar aos resultados – isto é, fazer o que fosse necessário a cada momento, o melhor possível, sem julgar os frutos aparentes, que haveria que entregar a uma sabedoria maior.
Na sociedade, esse espírito de serviço desapegado vai caindo em desuso, a menos que assuma as formas distorcidas da caridade ou do ativismo social. O trabalho faz-se para a recompensa e as insígnias – de preferência, com alguma animação à mistura. Se as medalhas de participação sempre foram de pouco consolo, têm agora uma palidez sepulcral.
(Dornes, Portugal - 2017)
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