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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

30
Set23

O anti-herói

Sónia Quental

 

(…) o meu problema é que o conselho dos gregos era ‘conhece-te a ti mesmo’ e o que hoje os gurus da autoajuda dizem é ‘ama-te a ti mesmo’. No meu caso são dois conselhos incompatíveis. Porque eu ou me conheço, ou me amo. As duas não consigo. Em princípio, depois de me conhecer não dá para o amor.

Ricardo Araújo Pereira

 

O humor é um meio de nos distanciarmos ou recontextualizarmos os acontecimentos da nossa vida. É uma forma de não nos levarmos demasiado a sério, de ‘encarar o mundo com ligeireza’. 

David R. Hawkins

 

 

           

O culto do herói vai-se revezando com o do anti-herói. Se, por um lado, a autoconfiança continua a ser apregoada como o atributo mais cobiçado em ambos os sexos, há os que fazem predicado maior da falta de confiança ou de uma alegada falta de capacidade. De há alguns anos para cá, vários humoristas, atores e figuras mais ou menos públicas têm chamado a atenção pela paródia bem conseguida que fazem de outras celebridades e influencers, zombando de poses do Instagram, estilos de vida e da imagem de sucesso vendida pela sociedade.

Têm um humor inteligente, cultura e talento. Conseguem fazer comédia sem grande malícia, rindo de si e convidando-nos ao mesmo riso descomplexado. Levam-nos a reconhecer-nos neles, maravilham-nos com a habilidade de surpreender pensamentos que nem sabemos que temos, expõem as imperfeições, a falta de jeito, os momentos de insegurança e deselegância e as quedas em desgraça, num mosaico reinventado da Bridget Jones que vive dentro e às vezes fora de nós. A sua atuação consiste em pôr a nu atos falhados, elegendo como tema o fracasso, em vez do sucesso, chegando a atribuir o próprio triunfo à sorte ou ao acaso e desviando-se dos elogios como se de balas à queima-roupa.

Dizia Ricardo Araújo Pereira, em entrevista a Mariana Cabral, que os modelos de virtudes não fazem comédia. Importa, porém, notar que nem todos os momentos são de comédia e que mesmo quem dela se ocupa deve nalgum momento sair do papel e mudar de registo. Às tantas, aquilo que desarma e encanta pela genuinidade transforma-se numa máscara que os humoristas já não conseguem tirar para ter dois minutos de conversa séria, sem contar piadas, cair no sarcasmo compulsivo ou em tiradas autodepreciativas. Aquilo que num primeiro momento faz rir, descontrai e gera o conforto da comunidade, ao fim de algum tempo acaba por desassossegar – afinal, não saímos ilesos do confronto permanente com o nosso lado mais raso.     

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Lembra-me as feiras de aberrações. É como alguém que tem um defeito físico, o destapa, passa o tempo a apontar para ele e a rir, convidando os outros a formar um coro de gargalhadas, apenas para se antecipar a quem pudesse fazê-lo primeiro. Ridicularizo-me para desmanchar o jogo dos outros e não ser posto ao ridículo por eles, chegando ao ponto de concorrer ao troféu do mais enjeitado, de quem merece menos o reconhecimento que tem. O valor da exemplaridade é substituído pela exibição das pústulas e do sucesso que bateu à porta errada. Pergunto: será que é apenas a torpeza que nos humaniza e faz com que os outros se identifiquem connosco? Não haverá um limiar além do qual essa humanização se torna insincera e se transforma, também ela, em desumanização sórdida?...

Trigueirinho, que, apesar das dezenas de obras publicadas, continua um grande desconhecido fora dos círculos esotéricos, demolia muitas vezes o conceito de autoestima, tão caro à psicologia e à indústria da autoajuda. Em concordância com a confissão de Ricardo Araújo Pereira em epígrafe, dizia ele que, se o ser humano se conhecesse, não acharia nada de que pudesse gostar. Citava a esse respeito o famoso trecho da carta de S. Paulo “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” para transmitir que nem com as melhores intenções acertamos no alvo. Mas não se ficava por aí, assumindo que não haveria nada de superior ou de salvável no Homem. Dizia que, se o melhor de nós não era nosso, não deixava de existir e devia ser ativamente buscado. Era a esse núcleo interno e a esse bater de caminho que o nosso amor devia dirigir-se, para que as suas qualidades se expandissem e transmutassem um ego solidificado não só pelo engrandecimento pessoal, mas também pelo rebaixamento. Gostava ainda de citar Padre Pio, que terá dito que, numa ordem inversa à humana, as coisas divinas (como esse ser interior) precisavam primeiro de ser amadas para só então serem conhecidas.

A redenção pede mais do que assumir o papel de bode expiatório ou do que um mea culpa em loop: o reconhecimento do fracasso pessoal é apenas o primeiro passo – não um ringue de patinagem ou um museu de horrores com as portas escancaradas. Esconder compulsivamente as virtudes e ceder palco aos defeitos não é muito melhor do que pôr o verniz da autoconfiança e fingir qualidades que não se tem – é apenas o lado B da cassete, uma outra forma de vaidade. Se a consciência da própria falência lembra a humildade e ensina a compaixão, redimensionando a importância que nos damos, não é a nossa realidade última ou uma a que devamos reduzir-nos.

Bem administrado, o riso continua a castigar costumes, mas o repisar do feio desfeia-nos e deforma-nos. Atribui o mérito à obra do acaso, esconde a beleza interrompida que se entrevê no humorista, o heroísmo que talvez inspirasse. Sob o pretexto apenso da autoaceitação, mantém-nos seres rasteiros, a chafurdar perpetuamente no próprio lodo, adotando o escárnio como modo de vida. Pior do que anti-herói é ser-se um herói relutante, porque é desdizer uma sabedoria maior. E, se há lição que todos os heróis aprendem ao longo das suas tribulações, é que, mesmo quando se dá luta ao destino, não se passa ao largo dele.

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

24
Set23

O Olho que tudo vê

Sónia Quental

 

No entanto, a cultura atual funciona em bases diametralmente opostas, nas quais o exibicionismo vulgar, a perda da intimidade e a consequente destruição da profundidade estão na ordem do dia.

Maurício Righi

 

A consciência cósmica é substituída pela vigilância social, a percepção do absoluto, pela acrobacia cerebral. Daí resulta uma desidratação progressiva da alma, uma penúria espiritual mais apavorante que a fome.

Arthur Koestler

 

 

 

A pornografia da arte a propósito da remoção de estátuas e a evocação da exposição pretérita Noites Brancas, de Julião Sarmento, coroando a notícia recente do Happiness Camp aqui próximo. A reedição providencial da Beleza de Roger Scruton. Estudos que me permitem continuar a debruçar sobre o masculino e o feminino, interrompidos pela notícia de que quase um terço dos norte-americanos com menos de 30 anos seria a favor da instalação de câmaras dentro de casa.

Se em tempos não acreditava no acaso, hoje já não sei, mas isso não impede que me proponha o desafio de unir as notas aparentemente soltas das últimas semanas e de tentar dar-lhes coerência ou descortinar as relações possíveis entre elas.

Incumbiram-me, em 2012, de levar turmas em visita a uma exposição patente em Serralves: Noites Brancas, de Julião Sarmento, um artista de quem nada sabia e de quem preferiria nada ter ficado a saber. Expor adolescentes à crueldade mórbida e à obscenidade daquela “arte”, por mando de quem vê em toda a cultura instrução vantajosa, foi tarefa aflitiva, que não tentei explicar aos alunos, porque não havia como. Apesar de pouco conhecedora das artes plásticas, diviso nelas a mesma tendência da literatura deste início de século, sobretudo a poesia, que se cose de vísceras e do lado mais pútrido da matéria, no rebaixamento do humano à sua dimensão animal, acometida do desejo gratuito de chocar. No entanto, é esta que merece consagração e que não se pensa em remover da vista pública. Como acusa Zan Perrion, “The symptom of the modern times is that we've turned our face away (...) from beauty. And we celebrate ugliness”.

Não foi apenas o sentido estético que se inverteu, mas a importância que se lhe dá, aventuro que pela relação que a Beleza tem com o transcendente, que, se ainda se inscreve na cultura, é como tradição morta ou fantasia New Age. O questionamento existencial foi substituído pela exploração macabra do excremencial e pelo livre curso dado às ambições demiúrgicas do indivíduo, que não se coíbe de patentear urinóis artísticos e Frankensteins humanos.

 

É possível caracterizar a recaída geral de nossa cultura, rumo à contemplação de formas e conteúdos crescentemente dionisíacos, como uma consagração filosófico-estética de ‘princípios desumanos’. Nesse sentido, o movimento das artes plásticas, em sua depravada hostilidade contra o belo, surge como paradigma dessa degradação.

Maurício Righi

 

       Depois do ataque ao sexo masculino, é a vez de a mulher, representante da Beleza e do Mistério, ser anulada enquanto tal e na nudez que a revela mulher – a menos que seja o tipo de nudez que lhe expõe os fluidos e a decadência da carne.

 

Percebe-se (…) uma rendição incondicional ao biológico em sua faceta decadente e fragmentária, uma vez que o biológico tende, em seu processo orgânico, e de forma inexorável, ao desgaste e à decomposição, junto à correspondente perda de unidade orgânica e harmonia estética.

Maurício Righi

 

 

As forças de decomposição da cultura e da arte, a erosão do género e o materialismo tonificam a apoteose pueril do sucesso, do consumo e da felicidade, concorrendo todos para a exteriorização e a superficialidade do pensamento. Aqui se insere também a influência do New Thought, da psicologia positiva, do coaching e dos movimentos sociais da berra, com as suas fórmulas light, visando substituir moral e religiosidade pelo conforto de lemas progressistas, forçando um falso sentido de harmonia e contentamento que tenta iludir a razão, levando-nos finalmente a repetir que 2+2 = 5.

No entanto, “Na falta de eficientes modelos de transcendência, dos quais dependem as felicidades duradouras, a cultura e as pessoas tendem naturalmente ao vazio e, consequentemente, à infelicidade” (Maurício Righi). O mesmo horror ao vazio, a insegurança, a incapacidade de estar só e de cultivar a solidão que faz com que muitos acendam a televisão desde o raiar do dia farão também com que esses, complacentes com as câmaras que crescem como cogumelos fora de casa, também as queiram instalar dentro. As câmaras e a vigilância tornaram-se o Olho desfigurado da transcendência, a relação que subsiste com o Invisível, despido de Mistério e ao serviço da ordem social, que apenas o sacrifício humano pode aplacar.

 

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Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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