"Twilight Zone"
Live in Mordor too long and you come out looking like Gollum.
Neil Kramer
Some people have the idea that, if something is legal, it’s moral. (...) That's what government does: it tries to make the immoral moral by giving it the blessing of legality.
Thrive II
Não tendo atividade comercial nem envolvimento direto na utilização de espaços públicos para outros fins que não a locomoção, há realidades deste mundo que me passam ao lado. Talvez por isso ainda me escandalizem os atos de bizarria que se revestem de normalidade.
O dia em que perdi a inocência foi quando soube que aos meus pais, que tinham um estabelecimento comercial, era pedido o pagamento de uma taxa anual à Câmara por terem o reclame luminoso a fazer publicidade para a rua (!). A segunda vez deu-se no início deste ano, em que me proibiram de ser fotografada no mercado do Bolhão, explicando que era preciso enviar requerimento à Câmara, que o fundamenta no Código Regulamentar do Município pela “(…) pressão exercida na gestão da coisa pública local”. A terceira foi quando me disse uma esteticista que era obrigada a pagar licença para ter a rádio ligada e que o mesmo acontecia com as televisões nos cafés.
Neste rescaldo, e ainda atordoada pelos tentáculos do absurdo, apesar dos anticorpos mentais desenvolvidos desde 2020, chega-me um regulamento em que o Condomínio, maiusculado e tudo, como se pessoa fosse, quer ser meu pai. Pouco falta para ter de lhe pedir permissão para entrar em casa, perguntar como devo decorá-la ou em que posição devo dormir. Por falar nisso, tenho de me lembrar de questionar se vai oficializar a adoção e partilhar apelido comigo, embora duvide que me venha esfregar as costas ao banho, limpar a casa ou preparar as refeições.
Absorvida nestas cogitações, ocorreu-me o jogo infantil “Mamã, dá licença?”, com que nos condicionam desde a infância a acatar ordens arbitrárias, só porque a mamã diz que sim. Estranhamente, quando um qualquer ditame se transforma em lei, inspira nas pessoas o mesmo temor supersticioso que o sobrenatural, como se as ditas leis estivessem gravadas em pedra ou tivessem sido lapidadas nas tábuas de Moisés. Conheci gente que parecia ter uma relação erótica com os regulamentos e que aposto que os usa para se masturbar.
Nas cidades, as normas municipais conferem mais direitos aos edifícios do que às pessoas, aparecendo a proteção destas apenas como pretexto para a instalação de câmaras de rua e o assédio invisível de uma vigilância cada vez mais apertada, em que se vai perdendo o direito à privacidade e tudo se permite em nome da segurança. Prestamo-nos a esta relação paternal(ista) e perversa com os órgãos governativos: em troca de proteção, dispomo-nos a saltar quando nos mandam e a andar ao pé-coxinho ou dar passos à caranguejo quando assim determinam.
Nunca chegamos a atingir a maioridade de consciência, oferecendo a carne às molas da máquina burocrática, que nada busca além da autopreservação. Assumimos que a complexidade das leis e regulamentos esconde uma inteligência e finalidade que não se consegue enxergar entre os termos rebuscados que empregam, mas que insistimos estará por ali algures para nos protegermos do choque psicológico de um mundo em que o Mal manda só porque pode.
Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados