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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

26
Out24

Dalrymple

Sónia Quental

            

    Considerado por alguns o melhor ensaísta de língua inglesa da contemporaneidade e convidado várias vezes para o Brasil, onde a sua obra se encontra extensamente publicada e é já objeto de estudo, Theodore Dalrymple parece ainda não ter dado à costa do panorama editorial português, apesar da proximidade geográfica. É essa negligência flagrante que me faz dedicar-lhe uma entrada no blogue, aproveitando a reedição próxima do título Nothing but Wickedness: The Decline of Our Culture.

      Pseudónimo literário do psiquiatra Anthony Daniels, que trabalhou como médico em continentes estrangeiros antes de se fixar no país natal, a Inglaterra, aí atendeu durante grande parte da sua carreira a população das prisões e da classe baixa, cuja pobreza cultural, moral e social diz superar a pobreza material de países classificados como de terceiro mundo, assolados pela miséria, por conflitos civis e pela opressão política.

Dalrymple.png

        Na esteira dos grandes autores e psicólogos da literatura mundial, de entre os quais se destaca o nome de Shakespeare, Dalrymple é dos poucos ensaístas em que encontro uma profundidade de análise psicológica que, aliada a uma rara isenção e honestidade intelectual, tem um efeito simultaneamente refrescante e persuasivo. Resistindo a deixar-se ofuscar por ideações pessoais, tingidas por um emocionalismo impostor, ou a tentar ajustar a realidade a teorias preliminares, Dalrymple faz da observação minuciosa dos sintomas do universo humano com que contacta instrumento de diagnóstico da cultura e da sociedade. A lucidez da sua exposição argumentativa abre-nos clareiras no pensamento; a fina ironia e o humor que marcam a sua escrita tornam a leitura destes ensaios uma delícia que não cansa.

      Como adiantei em referências anteriores, é o autor laico mais espiritual que conheço e dos poucos que continuo a ler: assumindo-se como não religioso, reconhece o valor que a transcendência tem para a busca do significado da existência, não hesitando em utilizar a palavra “alma” quando se pronuncia sobre a condição humana, como autor eternamente fascinado pelo problema do Mal – um dos nós górdios que nos unem.

        Maurício Righi escreveu sobre ele Theodore Dalrymple: A Ruína Mental dos Novos Bárbaros, uma introdução rigorosa à obra de um pensador virtualmente desconhecido por cá, que ainda precisa de atravessar o oceano se quisermos lê-la em papel.

 

It often seems to me that the main purpose of the intellectual elite is to find theoretical reasons for ignoring what is in front of their face.

Theodore Dalrymple

 

23
Fev24

Filosofia do lixo

Sónia Quental

 

Many of the trees along the way were hung with plastic bags or the remnants of sheets of polythene that flapped in the wind like Buddhist flags on a high Himalayan plain.

Theodore Dalrymple

 

         

Fiquei a burilar durante meses numa crónica que Tiago de Oliveira Cavaco publicou no Observador a propósito das mulheres que se maquilham nos transportes públicos, gesto que se dizia tentado a atribuir à humildade. Tendo eu este atributo na mesma categoria que o Big Foot e as famílias felizes (ouvem-se relatos, mas os avistamentos são raros), a explicação ficou-me atravessada, sem que alguma vez a aceitasse por completo, pela sua ingenuidade um tanto ou quanto perra.

Tão distinta é a origem que encontro para o fenómeno que não hesito em relacioná-lo com o lixo. Na breve passagem que fiz por Londres, no último ano, a impressão que a cidade me deixou foi de tremenda deceção, em parte devido à evidente falta de planeamento urbano, ao lixo e sujidade que vi nas ruas, que me levaram a pensar que o Porto, um concorrente de peso ao novo troféu de Cidade Imunda, teria de se esforçar um pouco mais para lhe chegar aos calcanhares.

Prova de que não me equivoquei é a análise que Theodore Dalrymple – descobri-o mais tarde – tem vindo a dedicar ao tema do lixo em Inglaterra, em artigos avulsos e na obra Litter, que lhe é inteiramente votada. A cultura em que Dalrymple enquadra a prática generalizada de deitar lixo para o chão corresponde à de uma nova geração em que os hábitos crescentes de consumo de fast food e o desprezo pelas tradições familiares se aliam à apoteose de uma autenticidade e espontaneidade desregradas. O retrato pintado é de uma população bárbara que, divorciada de valores históricos e religiosos, não pode senão prestar culto a si mesma (cabe aqui a vénia ao autor, que é ateu, mas reconhece o lastro da religiosidade).

Britons now drop litter as cows defecate in fields, or snails leave a trail of slime.

Theodore Dalrymple

 

Com o espelho maior (4).jpg

Não me parece difícil encadear esta síntese com a reflexão sobre as mulheres que se maquilham nos transportes e que trazem espelhinhos consigo, como Obélix trazia o seu escudo, nesse belo paralelismo que Tiago Cavaco faz na sua crónica. Embora o nosso país viva outra realidade, aventuro que o seu desfasamento face à sociedade inglesa contemporânea já não será tanto quanto poderia imaginar-se, e o amontoado de lixo aí está para sugerir que seguimos no mesmo trilho e que não são apenas migalhas que deixamos para trás. A diluição entre as esferas do público e do privado, a apropriação abusiva dos espaços partilhados e o exibicionismo vulgar, que acompanha a perda da introspeção e da profundidade em que já aqui tenho insistido, explicam quer a desenvoltura com que certos atos, antes considerados íntimos, se desempenham agora em público quanto a forma descomplexada como o lixo e o barulho atravessam paredes, infestam condomínios e degradam cidades.         

Os espelhos que as pessoas carregam, esses, não são apenas acanhados em dimensão, mas afoitamente distorcidos. Tenho para mim que seremos sempre chamados a prestar contas de como os polimos, se os empregamos para efeitos cosméticos de ocasião, para uma contemplação narcísica ou para um real caminho de aperfeiçoamento que devolva à beleza a sua virtude. 

        

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0