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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

23
Jun24

São baratas, senhor!

Sónia Quental

           

Não é preciso ser-se entendido em culinária para se saber que nem todas as batatas casam com todos os nabos. Tendo padecido do afã que muitos sentem em reunir a maior diversidade de vegetais para tornar a sopa mais nutritiva, a dado passo fizeram-me notar que ficava descaracterizada. Falava-se literalmente de sopa, mas, sabendo agora como a culinária se presta às mais ricas metáforas, não deixo que se percam por desatenção.

E quem diz “sopa” podia dizer “salada”. Há alimentos que não convém misturar, porque fermentam e são nocivos para o organismo. Não obstante, não só tentam acenar-nos com a ideia de que, quanto mais variados os ingredientes adicionados à salada, melhor, como insistem em que não há fruta podre – se houver, a culpa é do caixote em que não foi devidamente aclimatada. Com jeitinho, a culpa se calhar até é minha. Sou assim animada a contrariar as evidências dos sentidos, incluindo o mau cheiro do pomo, o bolor que o devora, a minhoquinha embutida, dedicada às lides da mineração. Apontar semelhantes indícios é agir de má-fé, motivada por preconceito xenófobo ou racista, e incorrer em discurso de ódio contra a manga que vem de avião.

É assim que, ensinados a ignorar o óbvio e a atribuí-lo aos delírios da imaginação, quando não à perfídia dos instintos, acolhemos de braços abertos o exotismo vegetal, num caos que não é estranho ao nosso mosaico humano crescentemente eclético, zeloso do mito do bom selvagem. Catequizados que somos a não fazer julgamentos, temos como pobres vítimas os assaltantes e agressores que montam operações aqui na zona, mais sujeitos, nós, a receber uma qualquer acusação de crime de ódio – ofensa capital –, que logo nos encosta à extrema-direita, remédio santo para calar as mentes teimosamente fechadas à diversidade.

A quem não gosta de julgar pelas aparências, aconselho a que se guie pelo cheiro: esse, como o algodão, não engana. Foi pelo cheiro que um grupo de indivíduos de determinada nacionalidade montou arraial aqui no prédio: primeiro, era o odor corporal dos próprios, que tornava a partilha do elevador experiência penosa. Depois, o cheiro intenso da comida que cozinham às 4h e 5h da tarde e que se foi alastrando do último andar para baixo, invadindo o interior dos outros apartamentos. As visitantes mais recentes foram as baratas, que, quando fui pesquisar à internet, descobri serem um inseto cosmopolita, o que me causou uma certa inveja.

São dez pessoas ao monte, ou quase, num T1 transformado em chiqueiro, no meio das baratas que devem ter domesticado e que agora marcham sem cerimónia pelos restantes andares, no seu garbo conquistador, mais velozes ainda do que o cheiro. Não há rainha, santa ou não, que venha e se atreva a dizer: “São rosas, senhor, são rosas!”. Não, nem rosas nem flor que se cheire: são mesmo baratas. Eu cá já sonho com elas, enquanto me fustigo pelo anseio retrógrado de habitar em ambientes salubres, à cata da semente de ódio que há em mim, real fonte de infestação.

Um consolo me resta quando for sitiada: a sofisticação de viver num prédio multicultural.

One professor of race relations, Bikhu Parekh, has even suggested that Britain should change its name, which has so many negative historical connotations for millions around the world. Now that Britain has become so ineradicably multicultural, he says, there is no justification for it to be ‘British’ any more.

Theodore Dalrymple

 

25
Out23

Outra vez a maçã

Sónia Quental

Dizem que o diabo mora nos detalhes. Acho que me cruzei com ele por lá. No relativismo moral reinante, que nos urge a velarmos pelos nossos interesses sem escrúpulos de maior, inquietam-me as escolhas que podem fazer-me derrapar por entre as fendas da consciência. Não alimentar expetativas, não cobrar, não julgar, ser tolerante e flexível, esperando gozar da mesma flexibilidade enquanto faço o que me dá proveito, sem que possam pedir-me contas ou sequer apontar-me dívidas.

À mínima oportunidade, a serpente levanta a cabeça, convidando-me a trincar a maçã. E ei-la que reluz, coberta de pesticidas, num cabaz com o rótulo “orgânico”. Parece que tenho passado a vida a contemplar a dita maçã, mas agora a serpente reuniu claque e eu fiquei sozinha a defender a árvore. A pressão aumenta. Em volta, veem-se cartazes de gente feliz agarrada à sua fruta. Faz bem aos dentes, dizem, irradiando a brancura dos sorrisos de satisfação. Prazer sem limites condensado numa mera maçã. O cabaz traz um Adão, 30 dias de avaliação grátis e benefícios premium.

Eu também quero irradiar! Quero um Adão no meu cabaz, que me pegue ao colo sem esforço e me diga que não preciso de mudar. Só tenho de facilitar e deixar de ser o pomo que gera a discórdia. A minha vida será mais simples – saem todos a ganhar! Na verdade, estarei a ser egoísta se não comer a maçã. Vai cair ao chão, estarei a desperdiçar. Serei culpada da miséria que passam os meninos em África. Quem lhes dera uma maçã igual àquela, ali à mão de semear. Se não for por mim, por eles. É pecado não comer a maçã. É o alimento do futuro e já traz a larva incorporada. Posso fazer criação e não terei de pensar mais em comida. Serei ingrata se não aproveitar.

Se comer a maçã, estarei a dar prova de desenvolvimento social. Moral é para as avozinhas. Aqui, o único absoluto é o bem coletivo. Na verdade, a maçã guarda o segredo da juventude eterna. Basta uma trinca…

Por entre o atordoamento, noto: estão uns fones ali ao lado, objeto mágico deixado por Deus ou apenas a desculpa ideal. Ao aplicá-los, ouço: “Uma maçã nunca é só uma maçã”. Nisto, a serpente cai da árvore. Ponho-lhe o pé em cima e empoleiro-me num ramo antes que a Liga dos Direitos do Animal acuda.

Com a maçã (2).jpg

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Ago23

Os bons e os bonzinhos

Sónia Quental

Os mornos são muito tolerantes. 

Fabiano Goes

 

 

E, ao contrário da beleza, da excelência, da destreza – valorizadas na Antiguidade greco-romana —, a bondade, ao aparecer, deixa de o ser. 

Sofia de Sousa Silva, in “Dos malefícios da bondade”

 

 

 

Passo a ferro numa tarde improvável de agosto, em que a temperatura – a do ar e a do ferro – me faz refletir noutros (res)caldos.

Reza um daqueles quase-poemas de Adília Lopes, não por acaso muito partilhado nas redes sociais:

 

Só gosto das pessoas boas

quero lá saber que sejam inteligentes artistas sexy

sei lá o quê

se não são boas pessoas

não prestam

 

É que, ironicamente, alguns dos grandes males que sofri e vi sofrer na vida foram praticados por pessoas boas. Algumas, por coincidência, eram sexy – artistas outras. Às vezes, inteligentes. Boas, boas é que não eram, embora tivessem o perfil e gozassem da fama.

Ouvi há dias alguém dizer com grande agudeza que uma das moléstias que mais assolavam a Humanidade era a ingenuidade. Correndo o risco de repetir o eco que fere o ouvido na prosa, direi que é essa ingenuidade que se confunde muitas vezes com bondade. É também ela que nos faz cair em armadilhas incautas quando andamos atrás do que é são e bom.

Foi animada desse desejo que procurei a companhia de pessoas que me pareciam boas e junto de quem me sentia muitas vezes diminuída, porque o meu branco era um branco muito sujo, comparado com o seu branco imaculado. Não queria apenas as que tivessem “bom fundo” – dispensava ter de pegar nos binóculos para encontrar a bondade, preferindo vê-la acenar, convidativa, desde a porta de entrada.

Mas a bondade que se pendura à porta raras vezes é o que apregoa. Chega-se dentro e a casa está às moscas, putrefacta – ou com um amontoado de bugigangas que não deixa respiro, porque o desejo de inclusão da pretensa bondade aceita tudo, sem critério. A frequente ânsia de fugir ao conflito e de não tomar posições que a comprometam com uma qualquer fação que não a neutralidade deixa-a num “não é carne nem peixe”, nem sim nem sopas, coadjuvante de uma paz podre bem mais danosa do que o conflito aberto. Aprendi cedo que quem é amigo de todos não é amigo de ninguém e cedo conheci a perversidade das boas intenções que motivam os “bonzinhos”, profissionais de um desporto a que deram o nome medonho de “tolerância”. Para meu espanto e horror, descobri também as serpentes enroladas que se escondem por baixo das mais bem-cheirosas flores.

Nas canas (2).jpg

A verdadeira bondade não é uma qualidade estática, previsível ou programável. Não tem doutrina e, por não ser dotada de traços fixos, nem sempre é reconhecível a olho nu. Já a integridade, que prefiro à bondade e que está menos na moda, emite à distância o vigor que falta à última. A integridade não oferece descontos vitalícios e indiscriminados, como a bondade, em que a época de saldos dura o ano todo. Inerentes à integridade são a honestidade, a exigência e a verdade – consequentemente, o Amor. A integridade é fiel à consciência, que procura ativamente desenvolver, não ao que passa por bondade aos olhos de todos. A integridade é expressão do ser inteiro, como lembra a sua etimologia, não de um coração toldado, que acha que à bondade não faz falta inteligência nem arte.

São poucas as pessoas que praticam o oposto da bondade; da mesma forma, poucas são as genuinamente boas. A grande fatia do meio, a dos que julgam pender para o lado do bem, é a dos que facilitam o mal por aquiescência ou omissão. Basta para isso estar-se neste mundo sem um questionamento permanente de si, do próprio mundo, do que se pensa saber. Basta o espetáculo lastimável de se limitar a esgrimir opiniões sobre a política e a sociedade, sem nunca ousar ir além do mainstream.

Nas palavras de Neil Kramer, “Se, como adultos, não nos importamos com a Verdade, não nos importamos com a vida. Não dignificamos a vida”. O posicionamento que corresponde à maioria é o de não se importar com nada que não lhe diga diretamente respeito ou que ameace a sua segurança psicológica. As pessoas fogem de encontrar a verdade e de olhar para o seu abismo interior. Escolhem, deliberadamente, não ver, não saber, para não terem de agir nem de sentir a culpa por não agir. Para poderem continuar a levar a vida que sempre levaram, uma vida em que a bondade é um dos consolos que usam para se convencerem de que fazem o que podem.

Quais as verdadeiras características de um adulto? Pensar, encarnar a Verdade, expressar e transmutar a dor. (...) a maior parte do género humano não quer pensar, não quer conhecer a Verdade e não quer ter nada que ver com a dor. Essas são coisas a evitar.

Neil Kramer

 

Mas não pode haver bondade onde a complacência e a mentira sejam escolhidas como modo de vida, sendo a mentira o que marca distintamente a maldade, como propõe M. Scott Peck na obra Gente da Mentira, em que ensaia uma análise científica da maldade, à luz da psicologia e da espiritualidade: “Nestes últimos anos, tenho aprendido que a maldade – seja humana ou demoníaca – é surpreendentemente obediente em relação à autoridade”.

Não preciso de verbalizar, creio, o muito que se pode extrapolar daqui. Arrisco apenas dizer que a maldade também ataca pelas boas intenções e pela moral instituída. A medida que Scott Peck, secundado por Neil Kramer, sugere para a grandeza de uma pessoa – a capacidade para o sofrimento – é precisamente o que falta aos bonzinhos, que recusam ver e sofrer com aquilo que veem para se tornarem verdadeiramente bons. Estes são sempre sexy.

 

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In Azur: Welcome to Your Dark Side

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

27
Abr23

A fasquia mais alta

Sónia Quental

Escadaria do Mercado do Bolhão (6).jpg

A igualdade degenera em mediocridade.

Fabiano Goes

 

A resistência à perfeição é muito grande.

Trigueirinho

 

         

     A sensação foi de refrescante estranheza ao ler sucessivamente a biografia de dois líderes espirituais distintos, pelo traço comum de grande exigência que lhes era atribuído. Não terá sido coincidência: a pressão molesta que venho há muito sentindo, em todas as esferas da vida, é a pressão antiexigência. Na educação, na formação e nas academias, a fasquia baixa-se cada vez mais: seja para engordar números, seja sob o pretexto de inclusão e pelos casulos de fragilidade que é preciso resguardar. Nas relações interpessoais e sociais, o preceito soberano do “não julgamento” e o relativismo que nos vai afastando da noção de Verdade amolecem o critério e apagam a capacidade de discriminar. Tudo é permitido, o talento de manter relações amistosas com todos é considerado um alto predicado (ouvi repetidas vezes adolescentes e adultos descreverem a sua maior qualidade como a de serem “amigos do amigo”), a ideia de igualdade vai engolfando a noção de mérito, omitindo os níveis e as diferenças qualitativas entre as pessoas. Tornámo-nos diplomatas eméritos, com um vocabulário cada vez mais reduzido, em virtude das ofensas que as palavras carregam, e sumamente hábeis na troca de favores.

Não sei qual terá sido a primeira palavra que disse, quando comecei a falar, mas sei que fui desde cedo obstinada nos “nãos”. Com tantos a defenderem laxismos, a condenarem o que quer que entendam como manifestação de negativismo, intolerância, preconceito ou discurso de ódio, comecei a convencer-me de que devia juntar-me às turbas no afago infantilizante da autoestima geral. Devia ser uma pessoa melhor, trabalhar o sorriso postiço, a minha limitada capacidade de perdão e acreditar nas boas intenções de todos, abafando os sinais da inteligência e os clamores da sensibilidade. As palavras querem-se de simpatia e mal de mim ferir suscetibilidades ou sugerir a alguém que esteja abaixo da fasquia.

É fácil ceder a baixá-la, quando é isso que nos traz recompensas e um sentimento de pertença. É fácil ceder à ilusão de que tudo se resolve com a comunicação e uma tolerância maior – de que as diferenças se resumem a diferenças de pontos de vista, como se as divergências de opinião estivessem desligadas do desenvolvimento de consciência. É fácil acreditar quando nos ensinam que o mundo não é a preto e branco, mas uma grande área cinzenta. Quanto a mim, é o cinzento que nos oprime.

Por entre estas cogitações, ocorreu uma pequena revelação, contraintuitiva, enquanto esgarafunchava em busca de uma qualquer vocação que se tivesse revelado em criança, quando dizem que nascem as vocações: estou aqui para dizer “não”. Sem que se ilumine de imediato uma profissão em que me paguem para tal, tenho pelo menos o consolo de estar de acordo comigo mesma e de conciliar as divisões internas, feitas de vozes que teimam em ditar-me o ponto da consciência, que ainda resiste à sedução de facilitar e baixar a fasquia.

Se, como muitos gostam de argumentar em momentos de aperto, ninguém é perfeito, não é por isso que o compromisso com a perfeição deva deixar de existir – entre a exigência e a complacência, mil vezes a primeira.

 

Wind extinguishes a candle and energizes fire. (...)

You want to be the fire and wish for the wind.

Nassim Nicholas Taleb

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0