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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

06
Fev25

Confiar ou não confiar

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-02-06 121224.png

Este é daqueles textos que começo a escrever sem título e sem saber como vai acabar. Daqueles que não se aconselham, escritos sob o efeito da emoção e que pertencem à categoria do “desabafo”, que nem sempre me é simpática. Embora quem escreve se submeta a um certo grau de exposição, não tenho os blogues como diários pessoais, em que o autor possa e deva abrir o peito para o mundo e despejar neles toda a espécie de confissões, sob o pretexto do ultraje ou de uma alegada vulnerabilidade, que na maior parte das vezes não passa de emocionalismo fácil. Se há coisa que a internet nos trouxe, foi exposição a mais. Este será, pois, um caso sem exemplo, a que cedo não só para me aliviar de pesos, mas esperando que a reflexão possa servir a alguém mais.

          O advento da internet trouxe, como é sabido, muitas oportunidades de fraude, que, à medida que a tecnologia evolui, se vão tornando também mais sofisticadas. Quem utiliza a rede numa base diária, não só para fins pessoais, mas para trabalhar, expõe-se crescentemente a elas. Por mais informado que esteja em matéria de cibersegurança, ainda há uma possibilidade considerável de ser apanhado numa, devido aos riscos inerentes à comunicação com desconhecidos à distância.

        No trabalho remoto e pontual, em que não conhecemos pessoalmente o empregador ou cliente e não falta oferta de mão de obra, é fácil ser-se descartado: afinal, não passamos de um nome no ecrã, quando muito associado a uma fotografia, que ninguém pode garantir que seja verdadeira, e não há nada que obrigue o cliente além de um contrato precário. Temos nome, mas somos anónimos. É por isso que sinto a maior consideração e estima por aqueles clientes que, ao longo dos anos e mesmo enfrentando adversidades, continuam a voltar, expressando uma lealdade a que nada os obrigava. Num mundo digital onde não há laços duradouros, é extremamente comovedor receber uma mensagem cuidada de Ano Novo, com um bónus, de alguém que escolhe trabalhar comigo há 7 anos e que sei que muitas vezes tem de dispensar pessoas, por falta de qualidade no desempenho – alguém de quem não conheço mais do que a voz. Outros há de quem não conheço a voz nem a fotografia, mas que também voltam, personificando uma humanidade e integridade que se torna tentador pôr em causa com as armadilhas que vão aparecendo por todo o lado, como aquela em que caí esta semana, com prejuízo financeiro para mim.

         Podia fazer como o meu vizinho e passar a dar 20 voltas à chave de cada vez que entro ou saio de casa – a casa física e as outras. Mas, mesmo sabendo que o risco existe, também sei que não posso eliminá-lo por completo, sobretudo se quero receber as suas recompensas. No mundo do trabalho, não é só o trabalhador remoto que corre riscos, mas também os clientes, já que as fraudes existem de ambos os lados e nem sempre alguém que não fala a mesma língua que nós tem condições para avaliar a qualidade do nosso trabalho. É por isso que fico contente quando recebo e me mostro à altura de um voto de confiança. Sinto-me comovida e emocionada quando encontro pessoas que confiam e que não erguem entre nós muros de suspeitas, fazendo-me sentir culpada por crimes que não cometi.

         Hoje, escrevo e choro ao mesmo tempo. Mas amanhã levanto-me outra vez às 6. É o que faz uma mulher.

 

Imagem: baralho Rider-Waite

01
Ago24

Macadâmia

Sónia Quental

 

Wanderer am I.

A misfit, perpetual freelancer in someone else’s world.

John J. Falone

 

 

         Normalmente, não quero escrever. Quero, mas não quero, até que uma das forças leva a melhor e acaba por me arrastar até à página em branco. Hoje, a resistência era maior, por me ver empurrada em simultâneo para a mesma sala de espera, a mesma senha e cadeira, a mesma gravata, desta vez num pescoço de mulher. O computador já não era o mesmo, mas usava astúcias gémeas para surripiar a atenção das mãos que o manuseavam, menos coniventes do que as do funcionário que me atendeu em fevereiro, desculpando-se profusamente pela demora.

         A suavidade submissa da voz derrapou por breves instantes do guião quando, ante a minha renitência em aderir a produtos de investimento a longo prazo, me disse que também tinha sido freelancerdesigner, mais propriamente, agora convertida ao ar condicionado que a obrigava a usar fato de inverno no pino do verão e a desviar-se dos olhares fulminantes dos clientes à espera de vez. A centelha foi breve, mas inconfundível.

         Quando vinha embora, subindo a mesma rua tórrida que subo desde o princípio dos tempos, vi desenhar-se um padrão: o das criaturas com que me tenho cruzado que abandonaram a área criativa em que se formaram ou se expressavam (poetas, pintores, terapeutas, designers) para irem parar à banca ou ao setor imobiliário. Ora por quererem constituir família ora por já não conseguirem suportar a vida na corda bamba ou no fio da navalha, sem rendimentos certos, sem saber se o mês vai ser de vacas gordas ou magras, sem poder fazer planos, que o mesmo é dizer: vivendo sem garantia. O desgaste acaba por levar a melhor, reforçado pelos ecos de quem nos quer bem e vem ensinar a sabedoria de que o mundo não é para sonhadores.

         Achando-me num desses frequentes momentos de paralisia em que tento fazer ouvidos moucos à matemática do futuro, descubro-me a pensar sobre vocações e destinos. E a arriscar que vocação é mais do que dom: é quando não se tem mais para onde ir. É quando todos os caminhos vão dar ao mesmo sítio e na frente está um abismo. Mais do que não capitular ou do que resistir, é saber que não há fuga possível.

         Assistindo ao desespero e à debandada instigados pela pressão da IA, o que lamento são as almas perdidas para as falanges cinzentas da certeza, porque a farda que se enverga por fora se infiltra nos poros e raros são os que entram no sistema e permanecem ilesos.

         Na revisitação que costumo fazer de leituras passadas sobre a espiral dos temas que me assombram, fui dar com um termo desconhecido: “pronoia”, definido, num sentido positivo, como o oposto de “paranoia” e em torno do qual Rob Brezsny escreveu todo um livro - a pista de leitura que me desanuviou o espírito. Consta que o autor é astrólogo e escreve horóscopos inspiradores, segundo o princípio da benevolência do universo. Fui ver o meu para hoje, que aqui deixo em tradução, para propagar esta nota de inesperado alento e leveza:

Setenta por cento das nozes de macadâmia em todo o mundo têm o mesmo antepassado: uma árvore específica de Queensland, na Austrália. Em 1896, dois irmãos havaianos apanharam sementes dessa árvore e levaram-nas para a sua propriedade em Oahu. A partir deste pequeno começo, as nozes de macadâmia havaianas passaram a dominar a produção mundial. Prevejo que em breve terá semelhanças com essa árvore original, Gémeos. O que lançar nas próximas semanas e meses poderá ter um tremendo poder de permanência e chegar muito além da inspiração original.

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Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Mai24

"Ludus, -i"

Sónia Quental

Esta semana, ganhei um distintivo de “fã em ascensão” no Facebook. E nem o absurdo do caso nem a influência da razão conseguiram reprimir o gáudio secreto de ter recebido um galardão. Logo pensei na lógica do jogo, que já algum tempo galgou a arena das atividades lúdicas e recreativas, espalhando-se agora para lá das redes sociais.

No comércio e no trabalho, os distintivos, prémios, pontos e incentivos da chamada “ludificação” propõem-se aumentar as vendas e fidelizar clientes; motivar, fomentar a produtividade e estimular soluções criativas, com o apelo aos sortilégios do storytelling. Mas se, como n’ As Mil e Uma Noites, há histórias que ajudam a adiar a morte, outras há que iludem a vida – e o mesmo se pode dizer da mecânica aparentemente inofensiva da narrativa e do jogo, capaz de despertar o envolvimento, prender a atenção e potenciar a criatividade através do desafio e da competição. Se há momentos em que encarar a vida como um jogo contribui para aligeirar o peso e a excessiva seriedade com que a levamos, não deixa de me inquietar este ambiente de perpétua ligeireza que se generalizou, com a infantilização crescente dos adultos e a necessidade de doses constantes de diversão.

Adotar o jogo como motivador da aprendizagem ou do trabalho muito depois dos primeiros anos formativos é desdobrar um cenário omnipresente de simulação e hiperestimulação, em que nos vamos alheando cada vez mais do real (com todas as aspas que a palavra merece), o que os gadgets de que já não prescindimos estão preparados para facilitar. 

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Não considero que um empregador ou cliente tenha o dever de me motivar para o trabalho. Da mesma forma, também não gostaria de ser tratada como peão num tabuleiro de estratégia ou cavalo de corrida que recebe vergastadas jocosas para cruzar a meta à frente dos outros, recompensado com uma guloseima enquanto ganha fôlego para o próximo circuito e o próximo galardão espirituoso.

Por falar em espírito, houve uma comunidade com essa vocação que acompanhei durante alguns anos em que havia um coro que atuava nas cerimónias públicas. O efeito exaltado dos coros sempre me provocou arrepios, mas trago este à baila pela particularidade de o público ser desencorajado de aplaudir no final de cada música. A razão para tal era subtrair ao culto da personalidade, para que a tarefa pudesse ser ofertada como serviço.

Um dos ensinamentos que muitas vezes ouvi nas palestras daquele grupo era a importância de se trabalhar sem olhar aos resultados – isto é, fazer o que fosse necessário a cada momento, o melhor possível, sem julgar os frutos aparentes, que haveria que entregar a uma sabedoria maior.

Na sociedade, esse espírito de serviço desapegado vai caindo em desuso, a menos que assuma as formas distorcidas da caridade ou do ativismo social. O trabalho faz-se para a recompensa e as insígnias – de preferência, com alguma animação à mistura. Se as medalhas de participação sempre foram de pouco consolo, têm agora uma palidez sepulcral.

 

(Dornes, Portugal - 2017)

 

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

04
Dez23

É o carinho, caros "cowboys"

Sónia Quental

Podia ser nómada digital, mas preferi ser sedentária, o que não significa que o caminho não esteja cheio de escolhos e não sinta a adrenalina das montanhas-russas. Ultimamente, têm sido vários os momentos de perplexidade, ao cruzar-me com os novos cowboys do comércio, que já dispensam os recursos humanos para empregarem a automação, num esforço de reduzir “custos operacionais” – muitas vezes, sem qualquer palavra de aviso. Num dia estão lá, no outro deixam de estar, e o freelancer que lance as cartas para tentar adivinhar o que se terá passado ou fique a coçar a cabeça e se desenrasque no fim. Até as empresas que assumem valores “humanos” desaparecem no mesmo vácuo misterioso, descartando as pessoas com igual facilidade que quem dá precedência ao lucro.

No entanto, e a par dos poucos clientes que se mantêm fiéis à qualidade do trabalho e às pessoas com quem trabalham, tenho notado um crescimento da tendência inversa à descrita no parágrafo anterior, em anúncios que frisam não aceitar trabalho feito com o auxílio de qualquer ferramenta automática. Querem o 100% humano.

É um dos motivos que me fazem achar que no futuro o humano será o novo vinil. A nova corrida ao ouro. Também pelas minhas reações quando me deparo com páginas web geridas por bots, sem oferecer qualquer forma de contacto com gente de carne e osso. Em vez de encontrar soluções, embato contra uma parede após a outra. O desespero de lidar com robôs que me mandam ler artigos de ajuda e me atiram para um labirinto que me leva repetidamente ao mesmo ponto de partida, continuando sem resolver o meu problema, faz que, como consumidora, rejeite semelhantes marcas com a mesma rapidez com que elas dispensam as pessoas.

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Não faria compras num site de comércio eletrónico que empregasse tradução automática, tal como não visito os que são escritos em português “marroquino” (uma variante cada vez mais generalizada, com forte pendor oralizante e anglo-saxónico), acreditando que os falantes nativos são exímios utilizadores da língua, abonando à marca o selo de autenticidade e permitindo-lhe poupar em mão de obra efetivamente qualificada.

Aquilo em que pensa quem se apressa a suprimir o valor humano, crendo-o ultrapassado, é no lucro a curto prazo. Quer-se eficiência, produtividade, esperando-se que o público fique satisfeito com um serviço aparentemente melhor e mais rápido. Neste capítulo da história, ainda está longe de o ser, havendo que ponderar o fator desprezado de em muitas situações as pessoas simplesmente não gostarem de ser atendidas por máquinas.

Falando do atendimento humano, posso dizer que é muitas vezes o motivo pelo qual frequento determinados espaços comerciais. Posso ter de pagar mais ou de percorrer uma distância maior; a qualidade da oferta pode não ser superior, mas a alegria e o cuidado que encontro no atendimento são os elementos diferenciais – nem sempre é a conveniência que dita as escolhas. Num dos supermercados a que mais vou, faço-o porque gosto de sentir o calor das funcionárias nas caixas, que não trabalham contrariadas. Recebo um agasalho emocional quando a pessoa tem o cuidado acrescido de pôr as minhas compras no saco, acomodando-as com um esmero que não está no contrato.

É o carinho, caros cowboys. Foi no carinho que se esqueceram de pensar.

Podem dar às máquinas aparência e voz semelhantes às humanas, uma precisão sem precedentes. Num futuro próximo, posso vir a ser atendida por um aparelho que fale comigo, conheça todo o meu histórico de compras e as minhas preferências, saiba medir a minha temperatura e indicar-me o índice de massa corporal. Não é o mesmo que alguém que sabe pequenas coisas, porque prestou atenção. A atenção e o contacto humano são a mina, caros cowboys – não o contactless. Se pensassem antes no lucro a longo prazo e soubessem que gente não é besta, apesar de todos os sinais em contrário, poriam o humano no âmago da evolução, não como palavra-chave sonante de congressos políticos ou de um discurso de marketing com metas de SEO a atingir.

 

Fotografia: 2013 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

17
Ago23

Valha-me a meia de leite

Sónia Quental

 

Gnosis is a moving target. Walking its path is a nomadic life. When night falls, you pitch your tent. In the morning, you pack it up, put in on your back and start walking again. Don't pitch it anywhere permanently. Be the infinite explorer.

Neil Kramer

 

 

Ouvi mais de uma vez pessoas que trabalhavam em cafés ou padarias fazerem comentários de desabafo sobre os hábitos dos clientes regulares. Exasperava-as que a mesma pessoa tomasse todos os dias o mesmo pequeno-almoço, a mesma meia de leite com o que quer que fosse a acompanhar, apesar da variedade de opções em oferta. Os motivos não são tão elementares quanto possa pensar-se, embora nem sempre sejam conscientes.

Os hábitos, por mais pequenos que sejam, são âncoras num mundo de incerteza e insegurança. Falando por mim, que convivo há muito com um grau de incógnita robusto: quase sempre, como trabalhadora independente, não me é possível saber se daqui a um mês vou ter trabalho ou ordenado, o que dificulta fazer planos. A ansiedade e o desgaste que esta situação vai naturalmente gerando ao longo dos anos são amplificados pela falta de uma estrutura familiar e afetiva de apoio. Somam-se as mudanças que vêm de fora, da sociedade, e as que irrompem de dentro, ditando-me viragens de rumo que me cabe apenas pôr em marcha. Uma consciência que não vive petrificada exige um sacudir de pele constante, um nunca pousar a cabeça duas vezes no mesmo leito.

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No meio disto, o que me vale é a meia de leite ao pequeno-almoço. Pode não ajudar a tornar mais interessante o dia de quem a serve, mas é das poucas coisas a que ainda me posso agarrar, tirando quando fecharam cafés e postigos. Aí, nem meia de leite havia.        

Acresce que a quantidade não simplifica a escolha. Quando há muito por onde escolher, a confusão é tanta que quase sempre se escolhe errado, a que se segue o arrependimento pela oportunidade perdida de tomar aquilo de que se gosta garantidamente. Alivia ter-se pelo menos uma preferência em que não é preciso pensar, que é imediata e não atraiçoa. Um pequeno prazer certo entre os tantos que falham.

Há ainda o conforto de ir a um estabelecimento onde se é conhecido. Ter alguém que sabe o que queremos e como gostamos de o tomar, sem ter de perguntar. A comunicação silenciosa e conivente que se estabelece num sítio que não é casa, mas que se torna um pouco mais como casa e que às vezes nos mima com rabanadas fora de época.

Mau grado os argumentos, sei que chegará um dia em que até este apego terei de deixar. Até lá, valha-me a meia de leite.

 

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

03
Ago23

A cultura das "dicas"

Sónia Quental

Also, in our search for tools, we become what we seek: a tool. We reduce ourselves to being primarily pragmatic and utilitarian. 

Peter Block

 

Não existem valores além dos que são úteis: algo tem valor se tem utilidade. E qual é a utilidade da beleza? (...) A beleza partiu para duas direções: para o culto da feiura nas artes e para o culto da utilidade no quotidiano. (...) Acontece que nada é mais útil do que o inútil.

Roger Scruton

 

 

Já tenho designado a cultura de formação em que vivemos como a “cultura dos workshops”, mas venho aqui emendar o título e a realidade que descreve para a sua versão minimalista: vivemos é na cultura das dicas. Vejo livros e opiniões de leitura elogiarem muito autores que dizem dar dicas (“práticas” ou “preciosas”) e facilitar processos. É a nova coleção de obras para totós que, ao contrário da que assim trata explicitamente o leitor, o faz dando-lhe palmadinhas nas costas e entregando-lhe um diploma de burrice mascarada, que ele agradece com vénias.

Quer no meu percurso escolar e académico como aluna, quer no profissional como formadora, a realidade que fui conhecendo com o passar dos anos foi de uma facilitação cada vez maior: facilitação dos critérios e das notas de admissão aos cursos, dos programas ensinados e finalmente dos critérios de avaliação e validação, tudo isto administrado com uma linguagem paternalista que passa por inclusiva e que está ao serviço da degradação do rigor.

Não só no contexto da formação profissional, mas também no mundo recreativo, da arte e do desenvolvimento pessoal e espiritual, deparei-me com o fenómeno cada vez mais popular dos workshops. Constatei que qualquer pessoa com qualificações obscuras e competências duvidosas podia viver de dar workshops de 2 ou 3 horas, com muitas dicas e demonstrações, mas muito pouco de substância. É o primado da experiência e da prática, que transforma ignorantes em autoridades na matéria, sob o lema do DIY. Se o aluno quiser levar à prática as dicas recebidas e tiver dúvidas, terá de fazer outro workshop ou de se desenrascar com os truques baratos que aprendeu, pesquisando na internet ou vendo vídeos no YouTube. E não é preciso muito para passar a acreditar que, com mais umas dicas, ele próprio estará habilitado a dar workshops e a ganhar uns trocos à margem.

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Não quero com isto dizer que não haja pessoas versadas que o são sem terem passado pelo ensino superior ou formal e que tenham desenvolvido um saber respeitável à custa da experiência, que não menosprezo, e da dedicação a uma disciplina, arte ou ofício. Que o que se faz nos tempos livres, por paixão, não possa transformar-se, por mérito, em profissão. A vocação e o esforço têm importância, tanto ou mais do que o saber teórico adquirido, desafiando as metodologias com que as instituições de ensino e formação o transmitem e aferem. O que quero, sim, dizer é que casos como estes representam uma minoria e que o grau de dedicação necessário para a conquista de mérito é elevado.

No entanto, tenta-se hoje inculcar uma mentalidade contrária à do trabalho e do mérito. Tudo o que é preciso para se dominar uma técnica é frequentar workshops, ler newsletters e receber umas "dicas". Para se ser profissional numa área, basta ter-se atividade nessa mesma área, sejam quais forem as habilitações, preparação e real competência dos ditos profissionais, que, após um ano ou dois, ao ritmo de progressão na carreira das atuais gerações, já se dão o título de “especialistas”. Se tiverem um podcast, o título então é automático.

As palavras de ordem desta cultura estão por todo o lado: “técnicas”, “dicas”, “exemplos”, “prático”, “pragmático”, “útil”, “direto”, “fluido”, “leve”, “fácil”, “simples”, “poderoso”, que recheiam um discurso de motivação extraído da literatura da autoajuda, que, no estilo conversacional também em voga, procura injetar autoconfiança e uma fé cega no sucesso – uma das poucas entidades invisíveis em que ainda se acredita e a que se acendem velas. A linguagem religiosa marca, aliás, presença assídua nesta cultura materialista, em que já vejo referirem-se aos livros práticos como “bíblias”, logo ao lado da palavra “top” como classificação sumária – a palavra final que os críticos, leigos, mas especialistas, têm a dizer sobre assuntos que não têm arcabouço para avaliar.

A cultura de formação atual é uma cultura de deformação, subserviente à lógica dos mercados. Enquanto se anda à procura de dicas, para abreviar caminho, baixa-se cada vez mais a fasquia. O que se exclui das estratégias de facilitismo e inclusão, que o que querem é entregar certificados, é a exigência e a qualidade. Quem perde somos todos.

 

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

30
Jul23

"Dolce far niente"

Sónia Quental

 

You have to learn to sit in the Silence (…).

 Robert Adams

  

Instead of instant gratification, we seek cheap grace.

 Peter Block

 

           

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Certa vez, alguém me disse que estava com tanto trabalho que tinha o horário dividido em períodos de um quarto de hora. Acontece-me parecido, às vezes. Listas mentais de tarefas em reelaboração contínua, o tempo que parece impossível chegar, mas depois até cresce, e a ânsia de o aproveitar para adiantar mais trabalho, no espírito de não deixar para amanhã o que se pode fazer hoje.

O mais difícil é travar a ebulição, pôr freio na gula da adrenalina e criar tempo para o nada. Parar corpo e mente. Temos a ideia de que o rendimento vem da ação – de que, quanto mais se faz, mais se produz e resolve. E temos esse vício de querer antecipar, viver um passo à frente do tempo.

Não fazer nada deixa-nos desamparados. Parece puro desperdício. A necessidade não é apenas de descanso ou lazer, como se vai sugerindo – nem de deixar a criatividade fermentar. É só que o regaço do Silêncio chama e é a sua vez de nos trabalhar por dentro, convidando-nos ao restauro do Mistério.

Mas a mente é tão ativa e ardilosa que até no silêncio quer saber como estar. O “Como?” é uma das perguntas em que mais insiste e por isso procura técnicas de meditação ou de mindfulness, que são apenas mais uma forma de continuar a fazer – fazer o silêncio, desta vez. Sente-se perdida sem estratégias e até do nada quer recompensas, saber que benefícios pode esperar.

Ouvi há dias, num podcast em que se falava do tempo que é necessário dedicar às grandes questões da vida (tempo que a maioria diz faltar-lhe), que uma das mais importantes qualidades espirituais a desenvolver era a disponibilidade. É esse o preço – ou um dos preços – a pagar. Mas, quando a necessidade se torna imperiosa, o tempo faz-se, inventam-se meios, tornamo-nos disponíveis. O que custa é quando chega a estação do silêncio. Quanto já se leu, estudou, praticou tudo e mais alguma coisa. Quando a busca não é movimento, mas estar quieto. Quando se quer avançar e o momento é de entrega. Quando não podemos conduzir o processo e sentimos que o tempo se escoa. Continuar disponível no Nada é a grande prova, sob a pressão do tempo, do impulso para a ação, da expetativa de lucro que acompanha  à socapa um qualquer investimento.

Não obstante… É o Silêncio que nos encharca as mãos de beleza. Tudo o que se faz a seguir é gracioso e sem esforço. Deslizamos no tempo, esticamos o tempo, fazemos toda a índole de coisas inimagináveis e mágicas, incluindo escrever mais um texto, como se o tempo sobrasse para passatempos assim.

 

Therapist Pittman McGehee states that the opposite of love is not hate, but efficiency.

Peter Block

 

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In Class of '09

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

30
Mar23

Rumo à tecnocracia

Sónia Quental

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Our intelligence doesn't serve us until it is in service to our souls.

Brian Ridgway

 

 

A pergunta óbvia colocada por Jorge Soley nas páginas de abertura do seu Manual do Bom Cidadão, indagando se enlouquecemos todos, veio-me à mente muitas vezes, antes ainda da propagação generalizada do politicamente correto e da cultura do cancelamento que é objeto do escrutínio do autor.

Uma das ocasiões foi quando ainda dava formação e o então dirigente da instituição onde trabalhava procurava convencer-me de que a minha única função era preparar os formandos para os inserir no mercado de trabalho. Competia-me, assim, escolher os conteúdos de caráter prático que tivessem utilidade para o papel que teriam a desempenhar em contexto profissional. Achava-me na posição formidável e vã de tentar rebater que estava ali para formar pessoas e que, sem se formar pessoas, não se formavam técnicos. Tentava explicar que saber pensar era uma coisa prática e útil, dentro e fora da oficina.

Aspiravam, no seu pragmatismo progressista, a reduzir pessoas a máquinas, tal como hoje se quer que as máquinas façam as vezes das pessoas. A sua exatidão e automação superam as nossas falhas e tornam-nos cada vez mais redundantes, versões obsoletas que se impõe erradicar da força de trabalho e substituir por modelos melhores. Tal como nesses tempos não muito distantes assistia – até que me despedi – à pretensão de se transformar gente numa engrenagem bem oleada da cadeia de produção, deparo-me hoje com a realidade da desvalorização do trabalho humano face a uma inteligência artificial que o torna aparentemente desnecessário. Só num mundo que perdeu o contacto com a própria alma se tem “inteligência” como sinónimo de “consciência” e como o mais alto valor de mercado - a par da “utilidade”. As tendências são uma e a mesma: tornar-nos semelhantes às máquinas, unir-nos a elas numa simbiose feliz e adotá-las como blocos de construção da sociedade superior do futuro: mais eficiente e menos dissidente.

Pergunto-me se a palavra “alma” se tornará também um dos termos cancelados pela cultura dominante, um conceito filosófico e intangível que a Ciência ainda não validou e de que os gladiadores sociais desconfiam, pertencente talvez aos círculos diabólicos das “teorias da conspiração”. Mas, como salienta Jorge Soley, entrámos já numa era em que se tornou proibido fazer perguntas. Assim se impedem os verdadeiros debates e o que quer que destoe de uma narrativa fechada que tem a linguagem como instrumento ideológico e que tanto se empenha em reformá-la e em produzir rótulos que põem imediatamente fora de combate quem se atreva a contar outra história.

Por esta altura, se fosse esperta, já teria enveredado por uma carreira de fact-checker ou de coadjuvante da censura, polidora da linguagem ortodoxa ou ceifadora de termos moralmente ofensivos, uma vez que escolhi um curso “sem saída” que, se à época já pouco tinha de “prático”, hoje parece cada vez mais supérfluo, diante do primado da IA e do futuro tecnocrático que se deixa adivinhar, em que a “nuvem” será o nosso novo habitat comum. Não a nuvem da inspiração artística, da imaginação ou da transcendência, bem entendido, mas a nuvem cibernética. Em breve chegará o tempo em que, depois de abdicarmos da inteligência a favor das máquinas, lhes cederemos também o corpo, num novo tipo de possessão futurista, encorajado pela reeducação global, que pretende remover todos os vestígios de consciência humana, todas as possibilidades epifânicas e reduzir enfim o homem a um ser sintético, socialmente adaptado, ao serviço da coletividade – um homem que será uma sombra sem aura.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0