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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

31
Mar24

Batman

Sónia Quental

Em vez de jejuar, passei a Sexta-feira Santa a admirar o maxilar do Batman. Tenho vasculhado as ruas de Gotham à procura dele.

A Páscoa serve o mesmo prato de superficialidade que os outros dias, coberto de açúcar e ovos moles. Não há leituras de interesse para lá das opiniões sobre política, alterações climáticas e os rituais católicos que marcam a época, havendo quem proponha calar a alegria para trazer Jesus a nós. Não duvido de que a quantidade de negócios que passou a fechar no dia de Páscoa seja sintoma de uma revivescência súbita da religiosidade do povo, que vai para a neve receber Jesus.

A minha penitência é procurar o maxilar do Batman nas ruas inertes, enquanto os pés não fizerem bolha. Não tenho o treino de quem se arrasta a Fátima ou a Compostela para cumprir promessa: já não faço juras em voz alta e escolho as minhas romarias. À data, investigo um maxilar extinto com fervor igual ao de quem celebra a ressurreição com o glacé nos dedos.

Recorto no céu o SOS da minha descrença, que o gozo da chuva desmancha para abrir um arco-íris intermitente, anunciando o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Que o Batman me salve do melaço e das marchas que desfazem o cinzento da tradição. Dois mil anos depois, eles ainda não sabem o que fazem.

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

23
Dez23

Era uma "bez"

Sónia Quental

 

Embora não seja fã de Bruno Nogueira, a crónica sobre o Porto que publicou há dias na revista Sábado fez-me pender uma das asas uns milímetros na sua direção e desafiar-me de novo a ligar os pontos.

Fez-me lembrar uma interpretação intrigante que encontrei, era ainda estudante, na obra Psicanálise dos Contos de Fadas, em que o autor (outro Bruno, por sinal), a propósito d’ “A Bela Adormecida”, sugeria que o despertar da heroína do sono de 100 anos não se devera tanto ao príncipe eleito, que conseguira finalmente atravessar a sebe de espinhos, mas ao terminar da maldição. Trocando por miúdos: fosse quem fosse o desgraçado a acercar-se do castelo, as sebes abrir-se-iam para lhe dar passagem, simplesmente porque tinha chegado a altura (uma interpretação nada romântica, bem sei).

Diz o Bruno de cá, que vê no Porto um país dentro do país maior que é Portugal, que “Uma cidade não é o que se vê no mapa” e que – aqui em paráfrase –, sejam quais forem os movimentos que a sacudam, continuará a ser aquilo que sempre foi. Tem um espírito próprio, que lhe sobrevive e que contagia quem nela se adentra, ditando desde logo se são compatíveis ou não (isto sou eu que digo). Não é preciso fazer match.

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É aqui que entra a história da Bela Adormecida, não porque ao Porto falte viço ou porque tenha sido amaldiçoado por alguma fada desavinda, mas porque o espírito do lugar não é só do lugar: é dos tempos também. Quero com isto dizer que, mesmo quando não é um conjunto de fatores a imprimir a mudança ao espírito da cidade, os espíritos transitam quando chega a hora disso, porque a cidade não deixa de fazer parte de um sistema maior, também ele governado por ritmos, ciclos e qualidades a expressar. Não vive envidraçada num caixão com um isolamento impenetrável, como a Branca de Neve (outra ilustre adormecida), que ainda assim se sujeitava a que o cristal partisse.

Ao contrário da impressão do nosso cronista, parece-me que o espírito do Porto começa, sim, a dar sinais de mudança. Não sei se é por isso que as pessoas se agarram, mais tenazmente do que nunca, ao Natal e às tradições que lhes transmitem a segurança da continuidade, quando os ventos do desconhecido são cada vez mais céleres e desestabilizadores. São tradições que nos fazem recuar ao conforto da infância, ao tempo em que o “E viveram felizes para sempre” dos contos de fadas ainda era possível e as lareiras crepitavam ao som de uma sabedoria mágica e subterrânea, que nos preparava para a vida, resguardando-nos em simultâneo da crueza das suas tragédias, como bem aponta Nuno Lebreiro noutro artigo recente.

Embora não tenha nascido no Porto, sou mais de cá do que de Portugal. Gostava que a sua genuinidade perseverasse, porque também a mim me aproxima mais de quem quero ser, efeito que não cabe num texto nem num postal. Enquanto escrevo este, chegam-me os gritos dos adeptos no Estádio do Dragão e, por mais que comece a agitar-me quando penso que em breve vou querer dormir, já fazem parte da paisagem, como as gaivotas rapaces e as obstinadas pombas. Que passava melhor sem eles, passava - mas não era a mesma coisa. 

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Fotografias: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

02
Set23

Enxoval: precisa-se

Sónia Quental

 

Definir o politicamente correto com precisão não é fácil, mas reconhecê-lo quando está presente é. Ele tem sobre mim o mesmo efeito do ruído que, durante minha infância, a unha do professor fazia sobre o quadro-negro quando o pedaço de giz estava curto demais, causando-me frio na espinha. Trata-se da tentativa de reformar o pensamento tornando certas coisas indizíveis. Consiste, ainda, numa ostentação conspícua, para não dizer intimidadora, de virtude (a qual é concebida como a adoção pública das visões ‘corretas’, isto é, das visões ‘progressistas’) mediante um vocabulário purificado e um sentimento humano abstrato. Contradizer esse sentimento ou deixar de usar tal vocabulário é excluir-se do grupo de homens (ou deveria eu dizer ‘pessoas’?) civilizados.

 

Theodore Dalrymple

(citação retirada de edição brasileira)

 

 

A maior desfeita foi quando passei a receber enxoval, porque quem o dava lhe ganhou gosto, mas não me contagiou com ele. Se com o tempo aprendi a dar valor às prendas em dinheiro, o enxoval deixou-me sempre um travo inconformado a desilusão. Isto até saber que Jordan Peterson tinha sido condenado a um campo de reeducação (estabelecimentos que ameaçam instalar-se deste lado da civilização) e de novo me render aos desígnios da Providência. Admirei a sabedoria genial das minhas tias, que não era porque não me conhecessem que ofereciam enxoval, mas porque tinham a premonição das circunstâncias em que faria falta. Talvez me adivinhassem no cadastro o crime de ferir sensibilidades e achassem que o sítio para onde seria mandada carecesse de toalhas com cheiro a mofo.

Tenho a sorte de o Jordan Peterson ter chegado primeiro. Pelo menos, terei alguém interessante com quem trocar bilhetinhos nas aulas de socialização. De certeza que tira apontamentos melhor do que eu e tenho a esperança secreta de que me deixe copiar nos testes. Eu posso ajudá-lo na parte linguística, a declinar a lista de pronomes (é fácil para quem já estudou latim). Se formos apanhados, penso que é mais provável que seja ele a levar com a cana, uma vez que é homem branco, falo – quero dizer, símbolo – do patriarcado, por isso posso estar relativamente descansada. Não me importo de dividir o lanche com ele, já que tenho muitos paninhos de renda, bordados pela bisavó, e, da primeira vez que me educaram, ensinaram-me a não ser egoísta. Espero que faça vista grossa às manchas amarelas, pois só no mês passado aprendi a usar lixívia.

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Pode ser que no campo de reeducação deem aulas de economia doméstica e não façam discriminação de género, para que o Jordan Peterson também possa ir. Se ele souber fazer um pequeno-almoço energizante, sem glúten nem hidratos de carbono, seremos amigos para sempre. Sei que ele vai gostar de mim, porque estou habituada a arrumar o quarto. Uma vez, quando fui a Tormes, a senhora da limpeza não me deixou toalha de banho, porque eu fazia a cama todos os dias e ela pensou que, em vez de duas, só uma estivesse ocupada. Também aí o enxoval vinha a calhar.

Acho que vou sugerir no centro de reeducação a ideia que tivemos em Tormes quando o calor se tornou intenso, que foi levar cadeiras de plástico e sentar-nos à sombra das videiras, enquanto ouvíamos a voz melíflua do Pedro Eiras discorrer sobre Eça de Queirós. Suspeito que Jordan Peterson vá gostar do Eça, que me envergonho de já não ler, mas parece-me que também ao portuguesinho receitariam a reeducação. Que bom que seria eu, o Jordan e o Eça a especular quantos géneros há para dois sexos e a comer as uvas da ramada, com os meus paninhos de renda no colo.

 

 

Fotografia: 2022 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0