Palato
Ensinaram-me a calar-me para manter a paz. A engolir o que sentia, embrulhado com o arroz seco de domingo, que durava a semana toda. Ensinaram-me a sorrir para a fotografia (mas isso não aprendi). Ensinaram-me a falar baixo, a não incomodar. Não ocupar espaço. Ensinaram-me a ser responsável, a levar às costas o meu fardo e o dos outros, tal era a minha eficiência. Ensinaram-me que esse era o preço da responsabilidade. Ensinaram-me a ser a minha própria mãe e o meu próprio pai – e os dos outros também. Ensinaram-me que precisava de adoecer se queria que cuidassem de mim. Ensinaram-me que tinha de ser a melhor para merecer uma aprovação sumida. Ensinaram-me que mesmo assim os outros seriam sempre melhores. Ensinaram-me que só a crítica merecia voz, porque os elogios estavam implícitos. Ensinaram-me a ser boazinha, a não reclamar. Ensinaram-me que a verdade não era para se ver, menos ainda para se dizer. Ensinaram-me a ser bem-educada, a aguentar mais, exigir menos.
Habituaram-me a ficar para depois. Habituaram-me a ser esquecida: num tanque, numa eira, no meio de gente que falava alto e reclamava e não se importava de incomodar. Gente que tinha mãe e pai de seu próprio direito, que não se cansavam de fazer vénias à própria prole. Assim cada um ocupava o seu lugar: os que escondiam os quilates que lhes sobravam e os que empolavam os predicados que não tinham.
Educaram-me para ser palatável, uma palavra que me ficou a ecoar no pensamento quando a ouvi por estes dias. Depois de tanta pedagogia, tem sido uma vida a redescobrir a minha paleta de sabores, desmanchar tudo o que não devia ter aprendido. Agora sei que não basta desaprender uma vez e que é preciso lembrar muitas vezes que não tenho de agradar a outros palatos. Amor que o peça não é digno de mim.
Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados