Homenagem atrapalhada
Tendo amanhecido hoje com a notícia da morte de Nuno Júdice, achei por bem dedicar-lhe um in memoriam atabalhoado, deixando as homenagens condignas a quem de maior talento e conhecimento.
Tive o privilégio de me cruzar com Nuno Júdice no papel de arguente quando apresentei à FLUP a minha dissertação de mestrado, nascia o ano pouco grato de 2010. Verdade seja dita, foi um privilégio que teria dispensado, porque tudo o que tinha a dizer, passados 3 anos e 150 páginas a espreitar para debaixo da saia dos anjos, foi que não lhes lobrigava o sexo. Não havia forma mais extensa ou elaborada de o transmitir por palavras, por isso creio ter tido nessa tarde uma das poucas experiências extracorpóreas por que passei na vida, em que deixei o corpo transpirar aflição e me dissociei daquele embaraço pantanoso de que não tinha como sumir.
Enquanto poeta, não posso dizer que a poesia discursiva de Nuno Júdice me cantasse ao ouvido, que prefere os poemas como os óleos essenciais: simples e concentrados, com um poder maior nas poucas palavras que convocam. Ainda assim, e porque o tema da inspiração foi o pretexto para o nosso breve encontro, deixo abaixo o poema que reproduzi num dos pórticos do meu Todas as Manhãs da Arte. A moral da história foi ter percebido que era feio andar a olhar para as partes privadas dos anjos, com régua e esquadro na mão. Dedico-me desde então a aprender-lhes a língua. Eles chegam-se mais.
Não sei o que é a inspiração. Tenho falado dela,
e sei que os gregos a tomaram como ponto de referência quando,
nas suas poéticas, distinguiram entre a obra humana e o desígnio
divino. Mas esses deuses, que cicatrizavam nas feridas abertas pela
inquietação do homem quanto ao destino, foram desaparecendo, enterrados
sob os escombros das cidades antigas, ou esculpidos no mármore
que serviu de entulho para novas cidades. E a inspiração ficou
reduzida a um alento vago, que nasce da zona obscura do espírito
em que se formam as imagens. Depois, ninguém mais acreditou
na hipótese de um sopro metafísico, como se o poema se fizesse
apenas a partir de palavras ou de ideias, e não houvesse na sua
substância mais profunda uma cintilação que envolve o verso e o
impede de ganhar a ferrugem do tempo.
Nuno Júdice