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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

19
Jan25

Vícios

Sónia Quental

         Por motivos que pouca importa esmiuçar, tenho-me dedicado à leitura de manuais de instruções de frigoríficos, que fizeram mais por mim do que dizer-me que devia descongelar o meu antes que sejamos ambos tragados pelo gelo.

            O pasmo não foi pequeno ao ler as advertências para não se utilizar um secador de cabelo para secar o interior do frigorífico nem pôr lá dentro velas acesas para remover maus odores – o que sugere que ambas as proezas já foram tentadas. A ênfase que a repetição dá ao pedido de não deixar crianças entrar para o frigorífico ou para dentro das gavetas semeou o seu tanto de desassossego: sabendo embora que muitos pais gostariam de fazer freeze à prole destravada, não supus que recorressem a meios tão extremos e literais para o conseguir.

        Empolgada que estava com todas estas aprendizagens e com o português escorreito do texto, eis que tropeço numa daquelas pedras que são a razão de ser de poemas como “No meio do caminho”, de Drummond de Andrade: o emprego infatigável do pronome demonstrativo “o mesmo”:

 

“Não limpe o aparelho pulverizando água diretamente sobre o mesmo”.

“Mantenha todos os materiais da embalagem fora do alcance das crianças, porque os mesmos podem ser perigosos para elas”.

 

         Contrariamente ao que defendem alguns, a formulação não é erro, mas uma deselegância exacerbada pela falta de comedimento no uso, a que aderem até os que mais insistem na simplificação do discurso. Mais universal do que o verniz das unhas que une mulheres de todos os estratos sociais, “o mesmo” ouve-se e lê-se em toda a parte, em substituição de formas mais simples e naturais como “ele/ela”, “este/esta”, “dele/dela”, “seu/sua” ou da simples omissão, como se aconselharia no segundo exemplo acima e era prática comum até um passado recente.

        Senha não reconhecida de igualdade social e nivelamento cultural, infelizmente para baixo, este verdadeiro trambolho tanto se ouve em conversas de café como se lê em traduções literárias, de profissionais que mostram não ser imunes aos modismos da língua. É um dos exemplos infelizes do contágio psíquico que ocorre não só no campo das ideias, mas da linguagem, mostrando como pouco filtramos e refletimos sobre o que recebemos e propagamos. Pior do que isso, só mesmo rematar com “LOL”.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0