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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

22
Nov23

Quarto crescente

Sónia Quental

Há épocas para tudo. Há-as de enchentes de trabalho, seguidas de outras em que escasseia. Há épocas em que os cineastas só fazem filmes de vampiros, bruxas e criaturas afins. Há épocas como esta, em que a zona onde moro se transforma num estaleiro de obras, porque resolveram todos fazê-las em uníssono. Épocas em que todas as cabeças que encontro andam a pintar a casa. E a música de fundo que ouço no trabalho é o assobio dos homens lá fora.

Há épocas de chuvas torrenciais e ventos absurdos, sumidos como suspiros nos pequenos verões de bonança. Há ciclos que parecem de Job, noites que atormentam a alma que não tem o condão da paciência. Há épocas em que só há perguntas, outras em que nem isso. Épocas de estar só. E épocas também de companhia.

Há estações de azul (estou numa de verde). Fases de querer cozinhar, outras de recusa. E deixem-se de porquês: tudo o que não seja “porque sim” ou “porque não” é pura ficção.

Há épocas em que nada acontece, outras em que se vive aos atropelos. Vou resfolegando em ambas, treinando o equilíbrio entre as marés, medindo a perna que se segura melhor na areia seca ou molhada.

Há épocas em que não durmo, temporadas sem sonhos – outras daqueles a que Miguel Esteves Cardoso chamou “xixi cerebral” (que não são as melhores). Há épocas de premonições, avisos proféticos, sinais. Há quadras em que até os deuses se afastam.

Há semanas de escrever e outras de empenar. Da birra à paz, uma penada. Quarto minguante, quarto crescente. Tudo tem o seu momento. Mas o que me apetece mesmo é a lua cheia.

03.08.2018 - Saia preta (35).jpg

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

14
Nov23

Silêncio que é chumbo

Sónia Quental

Foi a saudosa coleção da Formiguinha que em criança me introduziu ao património da literatura tradicional. Os contos terminavam com uma lição de moral, e uma das que se me cristalizaram na memória dizia que “A palavra é de prata, o silêncio é de ouro”, oferecendo-se como um mistério a desvendar, coberta do pó luzidio desses metais preciosos.

No meu mundo habitual, nem a palavra era de prata nem o silêncio de ouro. A palavra era uma excreção que servia para agredir ou confundir, enquanto o silêncio funcionava ora como castigo ora como solvente, que a mão do Esquecimento manejava para diluir a verdade. Quando não cooperava com ele, era lembrada dos meus fundamentais egoísmo e ingratidão, e da fórmula 70x7 do perdão. À época, não me deixavam usar máquina de calcular na escola, mas eu era boa aluna, tinha copiado muitas vezes a tabuada e sabia fazer a conta de cabeça. Tinha noção de que o resultado era um número de grandeza desproporcionada, cuja exatidão me intrigava, mas nem as homilias de domingo me desfaziam a relutância.

Quando se nasce das entranhas de um dos mamíferos do demónio, tem-se a oportunidade de examiná-las de perto. Leva-se para a vida, misturado com o enxoval, um estojo completo de alquimia, com pedaços de chumbo como matéria-prima. O pedregulho do silêncio também ia lá dentro, suplicando-me amizade regeneradora.

Só que os meus olhos já eram míopes e estrábicos – o preço que tinha tido a pagar por não dar tréguas ao silêncio, não deixar o rei desfilar em paz na sua nudez impostora. Também conhecia essa história, não dos livros da Formiguinha, mas de leituras outras, que me tinham familiarizado com os sacrifícios que a virtude pedia. Cabia-me conquistar as suas recompensas incertas, polir o metal baço da palavra e do silêncio, que me tinham ficado presos na garganta, para encontrar os seus quiméricos tesouros.

E polir é o que tenho feito, mesmo quando as mãos não querem. É o meu fardo, a parte do mistério que me coube, a faina de desfazer o Mal milímetro a milímetro num silêncio que pulsa e se desdobra num luminescente infinito.

 

Galeria Geraldes - 17.09 (32).jpg

 

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

07
Nov23

Autobiografia às avessas

Sónia Quental

           

Especializei-me em não saber. Comecei por não saber o que queria ser quando crescesse e depois tomei-lhe o gosto. Quando cresci, desinteressei-me de ser alguma coisa.

Foi-me mais fácil ir descobrindo o que não queria, apesar do susto que dava. Não queria uma vida normal, mesmo quando julgava que sim. Não queria sumir-me no mofo asfixiante da banalidade.

Não queria viver na mentira, onde quer que ela estivesse. Como nos cruzávamos muitas vezes no trabalho, deixei o trabalho. Não sabia o que seria de mim quando viesse embora, mas vim. Tal como não soube porque tinha de passar a comer vegetais quando a ideia veio. Não me sabia orante até que a oração brotou.

Não soube porque me abandonou a vontade de ler literatura ou que fome era a que sentia, que já não se saciava com ela. Atirei a culpa disso para o fundo do subconsciente, já apertado para a acomodar.

Não soube porque tinha de abdicar dos dons que recebera, mas deixei-os morrer na memória – com eles, o orgulho que me restava e qualquer aspiração a ser especial. Com o passar do tempo, em vez de acumular conhecimento, deu-se o caso de o subtrair.

Elétrico.jpg

Não soube porque precisava de deixar pessoas para trás, mas deixei e continuo a trazer na carteira a tesoura de cortar laços e nós.

Não sabia como comprar casa e pagá-la, mas comprei e agora o condomínio quer-se vingar.

Todas as grandes decisões de vida não vieram de mim, mas de Algures. Quando perguntava porquê, saía-me de dentro o silêncio abotoado do “porque sim” e eu que me cosesse com ele.

Nunca soube fazer conversa, mas essa é uma qualidade. Não sei o que responder quando me perguntam por projetos de vida. Não sou arquiteta. Não sei o que a vida quer de mim. Não sei o que quero dela, embora o que não quero cresça em força e firmeza. Se me perguntarem onde me vejo daqui a 5 anos, digo sem rodeios: não sei.

Hoje, que há pessoas a abrir empresas só para poderem ser CEO de alguma coisa, nem sequer preciso de abrir a minha: sou CEO do não saber e não tenho concorrência, já que todos preferem estar do lado das certezas. As atualizações são automáticas: nulas. Posso fazer tudo sozinha, sem delegar tarefas. Referências: toda uma vida dedicada à ignorância.

De não saber em não saber, por aí vou. Também não sei tocar guitarra para fazer disto cantiga, por isso uso o que me sobra: escrever, que também não sei, embora isso me dê esperanças de uma carreira no copywriting.

Espero que pelo menos de Sócrates venha um gesto discreto de assentimento quando repito: só sei que nada sei.

When you first begin, you find only darkness, and as it were a cloud of unknowing.

The Cloud of Unknowing, Anónimo (séc. XIV)

 

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

08
Jul23

Aprender a ser musa

Sónia Quental

Juncos verdes (1).jpg

The human soul is hungry for beauty (…). 

John O’Donohue

 

 When you’re nothing, it’s always a good-hair day. 

Byron Katie

 

 

Ninguém aprende a ser musa. A vida não leva para isso. Na antestreia da maioridade, entregaram-me o roteiro: curso com saída – emprego – marido – assentar, para que não se desperdiçassem em mim os dotes de menina prendada. Em nota de rodapé, sublinhava-se, com letra não muito miúda: deixar de ser mal-agradecida e, acima de tudo, não fazer ondas, porque os conflitos não levam a nada.

Hoje, olho para o que fiz da vida, ou para o que ela fez de mim, para o curso sem saída (sem saída que eu queira), o trabalho sem emprego, o marido por materializar, ainda abalada porque há dias alguém se referiu a mim como mulher de meia-idade. A única coisa que faço razoavelmente bem é a sentar, desde que não me peçam agachamentos, e não há dúvida de que tenho talento para as ondas, que são o que mais gosto de fazer. Ainda assim, não invejo a vida de quem tem tudo aquilo que me parece faltar, fora as ondas.

Não queria sair do meu curso: queria ficar, ser para sempre aluna de professores apaixonados, que não ensinavam coisas práticas, mas ensinavam a sua paixão, adamantinos diante dos grupos de recém-adultos que saíam em debandada a meio da aula para irem jogar cartas para o bar, enquanto eu bebia as palavras daqueles amantes incendiados, com vergonha de quem lhes dava costas. Não era aluna do meu curso: era devota e foi como quem escuta blasfémia que, já adiantados nele, ouvi uma dessas que faziam tráfico de apontamentos e tiravam o curso no bar perguntar-me se gostava daquilo que estudava. Gostar??...

Mas, chegada ao último ano, acabaram mesmo por me mostrar a saída e, como um tropo gasto, em vez do final feliz, foi a realidade que encontrei à porta. Vi que era feinha e não me convinha. Ser-se adulto não era o sonho que imaginava quando não queria nada além de crescer. Cedo apurei que a vida profissional era uma continuação do jardim-escola e que adultos a sério não havia nenhum. Estavam todos a fazer de conta, as mulheres a brincar às senhoras com sapatos de salto alto e as unhas pintadas, os homens entretidos com brinquedos maiores. E ninguém sabia o que era a vida.

Entre casórios, crias e descasórios, os despautérios do emprego, dramas de família, crises de saúde pelo meio, férias no Algarve e passagens de ano bem regadas, o pacote clássico em oferta nem com desconto e brilhantina convencia, embora continuassem a tentar impingi-lo com toda a espécie de extras, vendedores-abutres que não acreditam no que vendem, mas se dedicam à causa com afinco redobrado, como se quisessem contagiar os outros com a própria infelicidade e receber comissão por isso. Que é como quem diz: comissão pela mentira, porque o cartão de visita da vida “normal” só dizia essa palavra: “Mentira”. Lda. Escritórios espalhados pelo mundo.

O que eu queria era o inverso dela, mas não lhe conhecia morada. Para resumir a história, deixei que a fome me levasse. Ela levou. Mergulhou-me no substrato da existência, que me seduzia mais do que a capa, mesmo que não fosse coisa prática, não desse para faturar, encher o currículo nem para orientar os workshops do arco-da-velha que por aí pululam. Com a Verdade, descobri a Beleza, descobri que a devoção não era apenas pelos professores apaixonados, mas um fogo que já ardia em mim, souvenir oculto do sagrado. Para o manter aceso, teria de aprender a dançar na corda bamba, sem emprego, sem marido, sem destino traçado. Sem a segurança da normalidade e das coisas certas da vida, apesar da condescendência com que sempre me lembram que nada é certo na vida.

O que me alimenta é esse fogo. Hoje, já não quero lugar no jogo cruel das cadeiras, criança infeliz que ficava sempre de fora. Sou a chama, cheia de ondas, que arde no centro. Não há mais a que possa aspirar.

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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