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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

18
Nov24

Desconfiança cega

Sónia Quental

       

         Nunca esquecerei o dia em que fui chamada ao gabinete de Deus. Trabalhava há anos naquele centro de formação e só lhe tinha visto a sombra em ocasiões raras, muito à distância, o que alimentava a minha natural descrença na sua existência. Quando os meus colegas, educados a andar em bicos de pés graças a um temor sedimentado ao longo de eras, me diziam que Deus, também conhecido como “o doutor fulano de tal”, tinha mandado fazer isto ou aquilo, inclinava-me a achar que era mito, uma desculpa conveniente para mandos absolutistas, de origem incerta. Mas um dia, como contei, fui convocada a um gabinete, nada menos que instalado no cimo de uma torre, por esse ser que julguei que estivesse ainda menos ciente da minha existência do que eu da sua. Foi o dia em que aprendi que Deus sabe mesmo tudo, até sobre quem tenta cobrir-se com um manto de invisibilidade, e que os meus cabelos estavam lá, naquele gabinete cinzento, contados e medidos ao milímetro.

         Mesmo sentada, a figura de Deus era imponente e percebi que estava habituada a incutir um medo paralisante nos súbditos, medo indutor de respostas aleatórias e de uma boa dose daquela untura que dá brilho aos sapatos. Lá medo tinha eu, perscrutada de lés a lés por aquele olhar cortante, que parecia acusar-me de crimes que não me lembrava de ter cometido. Fiz logo ali uma recapitulação de vida, que podia muito bem estar nos seus momentos finais: terá sido aquela vez em que comi um bolinho de bacalhau antes do almoço e neguei o crime para escapar ao castigo? Ou quando cometi um erro num ditado, que estragava os 20 valores da prova global, e tentei disfarçá-lo com a borracha de apagar tinta, apenas para a professora soltar a régua raivosa no meu rabo virgem de aluna bem-comportada?... Tinha sido castigada por todos eles, por isso tentava freneticamente lembrar-me dos crimes sem castigo, que tivesse sido chamada a expiar. Sem saber, cometi ali mesmo mais um: a candura de responder com honestidade às perguntas de Deus, que, depois dos primeiros momentos de desorientação, ficou desarmado e acredito que tenha aderido à minha curta lista de fãs. Isto apesar de a recomendação que tinha para me dar ser a de usar de menos honestidade nos formulários de avaliação dos módulos.

Fundo branco.jpg         No entanto, não foi para falar da ética duvidosa de Deus nem para invocar o seu nome em vão que fui buscar este episódio ao meu baú de tesourinhos pavorosos, mas porque aquele demiurgo omnisciente e omnipotente foi a primeira criatura em quem percebi uma desconfiança esquizofrénica, apontada como laser a tudo e todos, sem a mediação do discernimento e com o poder formidável de fazer despontar nos inocentes a culpa daninha do pecado original. O desconforto de quem ocupava o outro lado da secretária não vinha de sabermos que estávamos em desvantagem numa cadeia alimentar bem armada nem de termos aprendido na catequese que era preciso regar a semente do temor a Deus: vinha da vara glacial da desconfiança, capaz de uma ação tão devastadora quanto a mais ardente confiança.

         Depois de Deus, conheci outras entidades semelhantes, e o ambiente de tensão que produziam não sofria alterações climáticas. A causa para esta doença da desconfiança não estava na falta de contacto humano ou de à-vontade social, na falta de espiões que montassem uma rede pragmática de omnipresença e nem sequer na falta de experiência: estava na escassez de uma inteligência que o atributo “emocional” só de forma imperfeita traduz. Era a falta de saber aprender com a experiência, a falta de cultivo desse discernimento que conquistou a má fama de “julgamento”: em suma, a falta de conhecimento da natureza humana. E, ironicamente, era a estratégia de compensação suprema para uma credulidade ou confiança cega inicial que, recusando encarar as trevas que envolvem o coração e as motivações humanas, escolhe o amparo inabalável da desconfiança – sem abdicar da cegueira. A segunda ironia é que a desconfiança cega tende a ser daquelas profecias autoconcretizáveis que têm a fortuna perversa de desencadear nas presas que escolhe os comportamentos mesmos de que busca defender-se, por pias que sejam as suas intenções.

         Como moeda, a desconfiança vem sendo inflacionada pelo assédio dos perigos que aumentam à nossa volta, de que circulam histórias do mais puro terror. É fácil sermos empurrados para o cérebro reptiliano, ficarmos obcecados com a segurança e absortos na velha luta pela sobrevivência, que nos acena com ferramentas tecnológicas e de vigilância e com as mais mirabolantes “literacias”, que não passam de parentes pobres de uma sabedoria ancestral que se perdeu. Os anciãos de outrora, que envergavam cajados literais e simbólicos, foram substituídos pelos especialistas, que com a sua aura de legitimação nos pedem o resto de cérebro que ainda não foi colonizado ou vendido a um life coach de 25 anos.

         Não querendo dar uma de Poliana, também não estou a fim de viver trancada numa torre de desconfiança que me obrigue a dar trinta voltas à chave de cada vez que queira pôr o pé de fora, a instalar câmaras de segurança, receber visitas de caçadeira na mão e sujeitá-las a um interrogatório com laivos de tortura, confissões assinadas através da coação. Nem quero ser Deus nem quero que ele seja meu fã. O filho dele dizia para sermos serpentes e pombas ao mesmo tempo. Pode ser perrice minha, mas nunca gostei de nenhuma, e esta história do hibridismo… cruzes, canhoto!

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

03
Jul24

Cupão nosso

Sónia Quental

           

Produtos, serviços e aplicações marcham ao ritmo do tambor do inevitável, rumo à promessa das receitas de vigilância sonegadas aos espaços ainda selvagens que designamos por ‘a minha realidade’, ‘o meu lar’, ‘a minha vida’ e ‘o meu corpo’.

 

Shoshana Zuboff

 

 

Resisti até onde pude aos cupões e às apps que em toda a parte somos aliciados ou intimados a instalar no telemóvel. Afogado em impostos, o Português vive para os descontos, a validar e-faturas na internet, na esperança de ser um dos felizes contemplados no sorteio da Fatura da Sorte, e a colecionar cupões de supermercado e combustível. Agora, são as campanhas renovadas das lojas online, que nos acenam com descontos perpétuos, já não limitados às épocas de saldos, e embustes descarados, que não perdoam a quem não lê as letras miudinhas e se deixa ofuscar pelas imagens (como eu, que quis encomendar um jogo de lençóis e recebi UM lençol, como se fosse dormir enrolada nele, qual mortalha florida).

Não faltando motivos de distração, contar cupões é mais um, com um peso a não menosprezar, atiçando com a sugestão de um ganho, por mais pequeno que seja, o nosso instinto de sobrevivência e vaidade. O tempo, a energia e a atenção que a atividade consome não são perdas sujeitas a balanço. Por outro lado, as vantagens de termos todo um historial de compras gravado numa app, que é preciso instalar se queremos beneficiar de descontos exclusivos, esconde uma sombra que o ingénuo não aceita ver enquanto a ameaça não se tornar esmagadora e impossível de repudiar. O termo “grátis” é o “Abre-te, Sésamo” que lhe faz brilhar nos olhos a gula incontida, tal como a autoimportância, alimentada pelas promessas de relevância e personalização.

À distração amena criada pelos cupões vem juntar-se a utilidade, para os proprietários, da extração de dados dos utilizadores das apps. Cercados por câmaras no mundo físico e com as nossas atividades diárias cada vez mais rastreadas, decantadas e espremidas no virtual, o lucro comercial é apenas o objetivo mais imediato das marcas, que são as primeiras a beneficiar das novas formas de vigilância que a tecnologia põe ao seu dispor. A previsão, o controlo e a manipulação comportamental são a derradeira meta deste assalto gradual, que nem sentimos, de tão manso que é. Agradavelmente persuadidos a abdicar de uma autonomia e liberdade que nunca chegámos a conquistar, são sempre estas que estamos dispostos a entregar em troca de pontos ou de meia dúzia de patacos, quando não da ilusão de segurança. A isto nos conduziu o livre-arbítrio, fonte de orgulho dos donos de opiniões, que trabalham para engordar os aglomerados de dados que fazem os mosaicos da estatística do Big Data, parente do Big Brother.

Quando me lembro da estátua O Pensador, de Rodin, tão distante dos reflexos desta modernidade, inclino-me a achar que o indivíduo esculpido está a tentar decidir que cupão vai usar primeiro ou que aplicação vai apagar do telemóvel, porque já não tem espaço para mais. Não são tarefas pequenas.

 

Mercado de Amarante (21.06.2024) (12) - BOA.jpeg

A pensar nos cupões (versão femme)

 

2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

29
Jan24

Artigo no "Público"

Sónia Quental

 

       Apelando de novo à benevolência dos leitores, pelo overkill a que tenho sujeitado o tema, achei que merecia maior projeção, por isso voltei a mastigá-lo para o "Megafone" do Público. Dedicado a todos quantos padecem do fetiche pelas câmaras, com os votos de rápidas melhoras, o texto de hoje não está aqui, mas ali: "Tentáculos da vigilância".

 

13
Jan24

A "freelancer" que não vendeu o seu Ferrari

Sónia Quental

Longe vão os tempos em que se procurava refúgio num mosteiro para se ser monge: hoje, basta ser-se freelancer. Nada de retiros espirituais, saltar para cima de uma mula para encontrar o Xangrilá e um Baba dedicado, como os gestores de conta, atingir a Realização numa caverna, o corpo mordido por insetos. Pode fazer-se tudo no (des)conforto do lar, rodeado pelas mesmas criaturas invertebradas, e contratar um guru à hora.

Não há necessidade de vender o Ferrari, porque nunca se chegará a ter um. A custo virá um momento culminante, em que se reequacionem valores materiais após uma crise de vida que sangre arrependimento: não há grande coisa a reformar, as carnes são poucas para cortar, e o voto de pobreza e silêncio vem temperado com o jejum da eterna Quaresma.

Tenho um pouco mais de sorte do que o freelancer comum, porque me fizeram saber, pela boca do próprio, que há um Cristo a morar no prédio. Este quer instalar câmaras para apanhar o Judas em flagrante, em vez de dividir a hóstia. Espero que na proximidade do seu manto a conversão seja mais rápida, sem o aperto de disciplinas prolongadas, e eu possa voltar à civilização com a iluminação conquistada por osmose, parábolas a recitar como quem despede histórias de guerra, o corpo com o castigo suficiente para se notar.

Depois das sessenta e duas mil horas de meditação que a precariedade laboral tornou possíveis, estou prestes a atingir o amor incondicional. Com o poder das ondas gama projetadas pelo cérebro, vou concorrer ao título de “Mulher Mais Feliz do Mundo” e posar ao lado de Matthieu Ricard, ajudar as pessoas a despojarem-se para aprenderem a pensar como um monge e a acumular riqueza material, mantendo uma atitude positiva e cultivando a compaixão do Cristo cá do sítio. A ciência moderna confirma que é possível passar da mente de macaco à mente de monge e estou a caminho de o provar, embora ainda não tenha fustigado suficientemente o ego e renunciado por completo à crítica (shame on me).

Atualmente, treino o “namastê” que não me sai e aproveito os saldos para escolher uma t-shirt com o meu mantra favorito, para que não haja dúvida, quando for à garagem onde não tenho um Ferrari, que sou um ser de paz, as câmaras não me confundam com o Judas e não disparem a matar.

 

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Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

09
Jan24

Reforçar defesas

Sónia Quental

             

“Reforce as suas defesas” leio no vidro da farmácia, na mesma manhã em que me dizem que querem instalar câmaras de vigilância no edifício, depois de um segundo assalto à garagem. Se já andava mal-avinda com as que começaram a ornamentar as ruas, anunciando a Era do Grande Irmão, ele só adquire plenos poderes quando nos entrar em casa e se sentar no sofá ao nosso lado.

Enquanto trabalho, ouço os vizinhos darem todas as voltas à chave de cada vez que alguém entra ou sai de casa. As voltas são muitas, o que significa que, ao fim de um dia, o meu cérebro já deu nó e vou ter de pedir ao Grande Irmão, sentado no sofá, para o destrinçar com a paciência de quem me quer bem. Se também fizer massagens, estou disposta a reconsiderar a questão das câmaras, em vez de voltar a ser aquela ovelha de quem todos gostam, nas famílias e noutros lugares, por fazer coisas como bater o pé.

Largar o medo é um trabalho de todos os dias, daqueles a que poucos estão dispostos, depois de o terem como conselheiro de todas as horas. Se não é a IA que nos pode matar, é o açúcar, os hidratos de carbono, o glúten, a falta de vitaminas ou de cálcio, ao ponto de se ter tornado uma aventura levar seja o que for à boca. A inflação anda à solta de catana, de braço dado com a doença, as impertinências do aquecimento global, as “emissões” que fazem notícia, a ameaça planetária do momento, mas o que mete mesmo medo são as pessoas vestidas de astronauta, fato e viseira a rigor. Esta a condição a que chegámos, depois de conquistar terras e mares: andamos de olho na lua.   

Há dias em que não sei se alucino ou se entrei numa saga do realismo mágico, a única corrente artística que retrata com acerto o insólito do mundo, com o bónus de ter um nome de que também gosto. E não é menos que magia o que se espera das medidas externas quando se lhes pede que, eliminando o foco do perigo, o medo também acabe. Trancam-se as portas, mas o medo fica lá dentro. Muda-se de casa e ele vai atrás. O medo fareja e fareja-se. É por isso que, por mais reforços que se faça, as defesas nunca chegarão. Retomando uma frase já aqui citada: “There’s so much more to life than the avoidance of death” (David Weiss). Há quem goste de lhe chamar negacionismo.

 

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In The Marvelous Mrs. Maisel

 

24
Set23

O Olho que tudo vê

Sónia Quental

 

No entanto, a cultura atual funciona em bases diametralmente opostas, nas quais o exibicionismo vulgar, a perda da intimidade e a consequente destruição da profundidade estão na ordem do dia.

Maurício Righi

 

A consciência cósmica é substituída pela vigilância social, a percepção do absoluto, pela acrobacia cerebral. Daí resulta uma desidratação progressiva da alma, uma penúria espiritual mais apavorante que a fome.

Arthur Koestler

 

 

 

A pornografia da arte a propósito da remoção de estátuas e a evocação da exposição pretérita Noites Brancas, de Julião Sarmento, coroando a notícia recente do Happiness Camp aqui próximo. A reedição providencial da Beleza de Roger Scruton. Estudos que me permitem continuar a debruçar sobre o masculino e o feminino, interrompidos pela notícia de que quase um terço dos norte-americanos com menos de 30 anos seria a favor da instalação de câmaras dentro de casa.

Se em tempos não acreditava no acaso, hoje já não sei, mas isso não impede que me proponha o desafio de unir as notas aparentemente soltas das últimas semanas e de tentar dar-lhes coerência ou descortinar as relações possíveis entre elas.

Incumbiram-me, em 2012, de levar turmas em visita a uma exposição patente em Serralves: Noites Brancas, de Julião Sarmento, um artista de quem nada sabia e de quem preferiria nada ter ficado a saber. Expor adolescentes à crueldade mórbida e à obscenidade daquela “arte”, por mando de quem vê em toda a cultura instrução vantajosa, foi tarefa aflitiva, que não tentei explicar aos alunos, porque não havia como. Apesar de pouco conhecedora das artes plásticas, diviso nelas a mesma tendência da literatura deste início de século, sobretudo a poesia, que se cose de vísceras e do lado mais pútrido da matéria, no rebaixamento do humano à sua dimensão animal, acometida do desejo gratuito de chocar. No entanto, é esta que merece consagração e que não se pensa em remover da vista pública. Como acusa Zan Perrion, “The symptom of the modern times is that we've turned our face away (...) from beauty. And we celebrate ugliness”.

Não foi apenas o sentido estético que se inverteu, mas a importância que se lhe dá, aventuro que pela relação que a Beleza tem com o transcendente, que, se ainda se inscreve na cultura, é como tradição morta ou fantasia New Age. O questionamento existencial foi substituído pela exploração macabra do excremencial e pelo livre curso dado às ambições demiúrgicas do indivíduo, que não se coíbe de patentear urinóis artísticos e Frankensteins humanos.

 

É possível caracterizar a recaída geral de nossa cultura, rumo à contemplação de formas e conteúdos crescentemente dionisíacos, como uma consagração filosófico-estética de ‘princípios desumanos’. Nesse sentido, o movimento das artes plásticas, em sua depravada hostilidade contra o belo, surge como paradigma dessa degradação.

Maurício Righi

 

       Depois do ataque ao sexo masculino, é a vez de a mulher, representante da Beleza e do Mistério, ser anulada enquanto tal e na nudez que a revela mulher – a menos que seja o tipo de nudez que lhe expõe os fluidos e a decadência da carne.

 

Percebe-se (…) uma rendição incondicional ao biológico em sua faceta decadente e fragmentária, uma vez que o biológico tende, em seu processo orgânico, e de forma inexorável, ao desgaste e à decomposição, junto à correspondente perda de unidade orgânica e harmonia estética.

Maurício Righi

 

 

As forças de decomposição da cultura e da arte, a erosão do género e o materialismo tonificam a apoteose pueril do sucesso, do consumo e da felicidade, concorrendo todos para a exteriorização e a superficialidade do pensamento. Aqui se insere também a influência do New Thought, da psicologia positiva, do coaching e dos movimentos sociais da berra, com as suas fórmulas light, visando substituir moral e religiosidade pelo conforto de lemas progressistas, forçando um falso sentido de harmonia e contentamento que tenta iludir a razão, levando-nos finalmente a repetir que 2+2 = 5.

No entanto, “Na falta de eficientes modelos de transcendência, dos quais dependem as felicidades duradouras, a cultura e as pessoas tendem naturalmente ao vazio e, consequentemente, à infelicidade” (Maurício Righi). O mesmo horror ao vazio, a insegurança, a incapacidade de estar só e de cultivar a solidão que faz com que muitos acendam a televisão desde o raiar do dia farão também com que esses, complacentes com as câmaras que crescem como cogumelos fora de casa, também as queiram instalar dentro. As câmaras e a vigilância tornaram-se o Olho desfigurado da transcendência, a relação que subsiste com o Invisível, despido de Mistério e ao serviço da ordem social, que apenas o sacrifício humano pode aplacar.

 

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Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

24
Jul23

Realidade horizontal

Sónia Quental

Most of humanity lives in a horizontal reality (…).

Amoda Maa

  

And, in this sense, mainstream culture has one aim, one single aim: to erase God from our cosmology. To despiritualize you, to have you deny Truth, honor, divinity. You are gaslighted until these things begin to no longer have any real meaning anymore.

Until they no longer exist.

Neil Kramer

 

 

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A noite escura da alma não é escura: é cinzenta. Assim também a noite do mundo, que mostrou o cenho há três anos e pôs a nu as feições escabrosas de cada um.

Quando o impensável acontece e a demência toma conta das multidões acéfalas, é com intensa sede e escassa ventura que se procuram indivíduos eretos, que não tenham abandonado a integridade e a coragem e que alumiem a opressão de um eterno março. O espaço torna-se ainda mais confinado quando não se vê seres com alma, mas corpos reduzidos à sua condição animal, movidos por um instinto de sobrevivência disfarçado de moralidade e de preocupação com o bem comum, a condizer com o açaime grudado à pele.

Nesse março que nos desnudou, houve aqui e além vozes no crepúsculo que impediram que sucumbisse à loucura quem a encontrou na distopia instalada, unindo numa comunidade espiritual geograficamente dispersa pessoas que se descobriram subitamente sós – sós em família e logo sem família, sós entre presumidos amigos, colegas e desconhecidos. Uma dessas vozes foi a de Neil Kramer, professor de esoterismo no Omega Institute, em Nova Iorque, que explora no seu trabalho a relação entre a espiritualidade e os fatores sociais e culturais que moldam o nosso quotidiano – uma voz que restaurava à distância, nos seus roamcasts, a lucidez que a dissonância cognitiva fazia vacilar.

Não se trata apenas da bizarra trama de acontecimentos desencadeada em 2020, mas de toda a programação cultural e política que a sociedade vem metralhando como pus pestilento e que inoculou a mente superficial e infantilizada dos novos ativistas. São as identidades de género e a confusão deliberada da identidade sexual, a promoção aberta da homossexualidade e a sexualização das crianças, os delírios de masculinidade tóxica e de racismo, a retórica da inclusão baseada na entronização das vítimas e das minorias, o controlo centralizado, a censura descarada, a vigilância galopante e intrusiva, a proteção do público à custa da erosão do privado, a supressão de direitos e liberdades básicos, o primado da tecnologia, a distorção e apropriação ideológica da linguagem, a demonização do (discurso de) ódio, a difamação da faculdade de julgar, a ameaça e instrumentalização do aquecimento global, as teorias do relativismo, a mentira institucionalizada que a tudo subjaz, os cavalos de Troia do coletivismo e dos lemas socialistas, …

Is the sharp focus of truth sometimes divise, sometimes judgmental, sometimes offensive? Yes. (…) Division is necessary, so you can see the distinction between true and false, the clear line between the two. (…) So, it’s sometimes important to be offended, so that you will feel your error, experience the dead weight of your wrong conceit. None of these things can hurt your soul – they only rattle the self.

Neil Kramer

 

Quando se pensa no apogeu civilizacional, o ser humano regride em consciência, tornando a perda da profundidade cada vez mais ostensiva, alheado à debilitação intelectual e humana que decorre do seu empobrecimento espiritual. Ou, como lhe chama Neil Kramer, da eutanásia espiritual cometida, resultado da escolha de viver numa realidade horizontal, de que Deus foi omitido, e da ignorância ativamente cultivada sobre o que possa existir para lá do funcionamento mecânico do corpo do Homem e das forças que movem o corpo da Terra.

No mapa da consciência traçado por David R. Hawkins, a coragem é o primeiro nível de Verdade, vida e poder. Todos os anteriores (da vergonha ao orgulho, passando pelo medo), correspondendo a um paradigma de sobrevivência, são antivida e estão do lado de uma energia estéril, orientada para o falso e o destrutivo. 

Numa sociedade cega, quem protesta porque ainda consegue ver a luz é encarado como um antipatriota, iconoclasta, psicótico ou cobarde, uma ameaça ao sistema estabelecido. A não aceitação das ilusões socialmente dominantes é considerada perigosa e subversiva.

David R. Hawkins

 

Porque março não acabou, ainda são precisos fachos que não se deixem intimidar e que emprestem a voz à Verdade, no meio da névoa por vezes desesperante da alienação generalizada, dispostos a dar o exemplo e a sofrer as consequências, se necessário, com um espírito que não busca reconhecimento, mas se recusa a escolher a passividade face à ação concertada do Mal.

Felizmente, a união só faz a força quando tem raízes na Verdade. É por isso que os poucos conseguem suportar o peso dos muitos e é graças a esse equilíbrio precário que o mundo, já sem norte, ainda não perdeu a órbita.

Spiritual life begins with the silencing of the sleep song. (...) You will grieve, yet you will be liberated; you will be lonely, yet you will find belonging; you will be empty, yet you will be filled with light. The more silence, the more His Spirit indwells.

Neil Kramer

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Cartoon de Bob Moran

(aqui em memorável entrevista)

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

20
Jun23

"Twilight Zone"

Sónia Quental

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Live in Mordor too long and you come out looking like Gollum.

Neil Kramer

  

Some people have the idea that, if something is legal, it’s moral. (...) That's what government does: it tries to make the immoral moral by giving it the blessing of legality.

Thrive II

  

           

Não tendo atividade comercial nem envolvimento direto na utilização de espaços públicos para outros fins que não a locomoção, há realidades deste mundo que me passam ao lado. Talvez por isso ainda me escandalizem os atos de bizarria que se revestem de normalidade.

O dia em que perdi a inocência foi quando soube que aos meus pais, que tinham um estabelecimento comercial, era pedido o pagamento de uma taxa anual à Câmara por terem o reclame luminoso a fazer publicidade para a rua (!). A segunda vez deu-se no início deste ano, em que me proibiram de ser fotografada no mercado do Bolhão, explicando que era preciso enviar requerimento à Câmara, que o fundamenta no Código Regulamentar do Município pela “(…) pressão exercida na gestão da coisa pública local”. A terceira foi quando me disse uma esteticista que era obrigada a pagar licença para ter a rádio ligada e que o mesmo acontecia com as televisões nos cafés.

Neste rescaldo, e ainda atordoada pelos tentáculos do absurdo, apesar dos anticorpos mentais desenvolvidos desde 2020, chega-me um regulamento em que o Condomínio, maiusculado e tudo, como se pessoa fosse, quer ser meu pai. Pouco falta para ter de lhe pedir permissão para entrar em casa, perguntar como devo decorá-la ou em que posição devo dormir. Por falar nisso, tenho de me lembrar de questionar se vai oficializar a adoção e partilhar apelido comigo, embora duvide que me venha esfregar as costas ao banho, limpar a casa ou preparar as refeições.

Absorvida nestas cogitações, ocorreu-me o jogo infantil “Mamã, dá licença?”, com que nos condicionam desde a infância a acatar ordens arbitrárias, só porque a mamã diz que sim. Estranhamente, quando um qualquer ditame se transforma em lei, inspira nas pessoas o mesmo temor supersticioso que o sobrenatural, como se as ditas leis estivessem gravadas em pedra ou tivessem sido lapidadas nas tábuas de Moisés. Conheci gente que parecia ter uma relação erótica com os regulamentos e que aposto que os usa para se masturbar.

Nas cidades, as normas municipais conferem mais direitos aos edifícios do que às pessoas, aparecendo a proteção destas apenas como pretexto para a instalação de câmaras de rua e o assédio invisível de uma vigilância cada vez mais apertada, em que se vai perdendo o direito à privacidade e tudo se permite em nome da segurança. Prestamo-nos a esta relação paternal(ista) e perversa com os órgãos governativos: em troca de proteção, dispomo-nos a saltar quando nos mandam e a andar ao pé-coxinho ou dar passos à caranguejo quando assim determinam.

Nunca chegamos a atingir a maioridade de consciência, oferecendo a carne às molas da máquina burocrática, que nada busca além da autopreservação. Assumimos que a complexidade das leis e regulamentos esconde uma inteligência e finalidade que não se consegue enxergar entre os termos rebuscados que empregam, mas que insistimos estará por ali algures para nos protegermos do choque psicológico de um mundo em que o Mal manda só porque pode.

 

Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0