Apontamento escangalhado
Um dos exercícios que mais me elevam é conhecer uma palavra que me deslumbre.
Manuel Monteiro
O Medo acordou-me no escuro. Não posso dizer que tivesse dentes brancos ou o corpo quente, embora a jugular lhe palpitasse com vontade. Bichanava-me coisas malditas, perturbava-me o sono. Achei que o inseticida que tinha de atalaia não surtiria efeito, por isso fiz-me de morta, petrificada.
Ora me ATAZANAVA com a palavra que eu tinha deixado fora de lugar num texto, ora com os mais veementes motivos existenciais, ameaças de morte sempre veladas – assim, sem meias-medidas, em plena madrugada de Natal, quando as defesas estão relaxadas.
Mas os planos saíram-lhe furados, porque o que fez ao apontar-me a palavra fora de sítio, em vez de comichão, foi que me acudisse a outra que eu queria um pretexto para usar: “ESCANIFOBÉTICO”, que avistei num livro infantil, depois de longos anos de separação. Tal como há pessoas que sacam da carteira (ou do telemóvel) para mostrar a fotografia dos filhos, dos netos, do cão, eu gosto de sacar palavras, dar montra embevecida à sua beleza ou encanto, como se me pertencessem.
“Escanifobético” fez-me logo querer ESCANGALHAR de riso e, mais potente do que o inseticida, escangalhou num instante o Medo, que ficou fulminado ou SIDERADO com semelhante munição (outra palavra secreta que saquei em catadupa).
Foi assim, no embalo do dicionário, que o sono voltou e me encontrou, a mim e ao Medo, ÓSCULOS à parte, num AMPLEXO de trégua que restaurou o Natal.