Rasgar o filtro
Pensei que se esforçavam para nos curarem da infância. Curar a infância. Pensava assim. Estávamos como que enfermos daquela maleita e a precisar de regimes rigorosos para que nos puséssemos ao caminho da lucidez que só acontecia aos adultos.
Valter Hugo Mãe
Antes de ser apresentada à Polícia do Pensamento propriamente dita, conheci-a por outros nomes e parentescos – um deles, a Polícia da Emoção, treinou-me para o decoro absoluto. Era mais fácil para mim arrumar a casa do que dar fé das emoções espalhadas por todo o lado, a foguear nos olhos, a formatar as palavras, a ver-se no corpo como quando tive sarampo e já não me lembro, porque só me lembro da papeira, que foi a coisa mais inaudita que apanhei sem querer.
A Polícia da Emoção só me deixava ficar triste se o Porto perdesse. Não era caso que me desse tristeza, nem na idade curta em que o futebol me entusiasmou. Tinha tristeza por coisas maiores; as alegrias eram mais miúdas, mas também apareciam. A emoção não se podia notar demasiado e o pensamento tinha de seguir a versão oficial. Ou então calar. Fui dessas que foram calando. E calando e calando. E afinando o tom. Calando de voz e calando de escrita, porque me saíam inconveniências ainda maiores quando tinha ao alcance o dicionário e os livros. Acho que se arrependeram de me dar armas assim, embora fossem úteis para me pôr em sossego na época em que não havia aparelhos de entreter. Calar momentaneamente, enquanto lia e copiava palavras que mais ninguém da minha idade conhecia, incluindo os professores.
Na altura, ainda não se falava de curadoria, mas em retrospetiva vejo que era muito curada, mesmo quando não tinha doença aparente. O escândalo era maior quando contava coisas ao papel, para não incomodar as pessoas, e as pessoas se incomodavam na mesma depois de procurarem por ele e o acharem. A Polícia da Emoção não aparecia nessas alturas, quando os adultos buliam, porque eram eles que mandavam nela. A polícia eram os adultos, que mudavam as regras de um dia para o outro, segundo uma lógica indecifrável.
Tremia de medo de que me perguntassem o que queria ser quando me fizesse grande. Ser grande era uma possibilidade que tinha tanto de improvável quanto de fantástico. Poderia talvez juntar-me aos donos da polícia e decidir do governo do mundo. Não aconteceu. Desde que me pus a caminho de maior, vejo aos poucos a razão disso: sacudir a voz dos sufocos. Rasgar o filtro, todos os filtros. Salvar, como um náufrago, a palavra “não” que ficou perdida nos idos do papel, esmagada pela borracha da curadoria.