Vou ali preocupar-me
No sólo de miedo vive el hombre. Aunque mucho hijo de puta nos quiera alimentar de eso constantemente.
Isra Bravo
A Preocupação era uma presença palpável na casa, o animal de estimação que não tínhamos, crescendo em tamanho ao mesmo tempo que a família aumentava em largura e o espaço encolhia. Mais vezes se esqueceram de mim do que da Preocupação, um colete salva-vidas sombrio que ia de férias ia connosco, não fôssemos afogar por excesso de descontração.
Por fim, quando à custa de tanta engorda a Preocupação atingiu proporções descomunais, começou a entranhar-se na pele, a infiltrar-se no ADN, até se instalar num pano de fundo mental, um véu que cobria tudo em que tocava. Eu, que era capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo, conseguia ter uma Preocupação familiar em funcionamento automático, uma defesa supersticiosa contra tudo o que pudesse correr mal, com atualizações diárias de todas as calamidades iminentes e prováveis.
Com o tempo, e não satisfeita com a capacidade sobrenatural de pairar sobre tudo, a Preocupação começou a querer ser mais do que uma omnipresença fantasmagórica, exigindo tratamento de parente vivo. Comecei a ter de parar o que estava a fazer para me preocupar ativamente. Não posso falar: estou preocupada. Mais do que manifestar o poder de mobilização que as vedetas têm quando atravessam a passadeira vermelha, a Preocupação era como um buraco negro, que tudo sugava e contagiava de negrura.
Encarei sempre com suspeição as pessoas despreocupadas. Invejava-lhes a leveza do otimismo, a facilidade com que sacudiam aquela caspa de ansiedade que não me largava, e tudo lhes corria bem na imprudência de não usarem colete salva-vidas. Por mim, quanto mais me preocupava, mais carregado me parecia o horizonte, mais motivos de preocupação tinha. Apesar dessa inveja, era fácil associar a despreocupação à superficialidade, porque verdade é que conheci muitos raios de sol sem grande coisa atrás da testa, sempre prontos a declamar clichês cintilantes nos momentos mais escusados.
Já a sabedoria despreocupada é uma conquista menos comum: captar alguma coisa do que é a vida e escolher abdicar da preocupação sem naufragar é outra loiça. Não se trata da simples capacidade de gerir as emoções nem de controlar os pensamentos. Para deixar a Preocupação definhar e a expulsar do espaço que ocupou furtivamente, precisamos de ter bem estabelecido em que é que confiamos, o que queremos alojar em nós, uma atividade que merece mais a nossa energia do que ceder à Preocupação, que mais depressa nos leva ao fundo do que nos mantém à tona de água.
Mais poderia dizer, mas hoje prefiro a ligeireza e está na hora de terminar: tenho de ir ali preocupar-me (ou não).
Imagem: Tarot Illuminati